Quando não faltava, a merenda nas escolas estaduais de Santarém (PA) variava de suco com bolacha para bolacha com suco. A situação começou a mudar em 27 de outubro de 2015, quando alunos de 12 escolas estaduais da cidade resolveram marchar até a sede do Ministério Público Estadual levando esta e mais uma lista de demandas para a promotoria. Era o início de um projeto protagonizado por jovens com apoio de tecnologia que ultrapassa o muro das escolas e os aproxima do poder público, trazendo como maior consequência o reconhecimento de seus direitos.
Para entender como o caso foi tratado, primeiro é preciso considerar o nó que envolvia a rede de 38 escolas estaduais que atende cerca de 44 mil alunos. Em Santarém, a administração da merenda é municipalizada e a prefeitura recebe do Estado a verba do governo federal destinada à merenda e fica responsável por comprar os alimentos. Só que algo não ia bem, ou "variava", de acordo com as palavras de Dirceu Amoedo, ex-diretor da Unidade Regional de Ensino (URE) e atual vice-diretor da Escola Técnica do Pará em Santarém.
"Em uma primeira situação, havia escolas em que a merenda chegava em quantidade suficiente, mas não tinha merendeira. Em outras, havia merenda e merendeira, mas a qualidade não era boa. E em uma terceira, a merendeira estava na escola e a merenda é que não chegava", descreve.
Para chamar a atenção das autoridades, alunos da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Frei Ambrósio resolveram se manifestar. À época, a escola vivia a experiência democrática de uma Prefeitura Mirim desenvolvida pelo projeto social SOL, onde alunos assumiam o papel de prefeito, vice-prefeito e veradores. Além do Prêmio Nacional de Educação Fiscal, a iniciativa logo colheu resultados práticos, como a reforma da escola. Estimulados por essas conquistas, naquele dia de outubro os estudantes uniram suas forças com colegas de outras escolas para colocar na rua o Movimento Pacto Estudantil pela Educação no Pará. O protesto resultou em um encontro formal com o Ministério Público, que por sua vez pediu que alunos elaborassem um dossiê com fotos e documentos sobre suas reclamações que, além da merenda, envolviam também a falta de servidores de apoio, segurança e melhoria a infraestrutura das escolas.
O que à distância pode ser considerado uma radicalização, para os alunos foi a culminância de um processo que parecia não ter mais solução. "A gente ia conversar com a direção e os diretores se sentiam amedrontados. 'Poxa, o que eu vou falar para esses alunos? Se eu falar que eu não tenho merenda e que eu não tenho verba, será que eles vão entender?', lembra Ana Caroline Trindade, aluna do 3º ano do ensino médio da Escola Estadual Plácido de Castro, localizada no bairro Diamantino.
A jovem também lembra que era comum ouvir "Aluno é aluno. Eu sou diretor e eu que tenho que resolver" e, por isso, não havia ponte com o movimento. "Não estava surgindo esse encaixe com à direção das escolas. Eles falavam que estavam mandando ofícios para a SEDUC (Secretaria Estadual de Educação), mas a gente sabe que a maior voz das escolas são os alunos".
NÃO CAIA NA ARMADILHA
Para que o projeto pudesse avançar, entrou em cena uma outra instituição, o Observatório Social de Belém (OSB), organização da sociedade civil participante da rede de Monitorando a Cidade, que coloca os alunos, principais beneficiários da melhora da merenda, como protagonistas do processo de fiscalização e coleta de dados, tarefa que o Ministério Público, com uma equipe reduzida, não tinha como cumprir diariamente em todas as escolas.
Aplicativo de monitoramento
Criado por uma equipe do Centro de Mídia Cívica do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), o aplicativo busca abrir novos caminhos para que o cidadão acompanhe temas de seu interesse em sua comunidade e tenha sua voz ouvida na resolução de problemas. Apesar de ter sido usado em diferentes partes do país para fiscalizar a conservação de pontos de ônibus e calçadas, destinação correta de lixo e qualidade da água, é na experiência de Santarém que seus princípios podem ser vistos e explicados com maior facilidade.
"Foi o relacionamento de maior qualidade entre a população e poder público que eu vi. Eles conseguiram uma aproximação que não vem da ferramenta, mas do movimento, que serve de modelo para que outros grupos comecem a sonhar com mudanças", diz Emilie Reiser, desenvolvedora do Monitorando ou Promise Tracker (rastreador de promessas), nome que o aplicativo recebe nos Estados Unidos.
Com um telefone celular em mãos, os alunos acessam a campanha da merenda por meio de um código e respondem perguntas no questionário de avaliação, criado e modificado de acordo com suas percepções sobre a linguagem usada nos enunciados. Também foi elaborado um guia de facilitação para multiplicar o uso do aplicativo em novas escolas. Após a coleta, os participantes são convidados a refletir sobre o que descobriram e ir atrás de novos atores que precisam estar presentes no processo.
"As pessoas gostam muito de reclamar, mas a postura de corresponsabilização é sempre muito fraca. Com essa metodologia, a ideia é fazer um convite para que a comunidade entenda seus problemas junte dados no aplicativo para depois usá-los no diálogo com atores locais que podem propor soluções", diz a desenvolvedora do MIT.
Veja abaixo uma amostra das perguntas do questionário:
- Dia da coleta dos dados
- Local da coleta
- Nome da escola
- Se houve merenda no dia (sim ou não)
- Se o cardápio da merenda foi divulgado (sim ou não)
- Uma foto do cardápio
- A descrição da comida servida
- Motivo para uma possível falta de merenda
- Se foi servido algo para beber (sim ou não)
- Descrição do que foi servido para beber
- Horário em que a merenda foi ou deveria ter sido servida
- Uma foto da merenda servida
- Outra possível foto da merenda
- Quantidade percebida de sal na comida
- Nota de avaliação geral da merenda (de 1 a 5)
Início com dificuldades
Apesar de ter usabilidade simples, a entrada do aplicativo teve de enfrentar a desconfiança de diretores e funcionários. "Havia resistência por parte das merendeiras, que se sentiam amedrontadas por achar que iríamos fotografar para reclamar delas. A partir do momento que houve diálogo e mostramos como funcionava o aplicativo, melhorou", diz a jovem Ana Caroline Trindade. Segundo ela, para contornar a questão, alunos tiveram que passar por uma oficina de fotografia "para entender a melhor forma de fotografar, sem mostrar rostos e sim a merenda".
Em um nível mais alto, havia casos, segundo relato dos alunos e do ex-diretor regional Dirceu Amoedo, de gestores escolares que impediam o registro tanto do local do armazenamento quanto das refeições servidas. "Muitos diretores, eu diria até que a maioria, não viam com bons olhos essa situação porque sabem que o movimento mostraria problemas que não agradam quem está na direção", afirma Dirceu, que hoje vê gradativa melhora no relacionamento entre equipes escolares e alunos. NÃO CAIA NA ARMADILHA
Um outro ponto de dificuldade, desta vez técnica, diz respeito à falta de infraestrutura de internet nas escolas. Como nem todas possuem sinal de internet sem fio disponível, o trabalho de envio dos dados dependia do plano de internet móvel dos próprios alunos, que tinham que adquirir créditos. "Muitos não têm acesso à internet em casa e nem dinheiro para colocar uma recarga. Essa foi a pior parte", lembra Wendel Ícaro da Silva Costa, 17, que está no 2º ano do Escola Rio Tapajós, no bairro Diamantino.
De acordo com um estudo realizado por pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo), como as campanhas envolveram um público jovem, a autoestima deles também parece ter sido afetada pela participação ou não na campanha. "Aqueles que podiam participar, usando seus celulares, se sentiram bem por isso, enquanto os que tinham aparelhos não suportados se sentiram mal", diz o texto.
Resultados e próximos passos
Atualmente, o projeto com o aplicativo Monitorando está em 20 escolas da rede estadual. Em Santarém, destacam-se as instituições Almirante Soares Dutra, Prof. Aluisio Lopes Martins, Barão do Tapajós, Dom Tiago, Felisbelo Jaguar Sussuarana, Madre Imaculada, Onésima Pereira de Barros e Plácido de Castro. A mobilização também avançou mais 45 km e chegou ao município vizinho de Belterra, onde está a escola Waldemar Maues. Segundo Giovanni Bruno Freire de Aguiar, um ex-vereador da Prefeitura Mirim da Escola Frei Ambrósio, que é um dos líderes do movimento estudantil, o maior empecilho para expansão do projeto é manter a mobilização ativa dos estudantes, por mais que grupos de WhatsApp e a página do movimento no Facebook sejam usados intensamente. "É muito difícil chegar a todas as escolas e fazer com que os alunos entendam a causa e continuem esse trabalho com a gente", explica. NÃO CAIA NA ARMADILHA
Por outro lado, as pontes com diretores, de acordo com sua colega Ana Caroline, foi finalmente criada. "Foi a partir da parceria com o Ministério Público que isso aconteceu. Hoje os alunos têm um embasamento para saber qual órgão é responsável, que medidas tomar e para quem direcionar os problemas. E aí perguntamos o qual é a opinião do diretor", resume.
Paralelamente a isso, novas oportunidades de diálogo com a secretaria de educação estadual foram sendo criadas e os alunos puderam acompanhar a licitação para compra dos alimentos. Após o acesso, a luta agora é por qualidade. "Um empresário chegou com uma oferta de carne que no papel dizia que era bovina só que na realidade era suína e a gente já barrou", conta Giovanni. Além da parte da fiscalização, os jovens também foram convidados a participar da elaboração do novo cardápio, opinando sobre as receitas que mais gostam com a condição de respeitar 34 ingredientes pré-selecionados por um nutricionista.
Uma maior fidelidade entre o que está no papel e o que vai para a mesa dos refeitórios também começou a ser percebida pela comunidade escolar. "A gente tinha uma grande dificuldade de ver o cardápio ser cumprido. Hoje isso acontece. Estamos fechando parcerias com chefes para fazer pratos regionais com alimentos que temos aqui na região e que são produzidos pela agricultura familiar, como mandioca, melancia e abóbora", diz Wendel, da Escola Rio Tapajós.
A professora Eliana Mara, coordenadora do Projeto SOL, ressalta que o processo de engajamento trouxe algo mais do que acesso à refeição durante o horário de aula. "Os alunos achavam que a merenda não era um direito. Com o começo do trabalho e a participação em palestras no Ministério Público, eles foram mudando de opinião". Segundo ela, agora existe a chance do projeto chegar à rede municipal, por conta de uma aproximação com a secretaria de educação local. Para que tudo se desenrole de maneira mais fluida, a abordagem será diferente. "Através do Grupo Municipal de Educação Fiscal, fizemos uma reunião com diretores que vão nos ajudar a chegar aos alunos. É um caminho inverso".
Apesar de avanços na merenda, a lista com demandas dos alunos entregue ao Ministério Público em Santarém ainda está longe de terminar. Eles ainda cobram a melhoria na infraestrutura dos espaços pedagógicos, nas bibliotecas, na segurança...
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