Ideb conta uma história já conhecida sobre o ensino médio. O que fazer?
Divulgado em meio a grandes debates educacionais, resultado do Ideb sobre ensino médio segue com os mesmos problemas registrados em levantamentos anteriores
por Ana Luísa D'Maschio / Vinícius de Oliveira 15 de agosto de 2024
Avaliação nacional em larga escala, o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) é calculado a cada dois anos e avalia o desempenho dos estudantes nos anos iniciais e finais dos ensinos fundamental e médio. Leva em consideração a avaliação em português e matemática na prova do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), bem como os índices de aprovação e o fluxo de aprovação, reprovação e abandono, conforme dados do Censo Escolar. A edição de 2023 foi divulgada nesta quarta-feira (14) em meio a grandes debates educacionais, especialmente sobre o ensino médio.
Goiás, Pernambuco e Piauí são os únicos estados que atingiram ou superaram as metas de aprendizado estabelecidas para o ensino médio em 2023. O Pará, por exemplo, saltou de penúltimo lugar (em 2021) a 6º no que refere ao desempenho nessa etapa de ensino.
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Quando se faz o recorte nacional, porém, os dados não são tão positivos. No Ideb 2023, o ensino médio alcançou 4,3 pontos, abaixo da média esperada de 5,2. Os anos finais do ensino fundamental também não atingiram a média de 5,5, obtendo apenas 5,0. O único avanço significativo foi nos anos iniciais do ensino fundamental, que alcançaram a meta de 6,0. A pesquisa aponta uma “tendência de estabilidade dos resultados, de 2019 a 2023” nos anos finais do fundamental e no ensino médio.
Para Gabriel Medina, ex-presidente do Conselho Nacional de Juventude e consultor da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) na área de educação, o cenário é ruim porque não há mudança de rota. “Estamos em um ‘museu de velhas novidades’, não tivemos grandes avanços. Seguimos com problemas que persistem e que seguem em discussão há muito tempo.”
Em relação ao ensino médio, ele destaca que a etapa está estagnada desde 2019. “Isso mostra que a reforma do ensino médio não se efetivou, houve muita confusão”, diz, em referência ao modelo implementado em 2022, focado no protagonismo jovem, na realização do projeto de vida e nos itinerários formativos.
“Os estados tiveram muita dificuldade em implementar as mudanças, pois não tinham infraestrutura e condições adequadas. Não havia professores suficientes para os itinerários formativos, faltavam laboratórios… Tudo foi muito complexo.”
Contudo, reflete o consultor, é preciso considerar duas dificuldades principais. “Enfrentamos dois problemas epidêmicos: a pandemia da Covid-19 e o governo Jair Bolsonaro, que paralisou o MEC (Ministério da Educação). De um lado, era difícil alcançar resultados melhores por causa da pandemia, que obviamente prejudicou os indicadores educacionais. O jovem que chega ao ensino médio já está com defasagem, e o jovem que sai também. O governo não orientou, não impulsionou a reforma, não formou professores.”
A reforma do ensino médio acaba de ser sancionada em julho, o que Gabriel vê como uma volta ao tradicional. “Mais uma vez, o ensino médio patina. É sempre um ciclo de esperar, esperar e esperar. Esse novo formato volta a ser muito parecido com a primeira versão, aquela versão que sempre conhecemos ou que nem chegou a mudar”, diz. “Entendo que as reformas educacionais estão atrasadas em relação ao tempo. O Brasil, como país em desenvolvimento, também está atrasado em relação ao resto do mundo. Essa discussão é complexa.”
Quando questionado sobre interdisciplinaridade e projeto de vida, deixados de lado pelo modelo de ensino médio recém-sancionado, Gabriel opina que é preciso proporcionar uma base reflexiva para a formação humana e crítica. “O problema é que manter uma matriz fragmentada com treze disciplinas não está entregando o que precisamos, que é uma visão mais complexa sobre a vida e o pensamento. A crítica tem sua importância, pois o que a vida pede hoje são pessoas menos técnicas e mais sistêmicas”, diz. “Fica uma situação em que não se encontra um bom senso, porque as pessoas não estão dispostas a construir convergências.”
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Estratégias em curso
A despeito das críticas, Gabriel vê alguns avanços nas propostas para o ensino médio. “Podemos ter críticas, mas o atual ministro da Educação, Camilo Santana, está tentando respondê-las com algumas iniciativas, como os programas de Estratégia Nacional de Escolas Conectadas, Pé de Meia e o Pacto pela Alfabetização, colocando em movimento algumas agendas fundamentais no país”, avalia.
Para combater a evasão escolar, por exemplo, o governo federal lançou o programa Pé de Meia, que oferece auxílio financeiro direto aos estudantes. A meta é beneficiar quase 4 milhões de alunos em 2024, oferecendo uma poupança de até R$ 9,2 mil ao longo da trajetória escolar.
Também está prevista a criação de 100 novos campi de Institutos Federais, com 140 mil vagas, para expandir a educação profissional e tecnológica integrada ao ensino médio. Especificamente, o ministro da Educação observa que incluir escolas com ensino médio integrado à educação profissional aumenta significativamente o resultado do Ideb em alguns estados. Ele destaca o caso do Ceará, onde o Ideb total é de 4,3, mas, ao considerar apenas a rede estadual, o desempenho sobe para 4,4. Essa diferença se deve à inclusão de escolas de ensino médio profissionalizantes na rede estadual.
Outra estratégia é a Política Nacional de Equidade, que abrange ações para superar desigualdades étnico-raciais, combater o racismo nas escolas e promover a educação para a população quilombola.
Cautela com os dados do Ideb
Quanto melhor o desempenho dos alunos e mais alto o número de aprovados, maior é o Ideb. “Ele funciona como um norte para as tomadas de decisões na educação básica, determinando o que deve ser melhorado no ensino e garantindo que a construção dos programas e das iniciativas seja feita de forma a assegurar o atendimento das necessidades da população”, explicou Camilo Santana, durante a apresentação dos dados.
Contudo, os números não devem ser considerados de maneira isolada. Especialistas ouvidos pelo Porvir explicam que essas métricas em larga escala não capturam uma série de fatores cruciais para a educação, como as desigualdades sociais e regionais. Tampouco refletem claramente desafios como falta de investimentos e instrumentalização na formação de professores.
Os dados divulgados pelo Ideb 2023 são uma primeira fotografia de como está a educação básica no Brasil em termos de aprendizagem de língua portuguesa, matemática e de fluxo dos estudantes, explica a coordenadora de Pesquisa e Avaliação do Instituto Unibanco, Raquel Souza. “São médias de estados e municípios, mas a gente sabe que esse resultado esconde muita diversidade, muita desigualdade. Dissecar esses dados só vai ser possível quando o MEC divulgar os microdados.” A instituição fez uma nota técnica com recomendações para interpretar os resultados do Ideb 2023, documento disponível neste link.
Professora do Departamento de Fundamentação da Educação na UFPB (Universidade Federal da Paraíba), Ana Cláudia Rodrigues também levanta preocupações sobre a dependência de avaliações em larga escala, como o Ideb, para medir a qualidade da educação.
“É importante considerar o que entendemos por qualidade e sob quais perspectivas a estamos medindo. Isso, por si só, já é algo que merece reflexão”, afirma a professora, que critica também uma avaliação baseada apenas em português e matemática. “Para mim, esse índice é questionável porque apenas mostra que as coisas não estão funcionando como deveriam.”
“Não temos muito a comemorar, e as políticas têm buscado ajustar e ampliar as aprendizagens. No entanto, o que eu e outros colegas, especialmente na Anped (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) e entre pesquisadores, questionamos é que um único índice ou dimensão não são suficientes para captar a realidade. Focar exclusivamente no currículo, como temos feito nos últimos anos, não é o bastante”, pontua.
Com o modelo atual de pesquisa, segundo Ana Cláudia, não se consegue capturar com precisão as desigualdades regionais, as dificuldades sociais e os desafios das redes públicas. “O currículo tem sido o foco, mas, para mim, ele sozinho não resolve. Ele é apenas uma variável entre muitas outras”, diz, em referência aos recentes cortes de gastos, à falta de investimento na formação de professores e ao foco em instrumentalização em vez da reflexão sobre a prática.
Trajetórias truncadas
De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 68 milhões de brasileiros não concluíram a educação básica, um terço da população do país.
A camada mais pobre da população é a que menos termina os estudos, aponta o Ideb 2023. Entre os 87,6% dos alunos de baixa renda que ingressam no ensino fundamental, apenas 50% completam o ensino médio. Quando comparado com os jovens de maior renda, 88,3% finalizam o ciclo escolar.
“Fizemos um cálculo no ensino médio brasileiro, considerando reprovação e abandono, e chegamos a aproximadamente 600 mil jovens perdidos no ano de 2023, um dado desafiador e grave”, afirmou Camilo Santana. “É preocupante o número de jovens que estamos perdendo, especialmente nessa fase crítica de abandono e reprovação”, completou. A coletiva de apresentação dos dados pode ser vista na íntegra no vídeo a seguir.
Entre os números preocupantes, destaca-se a taxa de conclusão do ensino médio, com apenas 70% dos jovens completando essa etapa. A situação é ainda mais grave entre os mais pobres, onde apenas 50% concluem aos 19 anos, e na Região Norte, onde a taxa cai para 58%. Raquel explica que é preciso refletir sobre esse número por meio de um viés socioeconômico e cultural. “Pensar nesse resultado, que diz quanto por cento concluiu o ensino médio, é um processo que tem que começar desde o nascimento”, analisa, referindo-se a um processo que precisa ser olhado logo no início da escolarização. A falta de acesso a creches e a pré-escola amplia essa desigualdade.
“A pobreza é um fator que condiciona as possibilidades de acesso à escolarização. Os 20% mais pobres acessam menos creche do que os 20% mais ricos e isso vai construindo trajetórias muito desiguais”, comenta. Raquel reforça que devem ser consideradas questões fora da escola, como assistência social, saúde e cultura, uma rede que precisa atuar de maneira articulada.
“Se fossemos cruzar alguns marcadores para além do perfil socioeconômico, como raça, cor e sexo, nós nos depararíamos com dados ainda mais preocupantes. Sabemos que entre os mais pobres são os negros os que têm trajetórias mais acidentadas, mais problemáticas na escolarização básica. Entre esses, estão aqueles que são do sexo masculino. Vivemos em um país muito desigual e essa desigualdade se dá nas chances de acesso e de permanência e sucesso escolar.”
Para Raquel, é necessário refletir sobre como esses indivíduos estão posicionados na sociedade, como a rede de proteção social funciona ou não para essa população, destacando o fato de que a escola faz parte disso. E também observar o que acontece dentro da sala de aula. “Os indicadores mostram que nossos sistemas educacionais não estão acolhendo e dando condições para que essas pessoas tenham proteção, sejam recebidas e acolhidas, e construam trajetórias de sucesso escolar. É preciso que o sistema assegure condições para que elas aprendam, se desenvolvam e concluam a educação básica”, aponta a especialista.