Políticas públicas duradouras tornam Piraí uma cidade digital
Em município no interior do Rio de Janeiro, tecnologia faz parte da rotina de todos, dentro e fora da sala de aula
por Mariana Mandelli, do Todos Pela Educação 24 de agosto de 2015
O ano era 2007. A notícia de que o computador passaria dali a um tempo a ser ferramenta fundamental nas aulas assustou a professora Laudicéia Faria Marques, da escola Escola Municipal Lúcio de Mendonça, de Piraí, a 80 quilômetros do Rio de Janeiro. “Não fazia ideia de como usar aquilo com os alunos – mesmo porque eu também não tinha familiaridade com a tecnologia”, lembra a docente, numa tarde de maio de 2015, enquanto pedia para a turma de 1º ano acessar o site do Menino Maluquinho, para brincarem com jogos didáticos relacionados ao tema que ela e os estudantes vinham estudando nas últimas semanas. “Os encontros de formação foram essenciais para que eu aprendesse a gostar de tecnologia e compreendesse que ela veio para me ajudar nas aulas”, conta a professora, dando pistas de que, no caso dela, os equipamentos tecnológicos não caíram do céu, sem qualquer planejamento e intencionalidade pedagógica.
Com 27,5 mil habitantes, Piraí é considerada uma cidade digital. Tem Wi-Fi gratuito em praças, prédios públicos – incluindo todas as escolas das zonas urbana e rural – e em quase todos os bairros (para moradores cadastrados). Na rede pública de ensino, os alunos receberam notebooks de baixo custo chamados de classmate. O caminho digital escolhido pelo município para permitir que piraienses acessem a internet pelos celulares nas ruas da cidade e que as crianças da professora Laudicéia operem computadores com destreza é fruto da continuidade das políticas públicas na área, que começaram a ser implantadas nos anos 1990.
Um pouco de história
O nascimento de Piraí como cidade digital ocorreu na década de 1990, quando a cidade entrou em crise por conta da privatização da Light, que provocou a demissão de 1.200 pessoas. Para recuperar a economia piraiense, a administração investiu em estrutura tecnológica para atrair novos investimentos empresariais. O então prefeito Luiz Fernando Pezão (PMDB), atual governador do Rio de Janeiro, lançou o Plano Diretor de Informática da cidade, em 1997 – ano em que havia apenas seis computadores funcionando na prefeitura. O plano, elaborado em conjunto com a Universidade Federal de Brasília (UnB), definiu estratégias de implementação de tecnologias de ponta em diversos setores da administração municipal – entre eles, a educação.
Com um investimento inicial de R$ 1 milhão, sistemas de informática passaram a ligar todas as secretarias. Por conta disso, a prefeitura teve que investir em rede, em capacitação dos servidores, em hardware e em software. Ali surgia o sonho de uma rede sem fio cobrindo toda a cidade, que se tornaria realidade alguns anos depois.
Hoje, a cidade conta com um sistema híbrido, que tem suporte wireless (Sistema SHSW), de cobertura em todo o território iluminado, atingindo o centro e todos os distritos, e uma rede pública de transmissão de dados e voz.
O projeto
Nascia então o Piraí Digital, uma iniciativa de política pública focada no desenvolvimento por meio da inclusão digital e do direito à informação e à comunicação. O projeto trouxe para a cidade tecnologias de transmissão de voz, dados e imagens em banda larga. No caso dos bairros atendidos, o acesso é liberado apenas para os moradores cadastrados na prefeitura. Visitantes têm acesso nos locais públicos. Em janeiro de 2015, eram 14.440 residentes atendidos – dois anos antes, somavam pouco mais de 5 mil.
Na área da educação, a prefeitura investiu progressivamente na informatização de 20 escolas públicas da cidade e em outros espaços educacionais, como os telecentros (salas públicas onde os habitantes podem usar computadores gratuitamente) e a biblioteca. A Secretaria de Educação desenvolveu conteúdos e materiais didáticos digitais e realizou cursos de capacitação docente. Desde o início do processo, optou-se pela adoção do software livre nos computadores da cidade.
A receita
Três pontos fundamentais garantem, até hoje, o funcionamento do Piraí Digital: as parcerias (com empresas, entidades, governos e universidades); o tamanho do município (população inferior a 30 mil habitantes) e a continuidade das políticas públicas na área, mesmo com as trocas de gestão. “No início, buscamos muito as parcerias e acho que esse foi nosso diferencial. Agora, nós é que somos convidados a implementar as novidades – como os softwares de realidade aumentada para serem usados nas aulas de ciências e história, por exemplo”, explica Mônica Norris Ribeiro, professora formadora e responsável pedagógica da equipe de tecnologia educacional de Piraí.
“Quando pensamos em Piraí, pensamos na continuidade da politica pública. Esse talvez seja o maior efeito da eficiência que as novas tecnologias trouxeram para a cidade”, comenta José Armando Valente, pesquisador do Núcleo de Informática Aplicada à Educação (Nied) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A política pública está enraizada ali de tal forma que é muito difícil uma futura gestão querer (e conseguir) tirar o projeto.”
Ensino digital
Na área da educação, a tecnologia deu os passos iniciais por meio do Prouca (Programa Um Computador Por Aluno) , do governo federal. O UCA, como ficou conhecido, consistia na distribuição de computadores portáteis e de baixo custo – para cada criança matriculada nas unidades de ensino participantes. Instituído por lei em 2010, o programa ocorreu de forma experimental em cinco escolas de quatro estados e no Distrito Federal, com apoio de um grupo do trabalho do MEC (Ministério da Educação. Em princípio, o piloto seria realizado só nas cinco capitais, mas Piraí foi incluída por já ter um histórico do uso de tecnologias – o Ciep 447 (Centro Integrado de Educação Pública), que foi municipalizado pela prefeitura piraiense, foi a primeira escola do Brasil a implantar o projeto, em 2007.
Desde 2012, não existem mais pregões para o Prouca – o programa foi descontinuado como política pública do MEC – e as prefeituras interessadas em adquirir equipamentos com o apoio do governo federal devem aderir ao Programa Nacional de Tecnologia Educacional (ProInfo), que existe desde 1997. Mesmo assim, Piraí soube manter o foco e o eixo central do projeto, dando continuidade ao uso dos classmates em sala de aula de todas as escolas.
Corpo docente
Em sintonia com a Lei do Piso, a formação continuada em Piraí ocorre no período de um terço da jornada de trabalho dos professores. Os encontros extra-classe ocorrem nas quartas e quintas-feiras, nas unidades de ensino sob a coordenação dos orientadores pedagógicos. Além disso, uma vez por mês, há uma reunião com todos os professores da rede de uma mesma disciplina. “Por exemplo, em um determinado dia, juntamos todos os que dão aula de história em todas as escolas com o coordenador da área da secretaria”, explica a secretária de Educação, Sandra Gomes Simões.
Nos encontros na secretaria, a equipe técnica de formadores introduz as novidades em relação à tecnologia. “Ela é vista como mais uma ferramenta para ampliar a aprendizagem dos alunos”, explica Alessandro Carra Vieira, professor formador e responsável pedagógico da equipe de tecnologia educacional da prefeitura.
Além dos encontros presenciais, há discussões online entre docentes e orientadores da secretaria. “Estamos 24 horas conectados ao nosso professor. Utilizamos um ambiente virtual de aprendizagem (o Moodle). Dentro dele, cada coordenador é administrador de uma sala de aula com os respectivos professores, onde há acesso a todo o material necessário, além de fóruns de discussão”, conta Alessandro.
Dificuldades
Apesar de o uso de tecnologia ser uma realidade para o corpo docente, ainda há quem resista ao uso dentro e fora de aula. “Não tem como dizer que é 100%. Encontramos resistência, mas acho que há uma mobilização. Quando o próprio professor vê que o outro está fazendo, isso acaba contaminando positivamente o ambiente escolar. Vamos revertendo assim o quadro”, explica a secretária. Segundo ela, seminários e prêmios também incentivam os professores a aderir cada vez mais.
“Como optamos pelo uso do software livre, mesmo para quem já lidava com Windows foi muito difícil. A rejeição era automática. Mas nas formações investíamos na comparação entre os dois para que eles vissem onde estava cada coisa no novo sistema operacional”, lembra a formadora Mônica. “Esse professor sabia dar aula, só não sabia mexer na máquina e tinha medo que isso desconstruísse a sua capacidade de lecionar. Por isso, não fornecemos nas formações um cursinho de informática. Eram colocados em discussão problemas de sala de aula e como o computador poderia ajudar na solução deles”, diz.
A metodologia de capacitação tinha uma meta clara: um objetivo de sala de aula, não de informática. Para fazer um folheto informativo sobre algum tema que as crianças estejam estudando, por exemplo, antes de chegar ao programa digital de design, as formações incentivam os docentes a ter ideias e a planejar a execução delas. É somente depois disso que o computador vira ferramenta de trabalho, com o uso de um editor de texto e um software que finalize o projeto.
“A partir do momento que você tem um objetivo a ser alcançado, o processo tem um significado. Não é mexer gratuitamente num editor de textos, por exemplo. Tem que ter significado, até para não impactar na autoestima docente de forma negativa”, reflete Mônica.
A prefeitura de Piraí prepara, para este ano, mais um concurso de ingresso na carreira – todos os aprovados terão que passar por uma preparação para lidar com as novas metodologias de ensino e aprender a utilizar todos os equipamentos e softwares disponíveis.
Planejar
Em Piraí, a palavra mais comum na fala de professores, coordenadores, diretores e gestores da secretaria é planejamento. Para eles, planejar é essencial para que o uso da tecnologia tenha sentido dentro e fora de sala de aula.
“Muitas cidades que usam tecnologia na educação pensam muito na parte física, da estrutura, e esquecem que ela não funciona sozinha”, afirma Mônica. “Tem que ter estrutura de gestão também e um preparo pedagógico que dê vida ao equipamento. Caso contrário, é como usar uma BMW como carrinho de mão.”
Todas as disciplinas podem usufruir dos classmates, do wifi e até dos recursos de robótica. “Tivemos uma professora há dois anos que usou o robô para motivar os alunos do 4º ano a produzir textos e redações. Na aula, construíram uma mascote com reciclagem – era coisa simples, ela andava e piscava dois LEDs no olho. Mas isso inspirou as crianças, aguçando a criatividade delas: colocaram a mascote como protetora do meio ambiente e criaram um inimigo para ela. Escreveram histórias que resultaram em três gibis”, lembra Alessandro, que está bastante envolvido com o tema nos últimos meses.
A epidemia de dengue que atingiu todo o País neste início de ano também foi tema de projeto digital em todas as escolas de forma transversal: os alunos geraram, no computador, folhetos de conscientização para distribuir na cidade.
Liderança
Os diretores e coordenadores desempenham papel fundamental na motivação da equipe pedagógica para o uso de tecnologia. A professora e diretora Aline Feital, da Escola Municipal Manoel Alexandre de Lima, lembra que teve que aprender a ser líder na escola que dirige. “Percebi que tinha que ser um espelho para a equipe nesse sentido para todos entenderem que não é algo a mais para dar conta: é um auxílio.”
Segundo ela, o fato de a escola ter um blog ajudou bastante. Na página, professores postam sobre a rotina escolar e os projetos em desenvolvimento. “Para a alimentar a página, o professor tem que ter domínio sobre o conteúdo e a ferramenta. Os elogios incentivam as postagens que sempre são contextualizadas”, lembra-se.
A cultura de planejamento da rede de ensino de Piraí se consolidada com a implantação do Projeto Memória, que está chegando a todas as escolas agora, após funcionar de forma experimental em duas unidades, nos últimos meses.
A proposta é gerar relatórios sobre o uso dos classmates pelos alunos: quais os sites mais acessados, o tempo de navegação, os programas mais populares na rede, as disciplinas e turmas que mais usam o computador, entre outras questões, por meio de uma plataforma digital. A coleta de dados é feita no próprio computador. Os projetos dos professores são cadastrados por eles na plataforma – o que permite que a secretaria acompanhe o desenvolvimento das atividades via web.
Na Escola Municipal Rosa Carelli da Costa, onde a orientadora pedagógica Vivian Maria Feliciano trabalha, o Memória é bastante utilizado. “Como tudo é compartilhado, já sabemos como andam os projetos e do que os alunos precisam, assim como onde devemos interferir”, explica. “A socialização também fica mais fácil quando o projeto é interdisciplinar. Todos vemos o que é feito em casa e na escola.”
Vivian se interessou tanto pela tecnologia que acabou fazendo especialização no assunto. “É importante estar sempre pesquisando e descobrindo novos recursos”, afirma. Uma de suas iniciativas promove a inclusão de um aluno do 1º ano, que tem Síndrome de Down. O garoto está em processo de alfabetização com a ajuda de um software destinado a alunos da EJA (Educação de Jovens e Adultos), mas foi adaptado para ele.
Fora da escola
A relação dos alunos de Piraí com os computadores vem mudando com o tempo. No início do projeto, todos tinham permissão para levar os computadores para casa. Por conta da perda de aparelhos por falta de cuidado e da dificuldade para repor os itens perdidos ou quebrados, isso teve que ser suspenso. Hoje há um sistema de agendamento para controlar melhor o destino dos equipamentos. Os laptops são retirados de acordo com as necessidades das atividades planejadas pelos professores.
Algumas escolas permitem que o aluno permaneça com o mesmo equipamento no decorrer dos anos. É mais uma “face” da cultura de planejamento da rede.
O classmate tem o acesso liberado para a internet, mas sites considerados de risco são bloqueados pela rede da cidade – caso das páginas pornográficas e de conteúdo ilegal. A rede não tem problema com vírus porque usa software livre.
“Estamos enfrentando nos últimos anos o uso indevido da tecnologia, especialmente no acesso a sites de conteúdo proibido. O uso consciente tem sido tema de conversa e palestras especialmente com as turmas de 6º ao 9º ano”, explica a secretária Sandra.
O computador é levado para casa sempre com um objetivo pedagógico: fazer a lição de casa, escrever um trabalho, pesquisar um tema. Quando o aluno termina a atividade, ela fica armazenada na máquina, na pasta pessoal dele, mas é possível compartilhar na rede da escola. Ao desligar a máquina, o estudante deve responder a um pequeno questionário sobre a utilização do computador. Caso não responda, ao ligá-lo novamente o questionário estará lá, travado na tela, esperando para ser preenchido.
Nos poucos bairros que ainda não dispõem de acesso sem fio, é comum encontrar grupos de alunos com seus classmates, perto das escolas, para usar a conexão nos finais de semana.
A secretária Sandra lembra que levar o classmate para casa ultrapassa os fins educacionais. “Vira o computador da família, o que integra os familiares. O objetivo é inserir a família no contexto digital”, completa.
Futuro
A novidade nas escolas municipais de Piraí é a robótica. Três escolas já contam com aulas para turmas do 6º ao 9º ano em uma iniciativa piloto. A implantação do projeto em outras unidades está sendo estudada pela prefeitura.
Os tablets para uso pedagógico também estão na mira da prefeitura. Apesar de ainda não ser realidade nas escolas, desde 2013 os habitantes da cidade podem emprestar os equipamentos numa das praças principais que, como as outras, conta com wi-fi gratuito. O uso deve ocorrer ali mesmo.
De acordo com a secretária de Educação, a cidade está em constante busca de parcerias para renovar o parque tecnológico. No ano passado, houve licitação para a compra de novos notebooks para o corpo docente.