Uma fake news sobre política aqui, uma teoria da conspiração ali e discursos de ódio por toda parte. À medida que os estudantes traziam para a sala de aula questionamentos sobre conteúdos que circulavam nas redes sociais, o professor de sociologia Yuri Norberto, do Centro de Excelência Atheneu Sergipense, em Aracaju (SE), percebeu que uma simples conversa ou palestra não daria conta de desvendar a complexa teia de desinformação que se apresentava diante dos jovens.
No colégio de tempo integral, para ajudar as turmas do terceiro ano do ensino médio a lidar com esse desafio, em parceria com o professor de língua portuguesa Ronney Marcos Santos e com o departamento de relações internacionais da UFS (Universidade Federal de Sergipe), ele criou o “Observatório Internacional da Notícia”, um projeto interdisciplinar de educação midiática que atua no combate à desinformação e aos discursos de ódio. “A ideia não é apenas explicar como a desinformação chega até eles, mas também ensiná-los a identificar padrões que estão por trás da disseminação desses conteúdos”, explica Yuri. “Queremos que eles sejam multiplicadores da educação midiática na sua casa, na sua comunidade ou até mesmo no seu trabalho”, completa Ronney.
Quando começam a participar do projeto em uma eletiva da escola, os estudantes passam por um processo de cartografia social, onde são aplicados questionários para identificar como o problema da desinformação afeta a vida deles. “Percebemos que muitos dos conteúdos que circulam nas redes sociais afetam os jovens, deixando-os ansiosos e preocupados. São vários discursos de incentivo ao ódio e à violência”, conta Yuri. “Pela linguagem eles acabam pegando esses meninos, então precisamos desenvolver neles uma consciência crítica”, ressalta Ronney, ao reafirmar a importância da educação midiática.
Agência de checagem na sala de aula
Partindo do universo dos jovens e dos desafios que estão presentes no cotidiano deles, Yuri e Ronney conduzem rodas de conversa e aulas teóricas sobre desinformação, discursos de ódio e checagem. “Quando você pega a realidade deles e, a partir daí, conecta com o conhecimento científico, a escola passa a ser interessante”, conta o professor de sociologia.
Depois de serem sensibilizados pelo tema, os jovens dão um passo adiante no seu processo de letramento midiático. Nos moldes de uma agência de checagem, como a Lupa ou Aos Fatos, eles formam grupos para monitorar conteúdos que circulam em cinco redes sociais: Instagram, Facebook, TikTok, X (antigo Twitter) e Kwai. “Eles catalogam esses conteúdos em planilhas, fazem um trabalho de análise e, a partir daí, tentam reconhecer se essa narrativa foi alterada, manipulada intencionalmente ou até mesmo foi criada para atender aos interesses de um grupo específico”, descreve Yuri. Durante esse levantamento, o professor Ronney também lembra que meninos e meninas são orientados a não curtir ou interagir com esses conteúdos para não ampliar o seu alcance nas plataformas.
Na divisão de tarefas, o grupo do estudante Júnior Paixão, de 20 anos, ficou responsável pelo monitoramento do Kwai. Por lá, eles já encontraram desde conteúdos ‘terraplanistas’ até discursos de ódio dos mais variados, que se escondem sempre atrás de uma falsa justificativa de liberdade de expressão. “A gente realmente acha coisas inacreditáveis que as pessoas propagam, dão like e compartilham.”
“Às vezes ficamos até um pouco assustados com o nível das fake news que encontramos”, comenta Madu Souza, de 17 anos, que está em um grupo responsável pelo monitoramento do Facebook. No processo de filtragem e checagem de publicações, ela conta que as desinformações sobre saúde aparecem com frequência, mas os conteúdos mais chocantes, na sua opinião, são aqueles que propagam discursos machistas e misóginos que incitam o ódio contra as mulheres.
Em uma das suas buscas, Madu conta que encontrou uma fake news bastante agressiva sobre a vereadora Marielle Franco, que foi assassinada a tiros em março de 2018, em um crime que permanece até hoje sem resposta. “Foi doloroso demais para mim, como mulher, encontrar esse tipo de conteúdo. A Marielle lutava tanto pelas pautas femininas, que não consigo entender como as pessoas têm a coragem de criar uma fake news sobre ela, mesmo depois da sua morte. Por trás disso, tem uma intenção evidente de desqualificar a mulher”, relata a jovem.
Combate aos discursos de ódio machistas e misóginos
Por entenderem que narrativas de ódio contra mulheres estavam presentes por toda parte, estudantes do Atheneu Sergipense também se organizam em outras frentes de trabalho para combater discursos machistas e misóginos. Inspiradas pelo projeto Atheneu ONU, modelo de simulação da Organização das Nações Unidas que acontece no colégio desde 2019, elas se uniram para criar o Atheneu ONU Mulheres, onde compartilham vivências e discutem políticas públicas. De lá, já saiu inclusive um projeto de lei para garantir a distribuição de absorventes para mulheres matriculadas em toda a rede pública estadual de ensino.
As jovens também promovem atividades de sensibilização em outros espaços educativos, como foi o caso da oficina sobre combate aos discursos de ódio contra mulheres, realizada no dia 28 de agosto, no Centro de Excelência Professor Abelardo Romero Dantas, em Lagarto, município localizado a 82 quilômetros da capital. “Nesse encontro, a gente entendeu que era importante mostrar aos estudantes como o sentido do feminismo tinha sido deturpado por esses grupos na internet. Muitas pessoas são desinformadas sobre o termo, acham que é um movimento de opressão, mas na verdade ele defende os direitos das mulheres”, explica Madu.
Em um auditório lotado, tanto meninas quanto meninos interagiram com a oficina organizada pelas estudantes do Atheneu. Rafael Dias, de 17 anos, que está no terceiro ano do ensino médio do CE Abelardo Romero, foi um dos participantes que acompanhou atentamente a apresentação e, quando teve oportunidade, compartilhou algumas experiências pessoais. Por gostar muito de esporte e seguir páginas sobre isso nas redes sociais, ele percebe que mensagens machistas e misóginas aparecem com frequência nas plataformas. “Na última Copa do Mundo Feminina, vi muitos comentários do tipo ‘vai lavar louça que é melhor’. Ou então apreciam mensagens que duvidavam da capacidade delas e apoiavam a atitude do presidente da Confederação Espanhola, Luis Rubiales, que deu um beijo forçado em uma jogadora”, aponta.
Educação para a cidadania fortalece combate à desinformação
Além do Atheneu ONU e Atheneu ONU Mulheres, outras iniciativas criadas por estudantes do Atheneu Sergipense ultrapassam os portões do colégio e se tornam aliadas no combate à desinformação. Por meio da “Caravana Cidadã”, Rafael Gama, de 16 anos, tem visitado escolas na capital e no interior do estado de Sergipe para conversar com outros alunos sobre cidadania, participação política, educação pública e direitos das juventudes – temas que frequentemente são distorcidos no universo das fake news.
“Quando eu comecei a me envolver com esses projetos, percebi que as discussões que aconteciam na escola sobre direitos humanos, polarização e desinformação eram muito importantes”, explica Rafael, que está no terceiro ano do ensino médio, é embaixador do Instituto Natura e multiplicador da Politize!. Na última edição da simulação do Atheneu ONU, ele ocupou o cargo de secretário-geral e foi um dos dez brasileiros selecionados para participar de uma simulação da ONU na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. A viagem acontecerá em janeiro de 2024 e será financiada pela Brazilian Youth Academy.
“A educação é propulsora no combate à desinformação. Se conseguimos conscientizar pessoas que estão dentro de uma esfera de alienação, podemos construir um mundo mais responsável. As pessoas precisam entender que fazem parte de uma sociedade e são responsáveis pelas informações que compartilham”, afirma Rafael, que também participa do “Observatório Internacional da Notícia” e monitora o X junto com o seu grupo.
Formação de jovens multiplicadores
Assim como os alunos do Atheneu Sergipense, os professores são convidados a conduzir oficinas para combater a desinformação e os discursos de ódio em outras instituições de ensino. “Como educadores midiáticos, precisamos nos organizar e formar estudantes multiplicadores. Quando levamos isso para outras escolas, conseguimos criar uma rede de apoio que barra o extremismo, o ódio e todas essas formas de violência que trazem prejuízo para a sociedade”, reforça Rooney.
No Centro de Excelência José Carlos de Souza, na capital, os educadores foram chamados para fazer uma oficina de letramento midiático com um grupo de sete jovens protagonistas do colégio, encarregados de mobilizar e transmitir conhecimentos aos seus colegas. Em um encontro que durou a manhã inteira, eles adotaram uma metodologia semelhante àquela aplicada no Atheneu Sergipense: partiram da realidade dos estudantes para começar um trabalho de sensibilização sobre a desinformação que circula no ambiente digital.
Como ponto de partida, eles usaram o relato de uma estudante que, ao se apresentar, contou que mudou para o colégio há pouco tempo. A jovem disse que no início teve medo de não se adaptar, principalmente porque veio da rede privada e sempre escutou que a escola pública não era boa. No entanto, alguns meses no Centro de Excelência José Carlos de Souza foram o bastante para desconstruir o seu pré-julgamento.
Apenas com esse depoimento, os professores já tinham um prato cheio para começar a oficina com os seguintes questionamentos: Quem disse pra gente que a escola pública não é boa? Que tipo de conteúdo sobre educação circula na internet?
“Foi interessante participar dessa oficina porque a gente acaba tendo acesso a muita informação nas redes sociais. Mas às vezes precisamos parar um pouquinho para analisar se os conteúdos que recebemos são reais ou não”, reflete a estudante Ruanny Cristhiny, de 16, que está no segundo ano do ensino médio. “Como uma mulher preta que acabou de passar pela transição capilar, eu já me senti mal com alguns conteúdos que vi nas redes sociais”, diz a jovem.
Um desafio que vai além da escola
Apesar de todas as ações que são realizadas pelo Atheneu Sergipense, com projetos interdisciplinares, coletivos de checagem e oficinas em outras escolas, os professores reconhecem que o problema da desinformação e da disseminação do ódio vai além do que a escola consegue dar conta. “Essa teia é muito complexa”, diz Yuri.
O educador reforça que é fundamental estabelecer parcerias e envolver diferentes atores do ecossistema nessa discussão. Como exemplo, cita uma ação que aconteceu no Dia Mundial da Internet, celebrado em 17 de maio, em que estudantes do Atheneu Sergipense e de outras cinco escolas da rede se reuniram com especialistas e autoridades para discutir sobre educação midiática e medidas para garantir a segurança de crianças e adolescentes no ambiente digital. “Eles não querem só discutir e combater, mas intervir institucionalmente”, ressalta o professor de sociologia.
Participaram desse encontro figuras públicas conhecidas na região, como a superintendente regional da Polícia Federal no estado de Sergipe, Aline Marchesini Pinto, o professor universitário Gilton Mal, do Departamento de Computação da UFS, o jornalista Gustavo Rodrigues, da TV Sergipe, a delegada Viviane Pessoa, que já atuou na divisão de crimes cibernéticos, e o senador Alexandro Vieira (MDB-SE), autor do projeto de lei para proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais e virtuais (PL 2628/2022).
“Esse não é um papel só da escola. Todos precisam participar: as plataformas, a secretaria de segurança pública, a superintendência”, defende o universitário Alex Felipe Santos Melo, de 19 anos, que estuda engenharia da computação na UFS e foi um dos responsáveis pela idealização do evento, que aconteceu no Tiradentes Innovation Center, em Aracaju. O jovem já foi aluno do Atheneu Sergipense e atribui ao colégio o seu interesse por essa área.
Para o diretor do Atheneu Sergipense, Daniel Lemos, a junção desses projetos não só têm um impacto positivo na escola, mas também na sociedade: “Um estudante que tem essa visão da desinformação consegue discutir com os seus pais, discutir no seu bairro e na sua comunidade. Eles ajudam a combater algo que é danoso e causa prejuízos econômicos e sociais”, conclui.