Casal dá a volta ao mundo entrevistando professores
Projeto Teachers of the World quer dar voz aos mestres e registrar suas histórias de vida. Material é postado em um site enquanto a dupla viaja e deve virar livro e documentário
por Marina Morena Costa 10 de junho de 2016
Juliana Ferrari e Vinicius Matsuei venderam “tudo o que tinham” para realizar a viagem dos sonhos, uma volta ao mundo em um ano, passando por cerca de 35 países da Oceania, Ásia e Europa. Psicóloga especializada em formação de professores, Juliana havia acabado de concluir o mestrado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP) e ansiava por fazer algo prático que ajudasse os mestres. Uma das conclusões de sua tese sobre a representação dos professores nas telenovelas brasileiras era a de que eles têm um espaço limitado para opinar sobre a educação e raramente são chamados para debates estruturais.
Foi preciso ter uma câmera na mão para que a ideia do projeto Teachers of the World (professores do mundo, em tradução literal) tomasse corpo. Na primeira parada da viagem, nos Estados Unidos, o casal comprou uma filmadora profissional e teve um estalo. “Vamos fazer um documentário, dar voz para eles. O problema dos professores a gente conhece, mas como resolver? Como ajudar?”, conta Juliana.
Designer gráfico e ilustrador, Vinicius pesquisa mobiliários educativos e também é fascinado pelo universo da educação. A dupla tinha muitas curiosidades para colocar à prova durante a viagem. Será mesmo que no Japão os professores são mais valorizados, uma vez que o até o imperador se curva aos mestres? Será que os professores estão satisfeitos em países que alcançam altos desempenhos nos rankings internacionais? Como é a experiência educacional em uma escola internacional, como a Green School, em Bali?
A jornada começou em novembro de 2015 e até o momento eles já percorreram Nova Zelândia, Japão, Filipinas, Malásia, Indonésia, Vietnã, Tailândia e estavam na China quando concederam entrevista ao Porvir via skype, enfrentando dificuldades de conexão e as restrições à internet (serviços do Google e do Facebook são bloqueados no país). As histórias dos professores estão sendo publicadas em um site e no Facebook, em inglês e português.
Atualmente o casal está percorrendo a Índia, país que escolheram ficar por um mês. Depois a viagem seguirá pela Rússia, Leste Europeu (Letônia, Estônia, Lituânia, Ucrânia) e União Europeia, onde pretendem visitar Alemanha, França, Espanha, Portugal, Itália, Áustria, Grécia, República Tcheca, e, se o orçamento permitir, Suécia, Noruega e Finlândia.
Até o momento, 30 professores concederam entrevistas e os planos são chegar a 100 profissionais. Para chegar aos entrevistados, Juliana e Vinicius contam com as amizades que fazem durante a viagem. Buscam conexões humanas para contar as histórias de vida dos professores. A experiência provou que, se buscam contato através da escola, o discurso do entrevistado muda, vira institucional. E não é isso que eles estão buscando.
No site, é possível conhecer a história de 17 professores entrevistados em seis países: Brasil, Nova Zelândia, Filipinas, Japão, Indonésia e Malásia. Em comum, eles destacam o amor à profissão e aos alunos. As queixas também são semelhantes: salários baixos, falta de recursos nas escolas e sobrecarga de trabalho.
“Eu acho que essas crianças que você pode inspirar são uma grande esperança. Eu quero que minhas crianças digam: ‘Eu posso fazer a diferença no mundo’. Eu tenho o emprego mais maravilhoso do mundo, porque eu posso inspirar pessoas a fazerem coisas maravilhosas e isso, para mim, é fazer uma coisa maravilhosa”, declarou a professora Angela Teague, da Nova Zelândia, em um depoimento emocionante publicado pelo projeto.
No site, é possível conhecer o professor Lucrecio Teorimo, que vive nas Filipinas uma realidade parecida com a de muitos professores brasileiros. “Muitas vezes tentamos fornecer, a partir de nossos bolsos, alguns materiais para as classes serem melhores para as crianças. Eu acho que isso é trabalho do governo, mas às vezes esta é a única maneira. […] Toda vez que temos uma nova atividade ou evento, precisamos contribuir para que a escola possa fazê-lo de uma maneira interessante”, relatou.
Já no Japão, a professora brasileira Emi Tomimatsu Antunes relata que o sistema educacional tem como objetivo que todos sejam iguais e que as responsabilidades do professor com a criança vão além dos muros da escola. “Sempre que uma criança começa a se destacar ela é cortada, para caber naquilo que é esperado. Quando eu cheguei aqui no Japão, eu vi as crianças desenhando. Todas elas desenham! Todas! E desenham muito bem. Mas é tudo igual […] No Brasil, a responsabilidade do professor é mais resumida à escola, às vezes só à sala de aula. Aqui não. O aluno é responsabilidade do professor na escola, no caminho de casa e as vezes até dentro de casa alguns assuntos são de responsabilidade do professor”, destacou em seu depoimento.
Sem nenhum apoio financeiro para a viagem, o casal de brasileiros pretende procurar parceiros na volta, prevista para outubro, ou realizar um financiamento coletivo para custear a produção de um livro e um documentário sobre os professores do mundo. Confira trechos da entrevista concedida ao Porvir:
Porvir – Vocês estão viajando pelo mundo para ouvir professores. Como surgiu a ideia para esse projeto?
Juliana – Quando decidimos viajar, eu estava finalizando o meu mestrado sobre como as novelas brasileiras mostram os professores, os personagens. Uma das coisas que a gente percebeu é que o professor tem um espaço muito limitado em opinar sobre a educação. A gente vê muito pouco a fala desse professor opinando sobre o que está acontecendo. Queríamos saber se era assim só no Brasil, ou em todo o lugar. Além de conhecer outros sistemas e tentar trazer uma coisa nova.
Porvir – Vocês saíram do Brasil com um roteiro pré-definido? Como vocês selecionam os professores?
Juliana – A gente chega na cidade que está visitando, normalmente no hostel ou em algum restaurante, ou onde a gente fizer amizade, e pergunta se as pessoas conhecem algum professor. Uma coisa leva a outra. É bem natural, a gente nem entra em contato com as escolas, para ser uma coisa mais humana. Se a gente entra em contato com a escola, fica mais institucional, eles acham que têm que fazer propaganda. E quando você pergunta sobre o sistema, eles travam, não falam mais sobre si. A gente quer falar deles, do que eles sentem, e por isso vamos por vias naturais.
Porvir – Como é a receptividade?
Vinicius – A Malásia é bem fechada, eles não abrem o sistema para estrangeiros. A gente não conseguiu visitar nenhuma escola.
Juliana – Nas Filipinas muitos professores quiseram falar. Depende do país. Cada um tem a sua peculiaridade, a gente não está forçando a barra. Até para não ser oficial, porque quando é, muda o discurso.
Porvir – De que forma vocês estão documentando as histórias desses professores?
Juliana – Filmando, gravando áudio (que é todo transcrito), fotografando. Nossa ideia é fazer um documentário quando voltarmos ao Brasil, tentando escancarar essa necessidade de olhar para o professor, cuidar de quem ensina. É um material muito rico, porque eles têm histórias muito legais, os vídeos estão geniais. Eu sou meio fã de professor (risos). A gente conheceu uma professora em Okinawa de 70 anos, que hoje é dona da escola. Deu mais de uma hora e meia de entrevista, ela tinha muita história para contar. Perguntamos para uma professora francesa, mais idosa, que conhecemos na Indonésia, o que poderíamos fazer para ajudá-la, porque ela reclamou muito do sistema, de como era cansativo, de como não via a hora de se aposentar, e ela respondeu: “Continuem fazendo isso. A voz que vocês estão dando para os professores neste documentário é algo do qual a gente nunca gozou. Continuem ouvindo as pessoas e contando a história delas”. Pra gente isso foi uma mensagem de que temos que continuar mesmo.
Porvir – Quais foram as maiores dificuldades encontradas nessa jornada?
Juliana – A gente tem a dificuldade da linguagem. No Japão tivemos a sorte de ter uma amiga tradutora intérprete, mas em Okinawa, tivemos que contratar uma intérprete (o que saiu caro e não estava previsto nos custos). Na Indonésia, essa senhora francesa nos ajudou a traduzir a entrevista com dois balineses. Normalmente a gente encontra intérpretes voluntários. Nas Filipinas, a dona do hostel que a gente estava nos levou dentro da escola. Na rua, perguntamos para uma moça onde tinha uma escola e ela pegou na nossa mão e passou oito horas com a gente, nos levou em três escolas e na casa de dois professores.
Porvir – E as dificuldades de acesso à internet?
Juliana – A China não permite Facebook, Instagram e Google. E a gente percebeu que o projeto depende disso. Você pode até viver sem as redes sociais, mas o projeto, não. Foi bom aprender a lidar com isso. Você tem tudo planejado e chega em um lugar que não tem essas ferramentas. Estamos na casa de um primo meu e ele tem filho em idade escolar, então vamos conseguir entrevistar professores. Não postar na China pode ser uma experiência legal, depois vamos contar que estivemos aqui [o casal concedeu a entrevista quando estava na China, e atualmente viajam pela Índia].
Porvir – O que surpreendeu vocês na viagem? Algum lugar quebrou ideias preconcebidas?
Vinicius – O Japão mudou completamente o nosso conceito, do que falavam e do que é. É um pouco triste.
Juliana – Os professores têm respeito, têm um lugar de destaque, mas não têm voz. É um respeito nostálgico à figura do professor. E eles têm uma responsabilidade maçante. A criança é responsabilidade do professor no caminho de ida e volta para a escola. Se ela comete um crime, é o professor que vai à delegacia. Ele tem que conhecer os pais dos alunos, visitá-los em casa, e eles vão dividir as tarefas (os pais e o professor). Antigamente eles tinham 10, 15 alunos e hoje têm 30, e têm que fazer esse mesmo processo. As pessoas sabem que eles trabalham bastante, mas o salário não é grande coisa e eles não têm voz nenhuma de decisão no sistema educacional. Não são convocados à discussão. Isso a gente não encontrou em nenhum lugar ainda.
Porvir – Nos depoimentos das professoras do Japão que estão no site, me chamou atenção isso que vocês estão colocando da responsabilidade sobre o aluno e também a questão de que o sistema molda o aluno. Se você tem um aluno brilhante que sai um pouco da curva, ele tem a criatividade dele limitada para se adequar ao sistema.
Juliana – Eles têm um ditado lá que foi muito assustador pra gente. “Toda vez que um prego está se levantando da madeira, você tem que martelar ele de volta.” Essa é a ideia do sistema educacional deles. Os estudantes sofrem muito, há um alto índice de suicídio de crianças, de adolescentes, o bullying é muito pesado, é um problema sério.
Porvir – Teve alguma outra cultura ou história marcante, que trouxe uma surpresa positiva pra vocês?
Juliana – A gente tinha um pouco de preconceito com a escola internacional. Tinha aquela sensação de que a pessoa muda de país, mas não quer conhecer a cultura. Me parecia uma experiência muito pobre. Mas mudei totalmente a minha visão. A gente conheceu escolas internacionais de alto impacto social, como a Green School, em Bali, e conhecemos dois americanos que dão aula na Malásia, em uma escola internacional, e percebemos o quanto é rica a experiência de crianças de diferentes partes do mundo. A Malásia está passado por um problema agora que é a questão dos imigrantes que estão vindo da Síria, do Líbano, do Paquistão. A escola internacional recebe esses alunos. Lógico que ela ainda conserva uma certa distância da questão social, porque é uma escola paga, cara, elitista, mas é de uma riqueza que a gente ainda não conhece no Brasil. Ser professor numa escola dessa é uma experiência muito rica, porque eles estão sempre se desafiando a conhecer outras culturas. Conversando com os professores, a gente percebe que esse modelo pode ser revolucionário, pelo simples fato de juntar pessoas diferentes numa sala de aula.
Porvir – Como foi a experiência na Nova Zelândia?
Juliana – A gente tinha uma impressão boa da educação da Nova Zelândia. Mas as professoras entrevistadas comentaram que nos últimos anos o país, que tinha um histórico de ter uma educação super holística, bastante desenvolvida, começou a entrar nessa onda dos rankings, das avaliações externas, da meritocracia para professores atrelada a bônus salarial. O país está entrando nesse modelo norte-americano e a gente não vê nos EUA grandes exemplos em larga escala. Os professores são forçados a entrar nessa lógica business, tendo que bater metas. Elas comentaram que as metas estão cada vez mais altas e as crianças ficando cada vez mais exaustas, assim como os professores. A gente percebeu que essa maneira empresarial de trabalhar a educação como um negócio, que foi o que me fez querer sair da escola, está em todo lugar. Isso nos entristeceu muito. Por isso queremos ir para a Finlândia, porque temos essa ideia de que é um sistema maravilhoso. E pro professor, também é?
Porvir – Ao ler os depoimentos que estão no site, é possível identificar algumas semelhanças. Ao ressaltar o lado positivo, os professores falam do amor (pelos alunos e pela profissão), de ajudar o próximo, dos ganhos humanos da atividade. E no lado negativo estão a falta de recursos, baixos salários. Apesar de estarem em países e culturas totalmente diferentes, os professores se parecem nesses pontos?
Juliana – É isso mesmo. Todos eles ressaltam a questão dos ganhos humanos. E é unânime a questão de que ninguém está nessa atividade por salário. Os dois professores brasileiros que entrevistamos antes de viajar, em entrevistas piloto, ressaltaram muito essa falta de consciência de classe, de representação material do valor, de salário bem pago, boas condições de trabalho. E todos os professores entrevistados falam isso também. A gente tem feito uma pergunta em comum pra todos eles: “o que te faz acordar de manhã pra ir trabalhar?”. Eles começam a resposta com “não é dinheiro”, “não é prestígio”, “é o amor que a gente sente pelas crianças”, “é ver que estamos mudando o mundo”. Eles têm consciência de que o trabalho deles é importante. Na Ásia, percebemos um padrão, eles valorizam muito a segurança do trabalho, a estabilidade. “É um trabalho para a vida inteira.” No Japão isso é muito forte. Ter um emprego duradouro, ficar 20, 30 anos em uma empresa é sinal de orgulho. Eles sempre destacam “eu sei que nunca vou ficar desempregado”. Aqui a manutenção no emprego significa que você é bom no que faz. Eles valorizam mais do que tudo a estabilidade e os benefícios.