Em Santa Maria, cidade satélite de Brasília (DF), a professora de português Margareth de Brito Alves anda pelos corredores do Centro Educacional (CED) 310 sempre com seu radar ligado para descobrir talentos artísticos. Quando identifica uma oportunidade, é rápida na abordagem. “Você faz desenhos lindos no caderno. Passa lá na biblioteca depois da aula, que estou precisando de desenhista”, foi o que ela disse ao estudante Gabriel Fernandes, de 17 anos, ao convidá-lo para fazer parte do projeto 365 Dias de Consciência Negra, que acontece desde 2018.
O projeto tem a biblioteca como ponto de partida e foi desenvolvido pela professora com o objetivo de tornar a pauta antirracista uma presença constante na escola. O motor é o protagonismo dos jovens e a bússola, a valorização da cultura e da identidade afrobrasileira e indígena. Por meio dele, estudantes de ensino médio experimentam navegar por diferentes linguagens artísticas e culturais, como fotografia, teatro, sarau, música, dança, poesia e moda. Em grupos e sob a coordenação de Margareth, eles se envolvem em diversas atividades, desenvolvem a criatividade, estreitam amizades, adquirem responsabilidades e vão, pouco a pouco, conhecendo mais sobre si mesmos.
Gabriel está se formando no ensino médio, mas participa do projeto desde seu primeiro ano. “Eu era um cara muito fechado, não conversava com as pessoas. Foi o 365 Dias que me ajudou a fazer amigos”, diz. Um dos trabalhos que mais gostou de fazer foi uma série de desenhos com temáticas africanas. Para isso, teve que investigar fotos, maquiagens, estamparia e vestimentas de diversas culturas. “Isso me ajudou a reconhecer minha ancestralidade e me entender como um garoto negro. Sinto que hoje consegui encontrar minha própria identidade.”
Além de promover talentos, o projeto também envolve uma série de atividades para despertar reflexões sobre os efeitos do racismo no cotidiano dos jovens. Dos 887 estudantes de ensino médio que estudam nos dois turnos (manhã e tarde) do CED 310, mais de 70% são pretos e pardos. A maioria mora nos arredores da escola e integra famílias que sobrevivem com menos de um salário mínimo por mês.
“Esses alunos trazem muitas feridas, então nós organizamos rodas de conversa e oficinas com convidados que falam sobre o tema”, explica Margareth, carinhosamente chamada pelos estudantes de Margô. “Discutir racismo pode ser muito doloroso, por isso nós temos essa pegada artística e cultural de empoderamento. Aqui o espaço é todo deles”, enfatiza a professora.
Estudante do 2º ano, Júlia Oliveira Souza, 18 anos, faz parte do grupo de teatro do projeto. Ela diz que não se sentia diferente, já que a maioria de seus colegas são negros. “Nunca tinha pensado sobre o que é ser uma mulher negra, mas com os textos das peças que apresentamos e com as rodas de conversa, percebi que eu tinha sofrido vários episódios de racismo, principalmente em relação ao meu cabelo”, diz. Com o reconhecimento, ela pôde aprender a se amar mais e se posicionar em situações de racismo.
Empregabilidade é outro tópico discutido por eles. Com a ajuda de alguns alunos, Margô pendurou nas paredes do pátio cartazes com informações sobre carreira e cursos técnicos. Também fez parcerias com o Centro de Convivência Negra (CCN), da Universidade de Brasília (UNB). “Quando eu estava na escola, ninguém me disse que a universidade era pra mim e isso dificultou as coisas. Hoje faço esse intercâmbio para que os próprios universitários conversem com eles”, afirma a professora.
O contato entre universidade e escola transforma todos os envolvidos, como atesta Evelyn Sâmia, 25 anos. Formada em Ciências Sociais, ela foi uma das universitárias que participou do 365 Dias de Consciência Negra. Criou o logo, organizou sessões de cine debate e rodas de conversa e colaborou com a Revista Orí: a cabeça transcende ao tempo, uma coprodução entre estudantes da UNB e alunos do projeto para resgatar a biografia de personalidades negras que foram essenciais para a construção da identidade brasileira.
Do tempo que participou como voluntária do projeto, Evelyn se recorda com carinho do desfile de moda que ajudou Margareth a organizar. Na ocasião, cerca de 40 estudantes venceram a vergonha, capricharam nas roupas, nos turbantes e nas estampas africanas e desfilaram na passarela improvisada no pátio. Uma das modelos, uma estudante vinda do interior do Piauí, chamou a atenção da universitária por ser bastante retraída.
“Descobrimos que ela tinha passado por diversos processos de violência. Mas acho que conseguimos ajudar na construção da autoestima dela, que se sentiu bela e confiante para desfilar. E no encerramento ainda falou sobre sua experiência na frente de todo mundo. Foi lindo!”, relembra.
Do quarto ao reconhecimento público
O estudante Diego Witan passou a refletir sobre sua própria negritude ao participar do 365 Dias de Consciência Negra. “Reconheci minha ancestralidade e isso foi transformando minha vida”, diz o jovem de 17 anos que está finalizando o ensino médio. Durante os anos em que participou do projeto, teve apoio dos colegas e professores para explorar seus talentos artísticos. “Eu fazia uns beats no meu quarto, mas aqui na biblioteca eu tive acesso ao violão e fui me descobrindo. Hoje eu faço música, componho, toco e quero seguir com a música profissionalmente. Ter apoio fez toda a diferença”, avalia.
Outra estudante que saiu do anonimato do quarto foi Ana Luiza Lopes Marinho, que se formou no ensino médio no ano passado, mas continua voltando à biblioteca sempre que pode. Com 18 anos, ela lembra de quando passava horas trancada em seu quarto fingindo fazer parte dos clipes de Beyoncé e Rihanna, até que foi à biblioteca para sondar se poderia colaborar de alguma forma com seus dons para maquiagem e figurino. Saiu de lá com a missão de interpretar Cleópatra na peça montada pelo professor de artes cênicas, José Nildo de Souza, um dos principais parceiros de Margareth. “Margô e Nil enxergaram em mim algo que eu mesma não via”, diz Ana Luiza.
A jovem descobriu a paixão pelo teatro e dedicou a maior parte de seu ensino médio a ele, não só atuando, mas também cuidando de roteiro, figurino, cenário e coordenando ensaios. “Eu quase não tinha amigos, ninguém no colégio me conhecia. Mas depois que comecei a participar do projeto, as pessoas passaram a me reconhecer no corredor. Eu achava isso impressionante!”, diz a jovem, que pensa em seguir a carreira de atriz.
O professor José Nildo classifica como semeadura todo esse trabalho artístico e cultural que o 365 Dias de Consciência Negra promove ao engajar os estudantes. “Aqui é um espaço para que os jovens se encontrem e tenham oportunidade de experimentação por meio da arte. Eles são protagonistas, e essa postura democrática potencializa ainda mais a experiência e faz desabrochar muitos talentos. Eles saem de seus quartos para ganhar o mundo”, resume.
A maior expressão desse reconhecimento público foi a exposição das fotos tiradas por Vinicius Bispo. Ele era estudante do 3º ano e acompanhava o pai, fotógrafo profissional, desde seus 8 anos. Margareth fez o convite para que ele fizesse o retrato de alguns estudantes. “Eram adolescentes bem reprimidos. Fotografei também algumas mães de alunos e o pessoal da limpeza. Eles olhavam assustados para a câmera. Mas por eu ser também um garoto de periferia e ter a mesma vivência que eles, sei o que eles sentem”, relata Vinicius.
O resultado ficou tão bom que Margareth captou doações para que as fotos virassem banners. Depois, conseguiu que eles fossem expostos no refeitório da UNB e no Palácio do Buriti, sede do governo do Distrito Federal. “A gente lotou um ônibus com os estudantes para que eles pudessem se ver nas exposições. Foi a primeira vez que muitos deles saíram de Santa Maria. Para completar a experiência, eles foram presenteados com um jantar na Embaixada do Senegal.”
Transformando a dor em espaços de cura
O espaço onde funciona o Centro Educacional é três vezes menor do que as outras escolas de ensino médio da região. Foi construído originalmente para receber estudantes da primeira etapa do ensino fundamental, mas a alta demanda por ensino médio fez com que o CED 310 abrisse às portas à comunidade em 2010, com a promessa de que logo passaria a um terreno maior, o que nunca aconteceu.
A biblioteca é a última sala do corredor da entrada principal da escola e costumava passar despercebida. Margareth, que é professora de língua portuguesa, chegou à escola após enfrentar uma depressão que a afastou da sala de aula. Logo se ocupou da biblioteca. Conseguiu parcerias, recursos e doações para equipar o espaço com computador, monitor, instrumentos musicais e jogos de tabuleiro. Também ampliou o acervo com obras de autores negros e indígenas.
“A biblioteca é um espaço de poder, de acesso à cultura e conhecimento, mas os acervos normalmente são compostos por livros de autores brancos. Essa falta de representatividade faz com que os estudantes negros não se achem pertencentes ao espaço. Com as atividades do 365 Dias, começamos a mudar isso”, afirma a professora. O estudante do 3º ano, Hugo Gabriel Neris de Andrade, de 17 anos, foi um dos que chegou à biblioteca por curiosidade. “Na escola onde fiz fundamental, a biblioteca era trancada. Eu achava totalmente inovador ter esse espaço sempre aberto. A primeira vez que pisei lá, pensei: ‘meu Deus, o que estou fazendo aqui?’. Na segunda já decidi explorar mais o que tinha por ali”, diz.
O jovem revela que sempre foi apaixonado por mitologia grega, romana e nórdica, mas suas idas à biblioteca do CED 310 o aproximaram de mitologias de povos africanos, afrobrasileiros e indígenas. “Hoje essas mitologias fazem parte de mim.” O envolvimento com as atividades do projeto antirracista o fez ter vontade de ir à escola e de fazer amigos. “Quando cheguei à escola, eu era muito fechado, ninguém me conhecia. Agora se você perguntar por aí, não tem quem não saiba quem é Hugo”, brinca.
Depois da biblioteca, Margareth também trabalhou para transformar o banheiro feminino. Até 2021, era um local degradado, com espelhos e portas quebrados e sujeira por todos os lados, apesar dos esforços dos funcionários da limpeza. “O banheiro é refúgio de muitas violências que podem acontecer dentro da escola. Que mulher que nunca chorou no banheiro? A ideia foi transformá-lo em um espaço humanizado”, conta a professora.
No início do ano passado, ela convocou alunas e alunos para ajudar nessa missão. As paredes foram decoradas com fotos de mulheres inspiradoras, com QR Code direcionando para a biografia de cada uma delas. As portas foram encapadas com tecidos de chita e os espelhos foram trocados. Mensagens de elogio e empoderamentos foram espalhadas por todo canto, além de cartazes que informam como buscar ajuda em situações de violência. Agora, absorventes ficam disponíveis para quem precisar, assim como uma caixinha de poemas. Há também um outro repositório, chamado de SOS Emocional, para que as meninas possam compartilhar dores, tirar dúvidas ou pedir ajuda. Ele fica trancado e só pode ser aberto por Margareth, que recolhe as mensagens periodicamente e dá os encaminhamentos necessários.
O processo de transformação do banheiro ganhou o nome de Flores da Escola e passou a contar também com rodas de conversas periódicas para que as meninas discutam temas como empatia, sororidade e autoestima, além da reflexão conjunta sobre os efeitos do racismo, do machismo e da misoginia. O projeto foi premiado pelo Programa Maria da Penha Vai à Escola (MPVE), coordenado pelo Núcleo Judiciário da Mulher para disseminar conhecimento e atitudes alinhadas ao enfrentamento da violência contra a mulher.
O trabalho direcionado às meninas alcançou bons resultados, mas não era suficiente para combater o machismo e a misoginia. Margareth entendeu que o enfrentamento a essas questões também passava por criar espaços de discussão para os meninos. Em parceria com a orientadora educacional Denize da Rocha Pinto Bacelar, ela criou o projeto Beija-flores do CED 310, no qual eles participam de rodas de conversa e são convidados a preencher um questionário que lista 20 tipos de situações de desrespeito e violência contra as mulheres. Denize explica que o movimento acontece com a ajuda de parceiros, como a Rede Flor do Cerrado – que reúne diversas organizações governamentais para conscientizar moradores de Santa Maria sobre seus direitos – e estudantes de psicologia da Faculdade UniBrasília, que acompanham os estudantes.
“Com o questionário e as rodas de conversa consegui reconhecer que eu estava tendo certas atitudes agressivas com a minha namorada. Pedi desculpas para ela e sou grato por conseguir reconhecer meus erros. É assim que a gente evolui, né?”, avalia Matheus Urani, de 16 anos.
Parcerias são importantes
O trabalho para criar espaços de escuta e valorização das diversidades não é simples. Segundo a professora Margareth, é fundamental construir uma rede de parceiros. Um dos grandes apoiadores do 365 Dias de Consciência Negra é o diretor Luís Cláudio Lopes de Araújo. Ele revela que percebeu a grandiosidade do que estava acontecendo logo nas primeiras atividades.“Os estudantes foram espontaneamente para as redes sociais falar sobre o que estavam aprendendo e como aquilo mexia com a vida deles”, diz.
O projeto está tão consolidado que sobrevive à rotatividade dos estudantes. Para isso, faz diferença o radar atento de Margareth para identificar talentos e perceber vulnerabilidades. Essa habilidade foi forjada a partir da própria experiência pessoal, também marcada por situações de violência e trauma. “Eu costumo dizer que um excluído consegue rastrear o outro”, afirma.
Com mais de 20 anos de profissão, ela relata que só se reconheceu como uma mulher forte após sua atuação no CED 310. Essa consciência veio do entendimento sobre como o racismo afetava seu jeito de falar, de pensar, de se vestir e de alisar os cabelos.
Aos 46 anos, a maior realização da professora é ver que seus estudantes, assim como ela, puderam transformar situações de adversidade em motor para assumir o controle de suas vidas. Ela procura manter contato com seus discípulos mesmo depois de formados, como acontece com Laurikeicy Silva, de 20 anos, que terminou o ensino médio em 2020 e está cursando enfermagem. Participante da primeira edição do 365 Dias de Consciência Negra, a jovem diz levar no coração a principal mensagem que aprendeu no projeto:
“Tenho bolsa e estudo numa faculdade particular em que de 50 pessoas, apenas 5 são negras. Às vezes eu penso: ‘meu Deus, o que eu to fazendo aqui? Mas logo lembro da Margareth e de tudo o que aprendi no projeto. E sei que ali também é meu lugar. Eu posso estar em qualquer faculdade particular, pública, num emprego bom, onde eu quiser”, diz.