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Uma escola antirracista começa com o apoio da gestão

Em São Carlos (SP), coordenadora pedagógica criou projeto para valorizar cultura e história afro-brasileira desde cedo. Confira os detalhes da prática

Parceria com Isaac

por Alessandra Guerra da Silva Oliveira ilustração relógio 8 de agosto de 2023

As escolas, assim como as demais instituições, estão inseridas em uma estrutura social discriminatória e hierárquica e não estão imunes a práticas racistas. Por acreditar que a formação de uma sociedade antirracista depende da ação conjunta de todos, abri as portas da direção do Cemei (Centro Municipal de Educação Infantil) Olivia Carvalho, na cidade de São Carlos, interior de São Paulo, para colocar em prática, dentro da própria escola, um projeto pessoal que vai ao encontro do que propõe o PPP (Projeto Político-Pedagógico). A ideia se une à minha pesquisa acadêmica voltada à defesa da pedagogia antirracista como potência na luta por relações mais humanizadoras e dialógicas que respeitem as diferenças.

Intitulado “Vivências em africanidades na educação infantil”, o projeto teve várias etapas. A primeira foi convidar as professoras para um processo de formação, na perspectiva da Lei 10.639 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Deveríamos proporcionar às crianças do Cemei brincadeiras, rodas de conversa, danças e contação de histórias com personagens negros e negras protagonistas. O respeito à ancestralidade era fundamental, e queríamos envolver as famílias para fortalecer o aprendizado entre gerações. 

As ações deveriam ser contrárias às práticas pedagógicas tradicionais e mecânicas, onde as crianças e seus responsáveis não são escutados e seus desejos não são respeitados. A ideia central do projeto, portanto, estava no protagonismo das crianças como agentes ativos e participativos de todas as ações, desde o planejamento. Os familiares também teriam acesso a todas as etapas da jornada, sempre convidados a participar das práticas realizadas. 

Com as atividades desenhadas, contei com a professora Rosana Almeida, da sala de referência, para colocar as vivências em prática com sua turma de 19 crianças entre 5 e 6 anos. Realizamos 20 encontros sobre temáticas diversas, envolvendo também a equipe escolar. Para suprir a falta de recursos, como livros e instrumentos musicais, busquei parcerias com educadores que pesquisam a temática racial que compuseram as práticas descritas a seguir. 

Apresentação do projeto: reunimos os familiares e as crianças para a primeira dinâmica, a do autorretrato. Dentro de uma caixa, encontravam espelhos e comentavam sobre a imagem refletida. Também penduramos na sala os mapas do Brasil e do continente africano. O primeiro livro compartilhado foi “Alafiá: a princesa guerreira”, da professora Sinara Rúbia, contadora de histórias da Cufa (Central Única das Favelas). A história da princesa negra que, na luta contra a escravidão, tornou-se uma guerreira quilombola, acabou nos inspirando a desenhar e colar em cartazes retratos de príncipes e princesas negras africanas. 

Conversas sobre influências dos povos africanos: nos encontros seguintes, foi a vez de estudar os conceitos de dança para os povos africanos, com a importância da roda, as batidas, a integração do grupo e o fortalecimento de valores como empatia, compreensão e sentimento de pertencimento. Com a visita da educadora Vivian Parreira, debatemos e dançamos o Samba de Coco, dança de roda típica das regiões Norte e Nordeste, com forte influência africana.

A partir do livro “A menina e o tambor”, de Sonia Junqueira, sobre uma garota negra que ajuda as pessoas a ficarem felizes por meio da música, conversamos sobre empatia e a alegria dos sons. Em mais cartazes, as crianças desenharam instrumentos musicais da cultura afro-brasileira. 

Jogo de capoeira: convidei uma outra educadora, Mariana Correia, para a oficina de capoeira. O jogo é feito em roda, com as pessoas batendo palmas no ritmo do berimbau enquanto cantam para dois participantes jogarem. Com a professora Mariana, aprendemos o respeito que o jogo ensina. Cada criança criou um chocalho/caxixi, instrumento originário no Congo e em Angola, com materiais recicláveis. 

Rodas de leitura: os livros infantis nos ajudaram em diferentes etapas. Quando lemos “O Cabelo de Cora”, de Ana Zarco Camara, a conversa seguinte sobre diversidade, beleza dos cabelos e cores de peles rendeu um pedido inusitado: a turma queria escrever para a escritora, para dizer o quanto o livro é legal. “Somos todos lindos” e “O que importa é a pessoa ser como é, e não o cabelo” foram algumas das reflexões dos pequenos e pequenas, que ficaram muito felizes com o retorno da autora. Também debatemos a beleza do cabelo crespo e sua aceitação com base no livro “O mundo no black power de Tayó”, da autora ​​Kisuam de Oliveira.

Oficinas com as famílias: novamente, convidamos as famílias para a oficina das “Abayomi”. De origem iorubá, abayomi significa aquele que traz felicidade. Costuramos, com retalhos, várias bonequinhas negras. As bonecas Abayomi são um símbolo de matriz africana na educação formal, como explica esse texto do Portal Lunetas.

Em um outro momento, a partir da contação de história do livro “O tesouro de Monifa”, de Sonia Rosa, com ilustrações de Rosinha, fomos em busca da valorização familiar. A história de uma garotinha afrodescendente que ganha de presente escritos antigos de sua tataravó, Monifa, reforça o respeito à ancestralidade. 

A leitura inspirou duas atividades coletivas entre famílias e crianças: a construção das árvores genealógicas e das caixas de memória. Durante três meses, pedimos para os responsáveis e para as crianças colocarem lembranças dos seus ancestrais (avós, bisavós), como receitas, fotos ou objetos. Ao final, as caixas foram levadas à escola e inspiraram outras atividades, como as de culinária.

Brincadeiras: as crianças também aprenderam “Terra Mar”, brincadeira que surgiu em Moçambique, e “Guerreiros Nagô”, versão originária de “Escravos de Jó”. Conheceram a Amarelinha Africana, ou Teca-Teca, também de origem moçambicana, que não tem as casas de céu, inferno, números e não é jogada com pedrinhas, mas sim pelo ritmo musical.

De criança para criança: a turma de 5 e 6 anos foi convidada a recontar o livro “Cadê Clarisse”, de Sonia Rosa, para as crianças menores (de 2 anos) da escola. 

Papo com Oswaldo Faustino: jornalista e estudioso de relações étnico-raciais, Oswaldo também é autor de livros infantojuvenis. Convidamos toda a escola para o bate-papo sobre o livro “Iori descobre o sol, o sol descobre Iori” e falamos sobre a construção das caixas das memórias afetivas e do respeito à ancestralidade.

Cuidados com a natureza: Depois da leitura de “Plantando com Malik”, das autoras Carol Adesewa e Paulyane Nogueira, nós nos inspiramos no personagem que ensina as crianças a cuidar da natureza. No quintal da escola, plantamos sementes de girassol: tanto o momento de regar quanto a observação do crescimento das flores passaram a fazer parte do dia a dia da turma.

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Visita de campo: fizemos uma excursão ao Centro Municipal de Cultura Afro-Brasileira Odette dos Santos, cujo nome homenageia a sambista e representante do movimento negro do município, falecida em 1991. Fomos recebidos pelo coral “Eu canto minha África”. 

Oficina de culinária: a partir das receitas coletadas para as caixas de memória, as crianças colocaram a mão na massa e fizeram juntas o bolo de fubá da vovó do aluno Emanuel.

Resultados alcançados

Além das atividades, envolvemos todas as professoras da escola em mais conversas sobre a importância da educação das relações étnico-raciais. Quremos vivenciar práticas antirracistas e dialógicas no dia a dia escolar, bem como compreender os processos educativos desencadeados das vivências e brincadeiras realizadas com e para a educação das relações étnico-raciais, por meio da escuta ativa e atenta das crianças.

Os resultados desse processo tornaram-se visíveis nas falas e gestos dos alunos, que começaram a se identificar com a história e cultura afro-brasileira e africana, valorizando sua cor e seus cabelos, além do orgulho da ancestralidade e fortalecimento da autoestima. As famílias apoiaram toda a jornada ativamente, colocando-se à disposição a todo momento. Eles me viam como parte do grupo. 

Ao vivenciar diferentes práticas antirracistas com as crianças, fomos nos fortalecendo enquanto grupo escolar. Aprendemos, ensinamos, trocamos experiências que marcaram nossa essência.

O desenvolvimento do projeto “Vivências em africanidades na educação infantil” veio materializar a importância da parceria entre a nossa escola e as famílias, assegurando o direito de aprendizado e desenvolvimento de nossas crianças. Elas foram acolhidas em suas diferenças e especificidades. A busca pela identidade e pertencimento étnico-racial foi uma ação conjunta, cheia de amorosidade e dedicação, transcendendo os muros da escola. 

Como gestora comprometida com práticas antirracistas, espero que as ações possam inspirar outros gestores e educadores a compartilhar suas práticas e multiplicar a educação libertadora e livre do racismo.

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Isaac

Alessandra Guerra da Silva Oliveira

Graduada em pedagogia pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho), tem licenciatura em história pelo Centro Universitário FICO, mestrado em educação pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos e é doutoranda em educação também pela UFSCar. Trabalhou por 12 anos como professora da educação infantil do município de São Carlos (SP) e, atualmente, é coordenadora pedagógica do Cemei (Centro Municipal de Educação Infantil) Olivia Carvalho.

TAGS

educação antirracista, educação infantil, gestão escolar, socioemocionais

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