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O fortalecimento do extremismo no Brasil é responsável pelo crescimento da onda de ataques às escolas, deixando um rastro de medo, insegurança e traumas. Confira orientações, experiências e recursos para combater o ódio e frear a disseminação de desinformação

Fenômeno que espalha o ódio contra as diversidades impulsiona ataques às escolas

No dia 27 de março de 2023, Ilma Aparecida Alvez viveu o que define como um dos piores dias da sua vida. Por volta das 8h da manhã soube que a Escola Estadual Thomazia Montoro, onde o filho estuda, estava na televisão por causa de um ataque armado. Começou uma busca desesperada por informações. Apenas no início da tarde pôde reencontrar Miguel e ouvir: “Mãe, não chora! Eu tô bem.”

As lembranças desse dia deixaram marcas em Ilma. “Não é fácil digerir. Meu corpo fica todo enrijecido só de falar sobre isso”, relata a mãe. O filho, que na época tinha 12 anos, também carrega traumas que se manifestam ao dormir. “É cada pulo que ele dá na cama enquanto sonha!”, revela.

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Ouça o depoimento de
Ilma Aparecida Alvez do Espírito Santo

Localizada na cidade de São Paulo, a Thomázia Montoro entrou para uma estatística trágica na história do país: 36 ataques foram realizados em 37 escolas brasileiras (em um dos casos, o mesmo atirador atacou duas escolas), sendo que quase 60% deles aconteceram entre fevereiro de 2022 e outubro de 2023. Até agora foram 35 vítimas fatais. Dentre elas, a da professora de ciências Elisabeth Tenreiro, que era uma das preferidas de Miguel e, aos 71 anos, conduzia a disciplina Projeto de Vida.

Nove dias depois, quatro crianças foram mortas em outro episódio de violência extrema na creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau (SC). Em junho, um novo ataque deixou duas vítimas fatais, desta vez no Colégio Estadual Helena Kolody, em Cambé (PR). Em outubro, um ataque no colégio particular Dom Bosco, em Poços de Caldas (MG), deixou um morto e três feridos. Com um intervalo de pouco mais de uma semana, um adolescente de 16 anos entrou armado na Escola Estadual Sapopemba, em São Paulo (SP). Uma estudante morreu e outras três pessoas ficaram feridas. 

 

Onda de ódio

Entenda a diferença entre extremismo, terrorismo e radicalização

Extremismo: Ideologia, comportamento ou atitude de um indivíduo ou de um grupo que tem uma determinada visão de mundo, intolerante às demais, e que está disposto a impor esta visão sobre outros com ou sem o uso de violência.

Terrorismo: Ato de violência levado a cabo por indivíduos, grupos ou até mesmo Estados contra determinados alvos civis. Neste caso, a pretensão é atingir uma audiência maior, visando determinado objetivo político.

Radicalização: Processo de transformação que leva o indivíduo de uma posição de normalidade até adoção de atitudes extremistas e, em fases mais avançadas, concretização de atos de terror. A internet, sobretudo através das redes sociais, permite maior autorradicalização de indivíduos pela disponibilidade de informação e facilidade de acesso a grupos extremistas.

Fonte: SITOE, Rufino. Extremismo, Radicalismo e Radicalização: uma distinção necessária no debate sobre o Terrorismo. Artigo. Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI). Moçambique, 2022.

Esses ataques a escolas não são casos isolados. De acordo com o relatório “Ultraconservadorismo e extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às instituições de ensino e alternativas para a ação governamental”, os recentes episódios de violência estão inseridos em um contexto de avanço do extremismo no país e da falta de controle dessas práticas e discursos, incluindo a sua livre disseminação nos meios digitais. O documento, publicado em dezembro de 2022, foi elaborado por 11 pesquisadoras e ativistas dedicadas à educação pública e à prevenção do extremismo no país. Ele foi organizado e entregue ao Governo de Transição por Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo) e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

“Há uma hipótese bem documentada por pesquisadores de que quatro anos de radicalização produziram uma normalização dos discursos de ódio. Estudos mostram que governos de direita radical empoderam e normalizam discursos extremistas, como também foi o caso dos Estados Unidos sob o comando de Donald Trump”, explica David Magalhães, coordenador do Observatório da Extrema Direita e professor de Relações Internacionais da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

Ataques violentos contra escolas costumavam ser raros no Brasil, mas a recorrência aumentou a partir de 2019, conforme o “Raio-x de 20 anos de ataques em escolas no Brasil”, produzido pelo Instituto Sou da Paz.

Nesta época, em meio ao debate sobre afrouxar as regras de acesso civil a armamentos, um ex-aluno de 25 anos e um aluno de 17 anos invadiram a Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (SP), e assassinaram um comerciante local, tio de um dos agressores, a coordenadora pedagógica, a inspetora e cinco estudantes com idades entre 15 e 17 anos.

O ataque foi planejado por cerca de um ano e meio, por meio de trocas de mensagens. Minutos antes, um dos agressores postou foto nas suas redes sociais. Desde então, o caso se tornou inspiração para muitos atentados que aconteceram nos anos seguintes, com ampla disseminação nas chamadas comunidades mórbidas da internet.

Confira a linha histórica dos casos de violência extrema nas escolas

Fonte: VINHA, T., GARCIA, C., et al. Ataques de violência extrema em escolas: causas e caminhos. São Paulo, D3e, nov. 2023.

Quais escolas sofreram ataques

2001

Escola estadual em Macaúbas (BA)

  • Feridos: 6 estudantes
  • Vidas perdidas: 1 (atirador – suicídio)

2002 

Colégio particular em Salvador (BA)

  • Vidas perdidas: 2 estudantes

2003

Escola estadual em Taiúva (SP)

  • Feridos: 6 estudantes e 1 professora
  • Vidas perdidas: 1 (atirador – suicídio)

2008

Escola estadual em Cariacica (ES)

  • Feridos: 1 diretora

2011

Escola municipal em Realengo, Rio de Janeiro (RJ)

  • Feridos: 12 estudantes
  • Vidas perdidas: 12 estudantes e o atirador (suicídio)

Escola municipal em São Caetano do Sul (SP)

  • Vidas perdidas: 1 estudante

2012

Escola estadual em Santa Rita (PB)

  • Feridos: 3 estudantes

2017

Colégio particular em Goiânia (GO)

  • Feridos: 4 estudantes
  • Vidas perdidas: 1 estudante

Escola estadual em Alexânia (GO)

  • Vidas perdidas: 1 estudante

2018

Escola estadual em Medianeira (PR)

  • Feridos: 2 estudantes

2019

Escola estadual em Suzano (SP)

  • Feridos: 11 pessoas, entre estudantes e funcionários da escola
  • Vidas perdidas: 5 estudantes, 2 funcionárias da escola (coordenadora pedagógica e inspetora) e 2 atiradores (suicídio)

Escola estadual em Teresina (PI)

  • Não houve feridos

Escola estadual em Charqueadas (PR)

  • Feridos: 6 estudantes e 1 professora

Escola estadual em Caraí (MG)

  • Feridos: 2 estudantes

2021

Colégio particular em Americana (SP)

  • Feridos: 1 orientadora educacional

2022

(56,25% dos ataques aconteceram entre fevereiro de 2022 e junho de 2023)

  • Colégio particular em São Paulo (SP)

    • Feridos: 2 estudantes
  • Escola Municipal de Educação Infantil em Saquarema (RJ)

    • Não houve feridos
  • Escola municipal no Rio de Janeiro (RJ)

    • Feridos: 4 estudantes
  • Escola municipal em Vitória (ES)

    • Não houve feridos
  • Escola municipal em Barreiras (BA)

    • Vidas perdidas: 1 estudante
  • Escola municipal no Morro Chapéu (BA)

    • Feridos: 1 coordenadora pedagógica
  • Escola Estadual de Ensino Médio de Tempo Integral em Sobral (CE)

    • Feridos: 3 estudantes
    • Vidas perdidas: 1 estudante

2023

Escola estadual em Monte Mor (SP)

  • Não houve feridos

Escola estadual em São Paulo (SP)

  • Feridos: 2 estudantes e 3 professoras
  • Vítima fatal: 1 professora

Escola municipal no Rio de Janeiro (RJ)

  • Não houve feridos

Escola particular em Manaus (AM)

  • Feridos: 2 estudantes e 1 professora

Escola estadual em Santa Tereza de Goiás (GO)

  • Feridos: 3 estudantes

Escola municipal em Farias Brito (CE)

  • Feridos: 2 estudantes

Escola municipal em Campo Grande (MT)

  • Feridos: 1 mãe de um aluno

Escola estadual em Cambé (PR)

  • Vidas perdidas: 2 estudantes

Colégio particular em Poços de Caldas (MG)

  • Feridos: 3 pessoas
  • Vidas perdidas: 1

Escola estadual em Leme (SP)

  • Feridos: 1 estudante

Escola estadual em São Paulo (SP)

  • Feridos: 3 pessoas
  • Vidas perdidas: 1

OBS: Os pesquisadores do GEPEM identificaram três ataques em escolas realizados por agentes externos (que não foram praticados por estudantes ou ex-estudantes) e que deixaram vítimas fatais. Aconteceram em uma escola municipal de Janaúba (MG), em 2017, na escola municipal de educação infantil em Saudades (SC), em 2021, e em uma creche particular em Blumenau (SC), em 2023. 

“Esses grupos online se reúnem em torno de temas ou interesses relacionados a assuntos perturbadores, trágicos ou violentos, como assassinatos, massacres e tragédias”, explica Telma Vinha, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM) da Unicamp, responsável pelo mapeamento dos ataques contra escolas.

Se antes as comunidades extremistas costumavam estar restritas à deep web, agora estão cada vez mais acessíveis na superfície da internet, em redes sociais como X (antigo Twitter), Instagram, Tik Tok, Telegram, Discord e Reddit. Funcionam disseminando o ódio contra determinados grupos sociais e incentivam a violência como forma de impor valores compartilhados, ligados à misoginia, racismo, homofobia e supremacia branca.

“Mesmo adolescentes não extremistas estão expostos a conteúdos de violência”, pontua Telma, enfatizando a necessidade de regulação e responsabilização das plataformas digitais.

Os alvos da intolerância

“O que fomenta o extremismo é o ódio às diferenças e, por isso, ele chega em qualquer lugar, em qualquer escola”, define Catarina de Almeida Santos, professora da faculdade de educação da Universidade de Brasília (UNB). De acordo com ela, é preciso combater toda natureza de ataque, inclusive aqueles que vigiam e punem professores por trabalharem temas que promovem a valorização das diversidades.

“O extremismo alimenta e fortalece um discurso de controle sobre a escola”, observa o professor José Augusto Souza dos Santos, da Escola Maria Dias Trindade, em Paripiranga (BA). “Um professor considerado doutrinador, de acordo com extremistas, é aquele que instiga, provoca e ajuda os estudantes desenvolverem suas opiniões. Então, os discursos deles também incitam o ódio contra professores”, pontua o educador, que pesquisa o tema em seu mestrado.

O que fomenta o extremismo é o ódio às diferenças e, por isso, ele chega em qualquer lugar, em qualquer escola

“A ideia de que a educação não deve tocar em certas feridas da nossa sociedade é sedutora para o senso comum”, explica a cientista social Marcele Frossard, que atua como assessora de programas e políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. “Quando a gente tenta colocar a escola como um espaço neutro, fortalece a educação tecnicista em vez de uma educação democrática. A gente tira da agenda discussões sobre gênero, raça, classe social e sexualidade, e isso tem um impacto profundo na vida das pessoas e na nossa democracia”, ressalta Marcele.

Por outro lado, a escola não pode – e não deve – assumir toda a responsabilidade para a solução das violências que a atravessam, como destaca Catarina: “se a gente não olhar para a complexidade que envolve o extremismo, continuaremos atuando somente nas consequências e culpando as escolas pelas causas”.

Os rastros do ódio na escola

Para quem vive as consequências do ódio, a ação chega tarde. “Toda vez que um ataque se repete, o país falha com a minha filha e com todos que foram afetadas por essa violência”, afirma Adriana Silveira, mãe de Luiza Paula, assassinada aos 14 anos com um tiro disparado por um ex-aluno que invadiu a Escola Estadual Tasso da Silveira (RJ), em 2011. 

O episódio brutal ficou conhecido como Massacre de Realengo e tem seus detalhes retratados na série documental da HBO Massacre na Escola: A Tragédia das Meninas de Realengo. “Meu maior medo é que essa situação se banalize, que as pessoas comecem a achar que é mais um caso. Mas a gente não pode aceitar isso! Perder vidas dentro da escola é um retrocesso muito grande. Não estamos falando de números, mas de possibilidades de futuros que se esvaem”, afirma Adriana.

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Ouça o depoimento de
Adriana Silveira

Em um cenário como esse, as marcas que ficam na comunidade escolar vão além do luto e de traumas como os de Ilma, Miguel e Adriana. Conforme ressalta o estudo Ataques de violência extrema em escolas no Brasil, da Unicamp, também aumentam o risco de novas violências e contribuem significativamente para o surgimento de transtornos mentais, aumento do consumo de álcool e drogas, além do abandono escolar ou afastamento do trabalho.

Perder vidas dentro da escola é um retrocesso muito grande. Não estamos falando de números, mas de possibilidades de futuros que se esvaem

 

“A escola é um corpo social formado por grupos diversos que se interrelacionam e, por isso, está associada à identidade e ao sentimento de pertencimento. É diferente de um ataque a tiros em um terminal de ônibus, por exemplo”, explica Telma Vinha. “Os impactos negativos não recaem apenas sobre vítimas fatais e não fatais e suas famílias, mas também em todos os que continuam na escola, além de familiares e comunidade no entorno.”

Sob a coordenação de Telma, o GEPEM atuou no acolhimento e no retorno de atividades das escolas atacadas em Suzano (SP) e Aracruz (ES). A pesquisadora relata que foi preciso muita delicadeza e cuidado com os envolvidos. “Eles são o foco, não podemos lançar muita visibilidade em cima de algo tão sofrido”, diz. Ela conclui: “estamos lutando por políticas públicas em convivência democrática e cidadã na escola. É uma pena chegarmos a esse ponto para olharmos para o problema”.

Desinformação circula livremente pelas redes e coopta jovens para grupos extremistas

No auge da disputa eleitoral de 2022, o professor de língua portuguesa Ronney Marcos, do Centro de Excelência Atheneu Sergipense, em Aracaju (SE), percebeu que era necessário entender de onde vinham comentários enviesados que alguns estudantes faziam na sala de aula. Desconfiando das informações que circulam nas redes sociais, decidiu fazer um experimento controlado: criou um novo perfil no X (antigo Twitter) e começou a acessar contas que disseminavam desinformação. 

À medida que ele visualizava publicações e seguia determinados perfis, a própria plataforma se encarregava de indicar outros conteúdos semelhantes. “De repente, eu me vi dentro de bolhas que não imaginava que existiam”, conta Ronney. Infiltrado em comunidades mórbidas, ele se deparou com grupos que incitam o ódio contra mulheres, publicações baseadas em teorias da conspiração, questionamentos sobre a eficácia das vacinas, perfis que propagam a supremacia branca e discursos de ódio dos mais variados.

“Esses grupos tinham um engajamento gigantesco. Eu fiquei assustado com a forma como eles eram extremamente organizados e conseguiam manipular a linguagem a seu favor”, conta o professor, que usou o experimento e o seu relato pessoal como uma forma de alertar os estudantes sobre as múltiplas camadas de desinformação e de ódio que estão presentes na internet. 

Durante o experimento, Ronney desceu a chamada ‘toca do coelho’ para acessar as comunidades extremistas. Em uma alusão ao clássico livro ‘Alice no País das Maravilhas’, de Lewis Carroll, os especialistas usam essa expressão para descrever como as pessoas são atraídas para uma espécie de buraco, no qual são cada vez mais envolvidas por conteúdos de ódio e ataques às diversidades.  

Em muitos casos, como aponta o relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental“, produzido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, os jogos online, como Roblox, Fortnite e Minecraft, podem ser a porta de entrada para esse universo. Nesses ambientes, os jovens se comunicam em chats públicos e começam a ser “seduzidos” por discursos extremistas. Quando manifestam simpatia por essas ideias, são convidados a migrar para espaços menos monitorados, como comunidades do Telegram e grupos do WhatsApp. 

Toca do coelho

Em uma alusão ao clássico ‘Alice no País das Maravilhas’, de Lewis Carroll, a expressão “toca do coelho” é usada para descrever a forma como as pessoas são atraídas para uma espécie de buraco nas redes sociais. Ao serem fisgadas por algum tipo de conteúdo, elas são cada vez mais envolvidas por mensagens de ódio e ataques às diversidades.

Em redes sociais, como X, Instagram, Tik Tok, Facebook e YouTube, ao buscar conteúdos relacionados aos jogos online, os jovens também começam a ter contato com discursos mascarados. Ao interagir com eles, são levados pelo algoritmo para conteúdos cada vez mais extremos. “Não é que as redes sociais dão prioridade a esse tipo de conteúdo, mas ao compartilhar, encaminhar, visualizar e curtir, você alimenta o algoritmo”, explica o educador e jornalista Alexandre Le Voci Sayad, diretor da ZeitGeist e co-chairman da UNESCO MIL Alliance.

Existem inúmeras pesquisas que provam como a desinformação pega as pessoas pelo emocional, e não pelo racional

Por conta dessa lógica dos algoritmos, existe uma ligação direta entre o extremismo e a desinformação que circula no ambiente digital, segundo Alexandre. “Existem inúmeras pesquisas que provam como a desinformação pega as pessoas pelo emocional, e não pelo racional”, afirma. Então, explica, a estratégia por trás da propagação do ódio está justamente na atração de pessoas vulneráveis, seja por medos, ausências e abandonos ou até mesmo por terem sido vítimas de bullying. Nessas comunidades, elas se sentem acolhidas e, muitas vezes sem se dar conta, são recrutadas por um discurso sedutor, que pode ser enganoso, impostor, fabricado, falso, manipulado, impreciso ou parodiado. “O discurso de ódio vai se colar em quem está precisando ouvir uma resposta simplória e emocional. Ele não tem comprometimento com dados ou referências.”

“Os discursos de ódio são usados como uma estratégia para engajar as pessoas porque atingem o âmago dos seus preconceitos”, complementa a psicóloga Juliana Cunha, diretora de projetos especiais da Safernet Brasil. De acordo com ela, esses conteúdos têm sempre um alvo específico: negros, mulheres, pessoas LGBTQIAP+, pessoas provenientes de determinada região do país, como nordestinos e nortistas, e pessoas com uma determinada orientação religiosa, principalmente de matriz africana.

No último ano, de acordo com os indicadores da Central Nacional de Denúncias da Safernet, os casos de crimes relacionados a discursos de ódio na internet cresceram quase 70% em comparação com o ano anterior. Em 2022, os crimes de ódio que tiveram maior aumento foram xenofobia (874%), intolerância religiosa (456%) e misoginia (251%). Por sua vez, em 2020, as denúncias de neonazismo tiveram um crescimento de 740,7%, enquanto as de racismo aumentaram 147,80%.

 

Os discursos de ódio são usados como uma estratégia para engajar as pessoas porque atingem o âmago dos seus preconceitos”

Ao analisar esses dados, é preciso considerar que os discursos de ódio não crescem e se propagam apenas porque a sociedade é preconceituosa, conforme explica o advogado Camilo Caldas, relator do grupo de trabalho criado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania para combater discursos de ódio e extremismo. “Existem núcleos organizados trabalhando nessa propagação para ganhar capital político e dinheiro, já que esse conteúdo é monetizado pelas plataformas digitais.”

Em uma lógica de simplificação, sem qualquer evidência científica, muitas vezes os discursos de ódio são construídos a partir de teorias da conspiração. Meninos que sofreram desilusões amorosas são levados a acreditar que o feminismo precisa ser combatido. Negacionistas espalham ódio contra os judeus, afirmando que o holocausto foi inventado ou exagerado. Ultraconservadores disseminam o medo e convocam as pessoas a combaterem uma suposta ameaça comunista que vai colocar em xeque a liberdade, a família, a moral e as estruturas sociais.

Teoria da Conspiração

Hipóteses ou especulações para explicar assuntos complexos de forma simplista. Sem compromisso científico, as teorias da conspiração constroem uma narrativa de antagonismo do bem contra o mal, sugerindo que grupos de pessoas ou organizações têm um plano secreto para se beneficiar. 

“As teorias da conspiração constroem um antagonismo fica entre o bem e o mal. Elas impulsionam as pessoas a entrarem em uma cruzada para derrotar o mal”, diz a jornalista Beatriz Buarque, fundadora da organização não-governamental Words Heal the World (Palavras Curam o Mundo, em livre tradução), que capacita jovens para desconstruir discursos de ódio e extremismo. “Se você tem narrativas na internet oferecendo esse senso de pertencimento e essa oportunidade dos jovens bancarem o herói, eles vão continuar pulando de um vídeo para o outro, de uma plataforma para outra. Vão continuar produzindo dados para as redes sociais, é um ciclo.”

Para a especialista em tecnologias na educação Mariana Ochs, coordenadora do EducaMídia, programa de educação midiática do Instituto Palavra Aberta, é preciso entender os mecanismos algorítmicos que levam à radicalização dos jovens. “Quanto mais o jovem consome esse tipo de conteúdo, mais ele recebe esse conteúdo. Até que ele chega em um ponto que chamamos de câmara de eco”, explica. Esse fenômeno do comportamento algorítmico insere o indivíduo em um universo em que não existem opiniões divergentes, apenas conteúdos que reforçam suas crenças e opiniões pessoais. “Ele fica em um looping de conteúdos violentos, até que a sua visão de mundo passa a ser essa”, completa.

Câmaras de eco

Fenômeno do comportamento algorítmico que insere o indivíduo em um universo em que não existem opiniões divergentes. Ao ocultar conteúdos considerados irrelevantes ou indesejáveis para o usuário, as redes sociais passam a reproduzir apenas informações que reforçam crenças e opiniões. 

Nesses grupos, autores de massacres se tornam ícones. É comum encontrar mensagens de ataque às diversidades e simbologias neonazistas, como a máscara de caveira, que também foi utilizada pelo atirador de Suzano. Para eles, alcançar visibilidade por matar o maior número de pessoas possíveis é visto como uma espécie de prêmio. Por isso, muitos dos ataques às escolas são planejados e anunciados antes nas redes sociais.

“Precisamos aprender a reconhecer os sinais de alguém que pode estar sendo cooptado por um ambiente online de radicalização”, reforça Mariana. Na avaliação da professora Lília Melo, cofundadora do projeto Cine Clube TF, em Belém (PA), esses sinais podem estar muito mais próximos e visíveis do que os educadores e pais imaginam. “As sinalizações estão no corpo, na roupa, na linguagem, na postura, na entonação”, afirma a educadora, ao mencionar que é preciso enxergar esses sujeitos, fazer a leitura desse universo e, quando preciso, buscar ajuda. “Eles escrevem muitas coisas na carteira, na parede, na porta do banheiro. Será que o professor já foi ao banheiro do aluno dar uma visitada? Às vezes é importante.”

Apesar de defender que os educadores devem estar atentos a esses sinais, Lília reforça que a complexidade do problema exige um trabalho conjunto, entre famílias, escolas, governo e plataformas. “Não dá pra achar que vamos resolver o problema de violência dentro das escolas somente com escuta.”

Cooptados pelo extremismo têm características e experiências comuns, como o isolamento e muitas relações sociais pela internet

Os motivos pelos quais adolescentes se conectam com essas comunidades extremistas são tão complexos quanto as estratégias utilizadas para a radicalização. “É como um buffet de saladas em que o indivíduo agressor se conecta com diferentes conceitos extremistas e vai montando o prato dele de acordo com seus desejos e necessidades”, explica Michele Prado, que pesquisa processos de radicalização online e integra o Monitor do Debate Público no Meio Digital da Universidade de São Paulo (USP).

Ao acompanhar as pegadas digitais do agressor responsável pelo ataque em Cambé, em junho de 2023, Michele descobriu que ele havia passado por um processo de radicalização ao longo dos últimos quatro anos e que postava com frequência em suas redes sociais, principalmente no X (antigo Twitter) e no Facebook, vídeos com marcadores estéticos de grupos terroristas de extrema-direita, como ideologia incel, casaco do tipo sobretudo preto e gamificação da violência. O agressor também tem um perfil semelhante ao de outros autores de ataques: em geral, são jovens do sexo masculino, quase sempre brancos, com idade média entre 13 e 15 anos.

É uma geração que exige de nós, adultos uma nova postura

Eles estão inseridos em um contexto que o neuropsicólogo Hugo Monteiro Ferreira chamou de a “geração do quarto”. Passam mais de seis horas por dia visivelmente isolados dentro do quarto, constroem relações sociais majoritariamente pela internet, apresentam adoecimento psíquico e emocional, solidão e sensação de vazio existencial, sentimento de rejeição, incompreensão ou abandono e comportamento perigoso e/ou violento contra si mesmo (autolesão, ideação suicida, uso abusivo de álcool e drogas) e contra outros.

“Esse diagnóstico nos ajuda a entender por que alguns jovens se conectam com narrativas de ódio e violência na internet e se voltam contra a escola, que é um espaço público e concentrado de sujeitos. É uma geração que exige de nós, adultos uma nova postura”, afirma a socióloga Miriam Abramovay, coordenadora do programa de estudos e políticas sobre juventudes, educação e gênero da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso-Br). 

Entenda quais fatores potencializam a radicalização de adolescentes e jovens:

Fragilidade emocional e pressões da idade

Durante a adolescência, quando acontecem inúmeras transformações físicas, psicológicas e sociais, é comum que os adolescentes vivam diferentes lutos e conflitos. Sem plena maturidade emocional e até mesmo cerebral para lidar com as narrativas de ódio, eles se tornam isca fácil para grupos extremistas.

Vingança por bullying e humilhações sofridas na escola

Muitos dos episódios de ataques são justificados pelos agressores como vingança contra situações de bullying e humilhações sofridas durante o período escolar. Por serem expostos a inúmeras situações de violência, eles se sentem acolhidos por comunidades extremistas que, por sua vez, incitam o sentimento de revanche.

Busca por propósito e pertencimento

As novas gerações são atraídas pelo sedutor sentimento de pertencimento e de propósito. Na busca por aceitação, os adolescentes são facilmente fisgados por comunidades online que trazem visões polarizadas do mundo. Entre narrativas simplistas, eles desenvolvem o ódio contra um inimigo comum e toleram comportamentos violentos em nome de uma suposta missão.

Ausência de valores morais, éticos e democráticos

Por estarem em um período de formação e de constituição da sua identidade, os adolescentes estão suscetíveis a influências, tanto por parte dos pares e da família, como também das redes sociais e meios de comunicação. Nesse período, a ausência de valores morais, éticos e democráticos pode deixá-los vulneráveis aos discursos de ódio extremistas.

Falta de letramento midiático

Sem o desenvolvimento de habilidades para participar de maneira crítica do ambiente informacional e midiático, os estudantes são alvo fácil para narrativas simplistas, enganosas e recheadas de discursos de ódio.

Gestão democrática, educação midiática e educação para valorização das diversidades são caminhos para preparar os estudantes no combate aos discursos de ódio. Confira experiências em escolas públicas brasileiras que estão enfrentando o extremismo com o protagonismo dos jovens:

Para enfrentar situações de violência e narrativas de ódio na escola, é preciso saber nomeá-las e entender como elas se relacionam com questões históricas e estruturais da nossa sociedade. Nesta seção, listamos casos que acontecem diariamente em escolas brasileiras. Você já presenciou algo parecido?

Explore os cards e clique nas situações para se aprofundar. Você terá acesso a uma curadoria especial de ferramentas, experiências e referências que podem apoiar sua prática na escola.

Expediente

Concepção:

Andressa Basilio, Marina Lopes, Regiany Silva e Tatiana Klix

Edição:

Marina Lopes e Tatiana Klix

Reportagem:

Andressa Basilio e Marina Lopes

Design e Desenvolvimento:

Sintrópika

Fotografia:

Gesival Nogueira Kebec (CED 310 – Brasília/DF)

Júlio César Almeida (EE Tenista Maria Esther Andion Bueno – Campinas/SP)

Marina Lopes (Atheneu Sergipense – Aracaju/SE)

Vídeo:

Marina Lopes (Atheneu Sergipense – Aracaju/SE)

Animações

Sintrópika

Colaboração:

Foram entrevistados e consultados para a produção dos capítulos do especial: 

Adriana Silveira (mãe de estudante)
,

Alessandro Barreto (Laboratório de Operações Cibernéticas da Secretaria Nacional de Segurança Pública – MJSP)Alexandre Le Voci Sayad (ZeitGeist e UNESCO MIL Alliance), Arnaldo Silva (EE Tenista Maria Esther Andion Bueno), Beatriz Buarque (Heal the World), Camilo Caldas (GT do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania), Catarina de Almeida Santos (UNB), Celiana Moroso (CEF 16 de Ceilândia), David Magalhães (Observatório da Extrema Direita), Erison Lima (EETI Eng. Prof. Sérgio Alfredo Pessoa Figueiredo), Ilma Aparecida Alvez (mãe de estudante), José Augusto Souza dos Santos (Escola Maria Dias Trindade), Juliana Cunha (Safernet Brasil), Lília Melo (Cine Clube TF), Luciene Regina Tognetta (GEPEM/Unicamp), Marcele Frossard (Campanha Nacional pelo Direito à Educação), Margareth de Brito Alves (CED 310), Mariana Ochs (EducaMídia), Michele Prado (USP), Miriam Abramovay (Flacso-Br), Odilon Caldeira Neto (Observatório da Extrema Direita), Ronney Marcos (Centro de Excelência Atheneu Sergipense), Telma Vinha (GEPEM/Unicamp) e Yuri Norberto (Centro de Excelência Atheneu Sergipense).
Mentoria:

Thiago Reis

Apoio:

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