Criatividade não é uma festa
Em artigo, líder do Uno Internacional reflete sobre o processo de criação para gerar inovações
por Pablo Doberti 17 de fevereiro de 2016
A criatividade não é uma festa. É uma conduta, uma sustentação ética. Não depende de desprendimento, mas de aperto. Não é um arrebatamento, é um sistema. Não aparece prontamente em qualquer um, mas, sim, se constrói trabalhosamente. Não é eminentemente genética – ainda que possa haver algo relacionado -, é substancialmente simbólica. Não depende da conformação do criativo, senão de sua constituição; é o software, não o hardware das pessoas. Não pode existir – como quase nada – se não se está bem alimentado de estímulos, quer dizer, de vida cultural aberta e intensa.
A criatividade, como genialidade, não é um ato único em uma pessoa qualquer; é uma consequência quase necessária de algumas pessoas particularmente desenvolvidas, criativas e geniais. A criatividade não se define pelo que foi criado, mas pelo criador. Não digo que os geniais sejam os eleitos; digo que os geniais são os que conseguiram. Não se alcança apenas por tentar; não é uma questão de sorte; costuma custar a vida inteira. O criativo investiu muito mais do que Bill Gates.
O mito do garoto prodígio nos confunde, nos atrofia eticamente e é essencialmente falso, ainda que com exceções. Não se nasce, se faz. Lionel Messi é um milhão de vezes melhor do que eu jogando futebol, mas tem milhões de horas a mais de esforço e trabalho com a bola do que eu; o mesmo ocorre com Jorge Luis Borges com as letras e Pablo Picasso com os traços. Ninguém será Albert Einstein apenas por viver a vida de entrega, esforço, foco, obsessão, ilusão e tesão de Einstein, mas, não há nem haverá Einstein possível sem essa vida de entrega. Para Quentin Tarantino, as histórias não aparecem enquanto ele está dormindo, nem John Lasseter roteiriza em transe. Os dois trabalham mais do que se imagina e descartam mais do que poderíamos pensar.
A criatividade não acontece quando as constrições desaparecem. Candidamente liberados dos condicionamentos, não nos tornamos criativos, nos tornamos repetitivos. A falta de impedimentos não garante a produção. Senão, todos os duques seriam nobéis. Os ambientes criativos devem ser sistemas ativos de construção de estímulos e caminhos; precisam ser atmosferas intensas, tensas, quentes, apertadas e densas. Se nos largarmos, nada virá; precisamos de ajuda, de guia e de desafios.
A vida do criativo é atormentada e árdua. Não idealizemos. O gênio fracassa muito mais do que acerta; e em geral não sente que acerta, nem quando acerta; põe ponto, vai para a outra linha e continua. Nunca chega; sua característica é buscar; e se sente que chega, em geral se atrofia. Se realiza no processo e se justifica no processo. O Walter Benjamin mais ilustre se suicidou e com Van Gogh já sabemos o que aconteceu. Custa muito trabalho inovar, quero dizer.
As invenções são partos, não adoções. O que está por vir não existe e surpreende. Onde não cabe mais nada, funda-se um espaço novo. E as reações costumam ser negativas, antes de qualquer outra coisa. E com você, o quê? E por quê? E para quê? Tem provas? O novo incomoda. Desestabiliza. Desestabiliza porque surge no seio do estabelecido e desbanca os latifúndios conceituais. Redefine os mapas políticos. As criações são difíceis porque ocupam espaço nesse mundo, não em outro. Se fosse em outro mundo, seria mais fácil e imensamente menos significativo. Cada vez que se inventa algo, se está acabando com algo. É guerra. Tudo ocorre em uma trama dicotômica de tensões binárias. Assim que Borges foi genial, a turba realista perdeu sentido. Quando Copérnico, então Ptolomeu… É sempre assim.
A criação é política e tem custos políticos. Redistribui o que governa, quer dizer, tem poder. Reescreve e define novamente as matrizes de valor e de sentido. É como uma coisa de loucos, mas é assim: substituímos cada porção no mundo por outra e seguimos adiante, mas nada é igual. Houve um crack; alguns avanços que nos traçam outros caminhos. E corre sangue, seja no terreno que for.
Digo tudo isso porque não nos ajuda essa aura ingênua, cândida e leve que acompanha a criatividade e a considera como se estivesse sequestrada. Parece coisa de crianças, de loucos e de marginais em geral; parece processo de desintelectualização e ausência total de cálculo e sistema; parece revelação do que está vazio e não realização do que está obcecado; parece jogo e parece fácil, mas não é. Não devemos deixar que pareça. É prejudicial essa careta infantil.
O inovador não é o que diz que é; são outros. Em geral não ostenta. Pergunte-lhe algo que não o interesse, parecerá um idiota; fale sobre o que o deixa obcecado e então me contarás. Peça que se apresse e o mandará para longe. Tente dominá-lo. Perceberá – se o observar mais agudamente – que não está conectado com tudo; tem uma certa lógica econômica que o leva a ocupar suas capacidades com as coisas que alimentam suas intencionalidades; tende a não ocupar quase nada – nem a memória, nem os bolsos – com o que considera supérfluo, seja dinheiro ou seja a lista de supermercado. É concentrado e tende à concentração; sempre corre o risco de se saturar e muitos deles se saturam.
A criatividade, muitas vezes, nos parece espontânea e nos confunde a todos. Parece tão leve, tão ternamente fluida e etérea que nos dá a entender que, para consegui-la, ninguém transpirou, nem sofreu, nem fracassou, nem errou, nem deixou cair nenhuma lágrima e depois riu por vários minutos sem saber por quê; adota a forma do dom, quando, na realidade, é uma construção. Não sei porque é assim, mas a inovação se obstina em nos contar uma falsa história de solturas, transparências, inspirações súbitas e revelações místicas.
Tampouco sei por que é assim. Seria mais fácil se nos avisasse que por trás dela há tempos, sistematizações, rotinas, éticas, atitudes e atmosferas complexas, instáveis, difíceis de implantar e dificílimas de manter; que não acontece se não se dá um conjunto de conexões improváveis e de tempos sincronizados; que não traz alegria de imediato e que não tem o prazer como sentimento predominante; que custa muito, tanto em termos de tempo como de tomada de posição. Mas, não. Será que sabe que se não aprendermos por nós mesmos as coisas não funcionarão? Será que intui que descobri-lo já é um grande primeiro passo para consegui-lo?
Antes era o “jogo bonito” e agora se chama “tiki-taka”, mas é o mesmo: uma maneira de jogar futebol que presta culto ao domínio, elogio da técnica e põe a estética antes do resultado e, ainda assim – ou talvez por isso – inclusive acaba ganhando. Uma maneira que parece provir da liberdade total e um pouco da ingenuidade (Garrincha foi o ícone) e, cada dia mais, nos inteiramos de que, muito pelo contrário, é filha de um rigor inclusive exagerado, de uma obsessão quase doentia e de uma intensidade pouco compatível com a vida. A criatividade não se aguenta; a genialidade não é sustentável. O desejo também mata, como nos ensina a psicanálise.
A criatividade não é uma festa, felizmente. Não se arranja com álcool, nem outros preparados do tipo; não requer sexo casual. É, sim, a sistematização da transgressão conceitual. É o elogio sustentado da outra face. É uma conquista árdua, uma tarefa trabalhosa e louvável.
Por isso, se por acaso em sua vida ou em seu trabalho a criatividade ou a inovação andam por aí, por favor, preste atenção. Não deixe que lhe vendam as falsas, nem se conforme sem as verdadeiras. Concentre-se e busque-as.
Pablo Doberti
Licenciou-se em Psicologia e atendeu uma única paciente, que não voltou depois do primeiro encontro. Desde então, traça os caminhos da educação. Nasceu com a literatura, se por literatura entendemos, simplesmente, a escrita. Sente que morrerá com ela. Anda inquieto há pelo menos 20 anos. Inquieto por nossas escolas. Sabe que não servem e quer ser útil e construtivo na discussão de como desmontá-las e substituí-las. Lidera o UNO Internacional, atuação que acredita ser uma boa maneira de provocar a mudança educativa que defende.