Belém luta enquanto dança
Entre batuques e debates, a COP30 em Belém revela contrastes entre a urgência climática e as desigualdades locais. Uma reflexão sobre a luta pela Amazônia, as políticas globais e o poder das vozes amazônidas, com direito a samba, poesia e até um hit paraense
por Marcela Castro
25 de novembro de 2025
Baku, Glasgow, Bonn, afrouxem suas gravatas, Belém usa saias floridas e luta enquanto dança. Na segunda e última semana de COP30, a primeira na Amazônia, os batuques paraenses mostraram ao mundo que uma conferência climática precisa ser popular, porque manter a floresta em pé é manter as pessoas de pé.
E gente de pé caminha pela cidade. Durante a COP, além dos espaços oficiais sob a administração da ONU (Organização das Nações Unidas), era possível visitar casas criadas pela sociedade civil para discutir sustentabilidade, clima, representatividade, cultura. Nesses aproximadamente 60 espaços, diálogos com lideranças mundiais, como Davi Kopenawa na Casa Ninja, somaram-se a conversas com quem é de Belém, como historiador Michel Pinho, na Casa Pará. Amazônidas que são, ambos colocaram luz sobre a urgência de serem implantadas medidas reais no combate à “queda do céu”, o que envolve preservar o patrimônio, seja ele natural, seja ele histórico. Ver a movimentação provocada por iniciativas dessa natureza foi lindo de viver.
📳 Inscreva-se no canal do Porvir no WhatsApp para receber nossas novidades
Ao mesmo tempo, esse locomover-se revelou partituras da desigualdade. Minha cidade tem uma das piores mobilidades urbanas do Brasil. Aqui, é recorrente encontrar ônibus a diesel parados, “no prego”, no meio da via pública, enquanto passageiros esperam por outro coletivo. A frota que opera em Belém é antiga, mal conservada e com rota de reduzida capilaridade. Mas não para quem estava credenciado na COP. Coletivos elétricos, novos, frequentes e ecológicos, com excelente densidade de rede transportavam quem tinha o pin do Curupira preso à credencial escrita em inglês. Vir de fora poderia significar a mobilidade socioambientalmente sustentável, exclusiva para os participantes do evento. Todos os moradores esperam que, passada conferência, esses ônibus façam parte da frota que opera para quem fala égua e toma açaí sem granola.
Essa espera por justiça climática na mobilidade é acompanhada pelos contrastes que bailaram dentro e fora da conferência. No Carnaval, o Brasil vê gringo dançar samba com o gingado de uma geladeira. Em Belém, não foi diferente: a ambientalista alemã Alica Rogova se tornou a metonímia de quem bailou entre uma conversa sobre desmatamento e a busca pela manutenção da vida, mostrando toda a malemolência de quem é criado à base de strudel. A dança indefectível foi tão marcante que Alica até ganhou uma música: o hit paraense “La Gringa”, um sucesso que ultrapassa as plataformas de streaming.
Nem tudo, porém, tem o ritmo viciante do rock doido, é preciso ver além do que é dito. Esse enxergar a mais me pareceu a partitura da COP30 no que deveria ter sido central: as decisões. Apesar dos mais de 100 países que manifestaram apoio ao Mapa do Caminho para o Fim dos Combustíveis Fósseis, que se desenhava na primeira semana, ele foi apagado em definitivo do discurso dos países ricos. E não para por aí: no texto final da conferência, já no dia 22, foi aprovado o Programa de Transição Energética Justa, sem nenhuma referência aos minerais.
Leia mais:
- Materiais gratuitos apoiam escolas a integrar educação ambiental ao currículo|
- 11 livros infantojuvenis para inspirar debates sobre educação ambiental
Explico: é fácil defender energia eólica e energia solar sem considerar a necessidade de silício, ferro e alumínio na construção de placas fotovoltaicas e turbinas. E vocês sabem de onde sai grande parte desse minério? De Carajás, município a 10 horas de Belém, aqui no Pará, estado-sede da COP, que segue com as crateras vistas do alto, com rios de água doce sendo amargados. Carlos Drummond de Andrade, no passado, escreveu sobre a destruição dos rios de Minas provocada pela exploração mineral. Em Belém, porém, não há poesia no apagamento de algo tão sério.
Ainda assim, a cidade marca seus passos ao som da esperança. Às vezes, ela é ofuscada pela xenofobia disfarçada de preocupação ou indignação política, como quando um incêndio atingiu a área de alimentação da Blue Zone, espaço sob jugo da ONU, onde ocorriam as plenárias. Nesses dias-COP, as redes sociais pegaram fogo com discursos de ódio de quem não tolera ver a Amazônia no centro, propagando uma leva de desinformação. Nos anos 80, Ignácio de Loyola Brandão se inspirou em pessoas comuns e comportamentos do cotidiano para compor os personagens de sua distopia brasileira, Não verás país nenhum, dentre os quais estão os “civiltares de segurança” – um grupo que apenas obedecia sem questionar e protagonizava ações irascíveis contra seus concidadãos. Puro Brasil 2025.
Ainda por causa desse fogo, houve quem apoiasse o discurso xenofóbico do chanceler alemão contra Belém, mostrando a adoção de ‘máscaras brancas’, como bem pontuaria Frantz Fanon. Em um país de plurietnia forjada à base de sofrimento, o único foguinho comemorado deveria ser o de Gaby Amarantos, com seu hit que nos convida para uma “festa de aparelhagem pra ouvir um brega”. Infelizmente, nem todos têm a graça de Alica.
Na última semana da COP, também escutamos músicas que cantam para mulheres e meninas. O motivo? Segundo documento oficial, agora gênero é infraestrutura da transição climática, enfim, entendeu-se que não existe ação climática eficiente se não existir equidade de gênero. Por isso, todos os dados relacionados ao clima deverão ser divididos por gênero, com ações de impacto voltadas em especial para mulheres e meninas, tão afetadas pelas nocivas transformações na natureza.
Como professora na Amazônia, saber disso me fez enxergar minhas antigas alunas da escola pública, muitas vezes afastadas da sala de aula para colherem açaí durante a temporada do fruto. Em um ano em que nós, professores, debatemos tanto sobre a misoginia abordada na série britânica “Adolescência”, esquecemos de adicionar um “s” marcador de plural: “adolescências” são múltiplas, mas falar sobre todas elas envolve entender que essa palavra é feminina. Meninas e mulheres devem ser maestrinas do seu existir, protagonistas da própria vida.
Um outro protagonismo chamou a atenção de quem escuta as músicas de várias estações: as big techs vistas como protagonistas no combate à crise climática, como solução na preservação da natureza, ao lado de questionamentos sobre os impactos ambientais dos data centers, espaços dos quais essas empresas necessitam para resfriar. Para quem não lembra, o Pará é um dos estados que comportam o maior aquífero em volume d’água no mundo, o aquífero Alter do Chão. É preciso lembrar disso quando olhamos a organização da Green Zone – área de visitação livre na COP – era semelhante a uma feira. Tenho receio de nossa água já ter sido entregue, enquanto uma marcha fúnebre se avizinha.
Belém, mesmo assim, dança enquanto luta. A COP chegou ao fim, e com ela partiram os transatlânticos e aviões lotados de políticos, ambientalistas e jornalistas – muitos dos quais só conheciam a Amazônia pelas fotos. Quem aqui fica sabe que tem melodia legítima, que não precisa ser legitimada por ninguém, mas o combate à crise climática é feito de forma coletiva, uma orquestra, um grande batuque com tambores de todas as nações. Que possamos, todos juntos, escrever a partitura de nossa sobrevivência.
Marcela Castro
Licenciada em Letras pela UFPA (Universidade Federal do Pará), especialista em educação inclusiva e mestre em Estudos da Linguagem, atua como professora de língua portuguesa na Secretaria de Estado de Educação do Pará e na Casa da Redação, em Belém. Com 25 anos de experiência em sala de aula, soma sua trajetória no magistério à curadoria de eventos literários, como a Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes, além de coordenar o projeto de Educação Midiática do Amazônia Vox na Escola Estadual Antônio Lemos. Como mãe atípica, entende que o mundo possui muitas vozes que precisam ser ouvidas.





