Em uma tarde do mês de junho de 2023, alunos de uma turma do 6º ano da Escola Estadual Tenista Maria Esther Andion Bueno, em Campinas (SP), participaram, por cerca de 40 minutos, de uma dinâmica circular: o apagador passava de mão em mão, sinalizando de quem era a vez de falar, enquanto os colegas escutavam. A cada interrupção fora de hora, a regra era repetida pelo diretor Arnaldo Silva, que fazia as vezes de mediador. A roda de conversa foi proposta para encontrar uma solução coletiva a um conflito espinhoso envolvendo xingamentos racistas, assédio a meninas e agressões verbais e físicas. Ao final do encontro, alguns combinados foram estabelecidos, e o diretor pediu que todos assinassem o diário de classe, que materializa o compromisso assumido pelo grupo.

A dinâmica circular é usada com frequência na escola localizada bairro Jardim Rossin, na região periférica da cidade, para mediar conflitos, sejam eles entre estudantes, professores e funcionários ou na interação entre esses grupos. O método está ancorado nos conceitos de justiça restaurativa e comunicação não violenta, áreas de especialização do diretor da escola que atende 850 alunos dos anos finais do ensino fundamental, do ensino médio e da EJA (Educação de Jovens e Adultos), além de outros 40 estudantes com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na Educação Especial.  

“Em vez de partir da punição, a justiça restaurativa considera que toda violência é fruto de uma necessidade não atendida. Assim, o processo circular é feito para restaurar as relações sociais toda vez que temos um conflito, o que não impede que os estudantes sejam responsabilizados por seus atos, mesmo que seja a partir de uma linguagem de afeto”, explica Arnaldo, que foi professor de filosofia e coordenador pedagógico antes de assumir a escola, em 2018.

O novo papel deu a Arnaldo a oportunidade de implementar um trabalho orientado pelos princípios da gestão democrática. “Eu me vi numa encruzilhada: ou eu enlouquecia aceitando um sistema falido, acostumado a prezar por resultado, frequência e currículo em vez de relações humanas, ou eu tentava hackear esse sistema para fazer funcionar aquilo que é o caos”, explicou. 

O exercício da democracia

A gestão democrática é um princípio previsto na Constituição Federal (artigo 206) e também reforçado nas legislações educacionais. Mesmo assim, não é fácil transicionar uma escola que desde sua fundação, em 2011, adotava um modelo tradicional de ensino. Foi preciso uma dose de coragem e pitadas de ousadia para criar processos participativos e construir uma escola por e para todos. 

Começou com a mudança na maneira como é chamada, já que antes ela levava o mesmo nome do bairro, EE Jardim Rossin. Amparado pela legislação estadual que prevê a instauração de processo participativo para nomear patrimônio público, o gestor recém-chegado passou um tempo insistindo na escolha de um patrono ou uma patronesse para fortalecer a identidade e o senso de pertencimento na instituição. 

Em conjunto, alunos, professores e funcionários levantaram dez nomes de figuras públicas que prestaram serviços relevantes nas áreas da educação, esporte e cultura. Cada sala ficou responsável por pesquisar a biografia de um deles, e foram realizados debates no pátio para que todos apresentassem seus candidatos. A votação aconteceu durante uma semana de maio de 2019, aberta inclusive à comunidade do entorno, e terminou com a tenista Maria Esther Andion Bueno escolhida para a homenagem.

“Eu, um homem preto e periférico, jamais achei que os estudantes fossem se conectar com uma mulher branca da elite paulistana. Mas os alunos se encantaram com a história dela e me tiraram do meu quadradinho”, conta o diretor. 

Dessa primeira experiência democrática derivou a construção participativa do Projeto Político Pedagógico da escola. “Parecem coisas pequenas, mas que apontam para algo maior, que é a escola dialogar com a comunidade, com o bairro. É o inédito viável de Paulo Freire”, diz. O conceito, desenvolvido por Freire em algumas de suas obras, incluindo Pedagogia do Oprimido (Paz e Terra, 1974), é norteador de sua gestão, na medida em que procura criar condições no agora para que transformações surjam lá na frente. 

Diálogo para redução das violências

Nesse processo de construção a partir da gestão democrática, a EE Tenista Maria Esther Andion Bueno se depara com o grande desafio de diminuir a cultura da violência, que se manifesta em casos de indisciplina, troca de ofensas e provocações, além do adoecimento mental de estudantes, comprovados pelo aumento nos diagnósticos de depressão, ansiedade e automutilação.

A preocupação é materializada em cartazes contra o bullying e pró-diversidade que ocupam os corredores. Na visão do diretor, muito do que transparece nas relações sociais, em situações de indisciplina, tem a ver com uma violência intrínseca à instituição em sua forma tradicional. 

Começa na arquitetura, com grades e cores que se assemelham às encontradas em presídios e espaços pouco acolhedores. Segue para a forma como as carteiras normalmente são dispostas e na concepção da figura do professor como a única autoridade a ser considerada. O diretor elenca ainda casos de avaliação injusta, profissionais pouco valorizados, com jornadas exaustivas de trabalho, além de preconceito contra pobres, negros e mulheres, que existem aos montes nas escolas. Na visão dele, a gestão democrática não é a solução imediata para todos esses problemas, mas é o “melhor remédio”.

O professor de História Luís Fábio Bezerra de Brito, que atua na EE Tenista Maria Esther Andion Bueno desde sua fundação, é testemunha de como a gestão democrática está contribuindo para a diminuição das violências cotidianas e de como isso impacta até na autoestima dos educadores, que mensalmente preenchem uma  avaliação em que compartilham com a gestão elogios, críticas e sugestões. 

Eles também participam de assembleias para trocar com os colegas e fazer autoavaliação. “Percebo que o que falta nas instituições de ensino é diálogo, mas trabalhar numa gestão democrática nos faz mais fortes para construir parcerias e novos caminhos. Há muitos desafios, é verdade, mas temos que acreditar e persistir”, considera. 

Articulação em rede para barrar os estragos do ódio

O maior exemplo de como a gestão democrática é uma forma eficaz de lidar com desafios contemporâneos é a forma como a EE Tenista Maria Esther Andion Bueno está enfrentando o caso de um pequeno grupo de alunos cooptados por redes online de ódio. Tudo começou no retorno às aulas presenciais, após a pandemia. Professores identificaram alguns estudantes com comportamento taciturno, que quase não interagiam com os colegas, só usavam roupas pretas, capuzes e máscaras para cobrir o rosto. Em sala, eles proferiam discursos racistas, homofóbicos e misóginos. 

O diretor orientou sua equipe a criar vínculos com esses meninos, chamou as famílias para uma conversa e sugeriu acompanhamento psicológico para os alunos. Pouco tempo depois, a escola foi acionada pelo departamento de crimes cibernéticos da Polícia Civil e informada que esses estudantes estavam se relacionando com cybercriminosos e compartilhando vídeos e elogios aos atiradores do ataque à EE Raul Brasil, ocorrido em 2019, em Suzano (SP). 

Funcionários e professores ficaram com medo, mas Arnaldo considerou o comportamento um pedido de atenção, em vez de uma ameaça concreta à escola. “Esses adolescentes estão pedindo ajuda, e a forma como canalizam o adoecimento psíquico é através da violência. A lógica do sistema é excluir o diferente, mas temos que lembrar que esses meninos estão em processo de formação, e a escola tem que acolher e proteger a todos”, explica o diretor. 

O processo corre em segredo de justiça e envolve um trabalho conjunto entre a escola, a vara da infância, o CAPs (Centro de Atenção Psicossocial) e o Programa Conviva. “A nossa tarefa foi a de fazer esse trabalho de mobilização da rede, que foi árduo, porque as coisas não funcionam como deveriam. Passei horas ligando no CAPS, viajei pessoalmente até a sede do Conviva, em São Paulo”, relembra Silva. “Mas um diretor precisa persistir nessas parcerias. O que vai fazer os meninos se encontrarem é o cuidado em rede.”

Os estudantes passaram um semestre afastados da escola por medida judicial, com tutoria online para manter o vínculo e seguir com as atividades pedagógicas. Antes de retornarem à escola, os professores foram acolhidos em seus medos e orientados pela gestão a não tratá-los de forma diferente dos demais. 

“Não tenho como garantir que nossa escola não sofrerá ataques desse grupo de alunos ou de qualquer outra pessoa. O que eu sei é que aqui não é delegacia. Nosso papel é não deixar ninguém para trás. Já os professores são orientados a, sem medo e de forma respeitosa, fazer um confronto pedagógico quando houver casos de suástica desenhada em carteiras, saudações nazistas, falas de que racismo é mimimi e coisas do tipo”, afirma. A natureza desse confronto é usar o aporte de questões teóricas e curriculares para que os estudantes entendam as implicações de uma eventual apologia ao ódio e à violência, como explica Arnaldo no áudio a seguir: 

Ouça o depoimento de
Arnaldo Silva

Esse intenso trabalho de mobilização de rede, acolhimento e responsabilização dentro do âmbito da gestão democrática e da justiça restaurativa está permitindo que esses alunos construam laços sociais com os colegas. Depois de 10 meses, eles deixaram de usar capuz e máscara na escola e se envolveram em atividades eletivas. Cada conquista, mesmo que pequena, é celebrada pela equipe gestora.

Articulação em rede para barrar os estragos do ódio

Com o objetivo de prevenir que novos jovens sejam capturados por redes de ódio e minimizar as situações de violência, a escola também formou uma Equipe de Ajuda, projeto que aposta no protagonismo dos próprios estudantes para melhorar a convivência.

O programa é inspirado em uma política pública implementada em alguns países da Europa chamada de Sistema de Apoio entre Iguais. Foi introduzido no Brasil em 2015 pelo GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral), da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). “São trabalhos e projetos que propõem fomentar que os próprios alunos criem grupos para protagonizar ajuda, colaboração, mediação, acolhimento e cuidado com envolvidos em problemas de convivência”, explica a professora Luciene Regina Tognetta, coordenadora do GEPEM.

O grande trunfo das Equipes de Ajuda é permitir que os estudantes construam senso de pertencimento e responsabilidade uns com os outros. Para Luciene, o protagonismo é uma estratégia eficiente no enfrentamento ao extremismo e às demais violências na escola. “Os estudantes que fazem parte das equipes de ajuda são empoderados, porque eles têm o poder de conhecer dores e angústias uns dos outros, mas usam esse poder para o bem, para a construção de laços sociais e de valores morais positivos”, diz. 

Já são mais de 900 alunos atuando em Equipes de Ajuda, em cerca de 30 escolas brasileiras, das quais apenas seis são da rede pública. Entre elas, a EE Tenista Esther Maria Andion Bueno é a de maior porte. Lá estão 24 alunos voluntários, dos 6º, 7º e 8º anos.

Os estudantes Emanuelly Whastty Ocanha, do 6º ano, e Ghabriel Lira Borges, do 7º ano do ensino fundamental, são membros da Equipe de Ajuda da escola. Ambos destacam que a responsabilidade de zelar pela boa convivência ajuda a estreitar laços com os colegas e também desenvolver novas habilidades. “Quando chega um aluno novo na escola, tem sempre um grupo que vai lá conversar com ele, mostrar o espaço. Ele se sente acolhido e faz amizade rápido. E ele sabe que pode confiar na gente sempre que precisar de ajuda”, destaca Ghabriel.  

 “Com essa vivência, eu tô aprendendo a conversar melhor, a escutar o outro e me comunicar mais também. Fico feliz de saber que posso ajudar outras pessoas”, afirma Emanuelly. “E não só na escola, na rua e em outros lugares também”, completa Ghabriel. 

O grupo recebe capacitações periódicas e conta com a assistência de estudantes de graduação em Psicologia da PUC (Pontifícia Universidade Católica de Campinas). Alguns professores também são capacitados a atuar como tutores da Equipe de Ajuda. É o caso da professora de artes, Giovana Cantuária, que se encanta com o envolvimento dos alunos no projeto. “Eles realmente se empenham para ajudar os colegas. E aqueles que estão com problemas, inclusive de depressão e querendo tirar a própria vida, ficam mais confortáveis de se abrir com os os colegas do que para nós professores”, diz. 

A educadora chegou na escola há pouco mais de um ano, depois de passar por outras instituições de ensino da região. “Aqui é, sinceramente, um lugar maravilhoso para trabalhar. Pode perguntar para qualquer professor aí no corredor que você vai ouvir a mesma coisa”, diz. Para Giovana, a combinação entre gestão democrática e protagonismo juvenil transforma completamente o clima escolar, mesmo com todos os desafios cotidianos. “As relações sociais parecem estar mais fortes a cada dia que passa”, diz.