Barreiras do mundo real se mantêm nas redes digitais
Pesquisa com adolescentes londrinos mapeou suas interações sociais online e off-line e procurou entender que oportunidades de aprendizagem elas proporcionam
por Camila Leporace 31 de outubro de 2016
A pesquisadora britânica Sonia Livingstone, professora de Psicologia na LSE – London School of Economics and Political Science, com mais de 25 anos de experiência em estudos sobre a relação entre os jovens e as redes digitais, uniu-se a Julian Sefton-Green, também especializado no assunto, para passarem um ano ao lado de um grupo de adolescentes londrinos e entender como eles vivem. A pesquisa resultou no livro “The Class: living and learning in the digital age” (“A aula: vivendo e aprendendo na era digital”), que pode ser lido online. O estudo é parte dos projetos conduzidos pela Connected Learning Research Network, que tem o apoio da MacArthur Foundation.
O trabalho procurou analisar de perto a mistura de experiências, online ou offline, vividas pelos jovens em seu cotidiano. A pesquisa foi realizada em parceria com uma escola de Londres, na Grã-Bretanha, e envolveu o acompanhamento dos adolescentes, de 13 e 14 anos, na escola, em casa e em outros lugares que eles frequentaram durante um ano escolar, onde foram observadas suas interações sociais. Sonia e Julian conduziram entrevistas com os jovens, seus pais, professores e outros agentes que consideraram relevantes, e mapearam as interações dos adolescentes com redes digitais fora da escola para encontrar padrões de uso e identificar o significado dessas interações para suas oportunidades de aprendizagem.
Os jovens de hoje têm mais oportunidades do que seus pais? O processo de construção de suas redes sociais e digitais lhes oferece novos caminhos para aprender e fazer amizades? Como eles transitam por oportunidades de aprendizado formal e informal num mundo conectado, mas ferozmente competitivo e altamente individualista? O que é esperado dos pais e o que os pais realmente fazem, ao criar seus filhos na era digital? Estas foram algumas das perguntas que Sonia e Julian procuraram responder em seu estudo.
Em vídeo de divulgação do livro, a pesquisadora reforça que, por ter sido centrado em um grupo de jovens de Londres, não se pode dizer que o estudo reflete todos os jovens, de todos os lugares; mas ela acredita que ele pode ser uma base para que se reflita sobre outras realidades, traçando paralelos. “É também um convite: é esse o caso em outras localidades, ou há diferenças? E, se não for, por quê?”
Desconexão e privacidade
A pesquisa levou Sonia e Julian a concluir que há, ainda, muita desconexão num mundo que se diz hiperconectado. “A promessa de uma sociedade mais conectada permanece; mas parece apenas isso, uma promessa”, dizem os autores.
Exemplificando com uma competição internacional de que participaram os alunos da escola que eles acompanharam, os pesquisadores apontam a preocupação com a separação dos diferentes papéis de cada um e como isso influencia na restrições ao uso de certas tecnologias. Diante da possibilidade de criar um grupo no Facebook para ser usado como fórum de discussões para um trabalho em equipe, a professora da turma teve receio de que os alunos tivesse acesso ao seu perfil na rede social. Os alunos, por si mesmos, criaram um grupo, mas também demonstraram temor de que a professora visse seus perfis.
Os pesquisadores destacaram, ainda, a preocupação da professora analisada com a preservação da autoridade da escola. Um exemplo dessa reserva foi a opção da professora pelo uso de formas de comunicação unidirecionais, “um-para-muitos”, como e-mails e mensagens de texto. E sua postura estava de acordo com a da escola como um todo. A justificativa para essa escolha era a de que lidar com muitas respostas enviadas por estudantes ou entrar em muitas negociações diferentes exigiria muito tempo e dedicação, além de por a autoridade da escola em risco. “Como documentamos, tanto professores como jovens têm investido bastante para manter suas esferas de interesses e identidades separadas”, revelam os pesquisadores.
Entre amigos, fortes interações online e offline
Ficou claro para Sonia e Julian, por outro lado, o entusiasmo maior dos alunos para participar presencialmente de pequenos grupos locais de discussão do que de se engajar em redes sociais ligadas à competição, que era um projeto global e contava com canais no YouTube, grupos no Facebook, um Twitter, entre outros recursos. “Vimos realmente pouco uso das tecnologias para conectar pessoas ou atividades entre os locais, especialmente de maneiras que abririam novas oportunidades de aprender e participar”.
No entanto, em situações em que o principal objetivo dos jovens era conectar-se com os amigos quando separados deles fisicamente, prevaleceu o uso considerável de tecnologias – via games ou redes sociais. “Isso por si só nos mostra algo: diante das fronteiras impostas pelos adultos, os jovens aproveitam o potencial das redes digitais para reconectá-los. O mesmo não acontece quando os adultos são os que iniciam essas conexões; nesses casos, os jovens tendem mais a abandonar do que a acompanhar esse movimento, seja ele digital ou não”.
Pesquisa trouxe surpresas
Depois de muitos anos de dedicação ao entendimento das relações entre os jovens, a mídia e a tecnologia, Sonia Livingstone ainda teve surpresas resultantes da abordagem escolhida.
“Foi um desafio passar tanto tempo com um grupo de adolescentes e, no início, nós não estávamos certos de que eles permitiram que nós os conhecessem de verdade. Então, nossa primeira surpresa foi a de que eles deixaram, e nós nos interessamos pelo interesse deles em falar conosco”, contou Sonia ao Porvir. “Ao que parece, os jovens não têm muitos adultos interessados neles, além de seus pais e professores, e nós os ouvimos sem julgá-los, então eles gostaram de discutir suas ideias e sentimentos conosco como uma maneira de ajudá-los a pensar sobre suas vidas”.
Segundo Sonia, outra surpresa foi com relação a certas suposições sobre os jovens que se mostraram equivocadas, entre elas as de que eles seriam “ansiosos com relação ao futuro, viciados em seus smartphones, pressionados pelos trabalhos escolares, obcecados por serem como os outros jovens ou desejarem se tornar celebridades”, nas definições da pesquisadora.
“Parte disso era um pouco verdade para alguns deles, mas em sua maioria eles se mostraram lúcidos e sensíveis. Eles enfrentam problemas, mas que não estão relacionados aos tópicos alardeados pels mídia como motivo para pânico; se mostram preocupados com suas famílias, enfrentam desafios ligados a renda e oportunidades, e se preocupam em encontrar espaço para ir atrás de seus interesses”.
Relação com os pais
Segundo Sonia Livinstone, a maioria dos jovens pesquisados diz que recorreria a seus pais caso estivesse enfrentando algum problema. E muitos dos pais sentem que conhecem seus filhos muito bem. Porém, ela acredita que essa relação poderia melhorar, e dá alguns exemplos.
“Adolescentes odeiam que os adultos perguntem a eles ‘como foi na escola’, quais são suas notas e o que querem ser quando crescerem. Os pais odeiam falar com os filhos sobre sexo, relacionamentos, emoções. É uma boa ideia que os pais compartilhem algumas atividades digitais com seus filhos – não suas redes sociais, mas quem sabe a decisão quanto ao que fazer num feriado, juntos”, sugere.
É preciso aprofundar
Em suas pesquisas, Sonia Livingstone tem se dedicado intensamente às questões que envolvem o aspecto da segurança no uso da internet, especialmente no que diz respeito ao universo de crianças e jovens. Porém, ela não se limita a pensar sobre os riscos, que seriam somente parte da questão, e considera importante que haja um aprofundamento em tópicos ligados a educação, mídia e tecnologia no século 21.
“Eu considero superficial a abordagem da sociedade em relação às oportunidades ligadas à mídia digital, até o momento”, diz Sonia. “Muito se tem pensado sobre os riscos. Mas, se você pede que pais e professores citem um bom site para crianças, eles não conseguem nomear um número maior do que os dedos de uma mão. Se você pergunta a eles se os recursos online que os jovens usam oferecem possibilidades de desenvolvimento e aprofundamento de conhecimentos, eles não sabem dizer. Se você pergunta se os jovens encontram online os melhores recursos para alimentar seus interesses individuais, e como eles poderiam saber disso, eles revelam nunca ter pensado sobre o assunto. Compare isso com a reflexão – apoiada por bibliotecários de escolas, por exemplo – sobre a importância dos livros para as crianças. É hora de aprofundar”.
O papel da escola
Nesse cenário, a educação é apontada pela pesquisadora como a principal fonte para os jovens desenvolverem seu pensamento crítico, e as escolas teriam um papel essencial e específico nisso. “Os pais podem perguntar, ocasionalmente, a seus filhos se eles têm usado um bom site ou se os recursos que eles têm encontrado online são confiáveis. Mas, somente as escolas têm a experiência para realmente ensinar, por meio de atividades estruturadas e dando o feedback apropriado, sobre as origens e focos dos recursos online, quem paga por eles, o que eles informam ou como querem te persuadir, como se deve comparar sites e decidir em qual confiar”.
Sonia Livingstone faz um paralelo entre o papel de um treinador esportivo e o papel que a escola deveria assumir frente ao uso da tecnologia na aprendizagem. Segundo ela, da mesma maneira que o treinador passa algumas regras e dá alguns lembretes antes de começar um jogo, sem deixar de focar no esporte em si, é importante fazer isso com as mídias digitais. “Algumas regras de segurança, alguns lembretes, mas o ponto crucial é ajudar os jovens a desenvolver seu potencial, seus interesses, a julgar seu desenvolvimento por si mesmos e a lidar com suas expectativas”. Sonia destaca, ainda, que as atividades que os jovens fazem transitam entre o online e o offline, sem uma separação clara entre esses meios, e os professores devem ajudá-los a aprender independentemente de qual meio eles estejam usando.
Para refletir
Questionada sobre qual tema Sonia sugeriria para as pessoas que trabalham com educação no mundo todo, ou sobre um problema para resolverem juntos, ela sugere que se pense em como estimular as crianças e jovens a pensar criticamente, e a aprender online de forma ativa e engajada.
“Porque com frequência eles (os especialistas em educação) consideram que ser ‘crítico’ significa aprender a não fazer certas coisas, em vez de encontrar maneiras melhores de fazer essas coisas online. E porque eles se preocupam, nesta era de aversão ao risco em que vivemos, com os jovens realmente se engajando online. E porque eles se preocupam tanto com a proteção dos adultos que se esquecem de que os jovens são agentes, e podem resolver as coisas por eles mesmos, com o nosso apoio”.