‘A Educação de Jovens e Adultos me deu a oportunidade de chegar à OAB’ - PORVIR
Crédito: Patrícia Cardoso de Almeida / Salvador (BA)

Inovações em Educação

‘A Educação de Jovens e Adultos me deu a oportunidade de chegar à OAB’

Conheça a história de Roqueline Souza, que retomou os estudos aos 30 anos e concluiu recentemente o curso de Direito

por Ana Luísa D'Maschio e Marina Lopes ilustração relógio 30 de novembro de 2022

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Este conteúdo faz parte da
Série Desafios e Perspectivas da EJA no Brasil

Os braços abertos e o sorriso largo do pai, que invariavelmente a esperava na saída da escola, são as principais lembranças que a baiana Roqueline Martins Borges Souza, 36 anos, conserva da infância. Manoel Martins, ajudante de caminhão, frequentou somente até a terceira série do ensino fundamental, mas sabia calcular com destreza. E estava sempre a par das últimas notícias: era assinante do jornal “A Tarde”, um dos mais antigos do Brasil. Sua maior preocupação era proporcionar aos filhos a educação à qual ele não tivera direito. 

Filha única até os 12 anos, Roqueline costumava ganhar livros da mãe, a professora de artes e filosofia Divalmira Cardoso Martins. Morava no bairro Dom Avelar, na periferia de Salvador, e era excelente aluna em um colégio particular na região. Quando a renda familiar diminuiu, porém, os pais optaram por deixar o caçula na escola privada e encaminharam Roqueline ao ensino médio em uma escola pública. 

Temeroso com a mudança, Manoel intensificou a vigilância sobre os estudos da filha, cujas notas nunca lhe desapontaram. “Com o meu pai, aprendi a questionar as desigualdades sociais, a não voltar para casa com qualquer dúvida, a refletir sobre tudo. Ele carregava uma sabedoria imensa e me preparou para a vida”, conta Roqueline. 

Naquela época, Manoel almejava uma vaga para a filha em uma das escolas do Sesi (Serviço Social da Indústria), onde o filho de um familiar estudava. O desejo, porém, tornaria-se uma premonição: Roqueline finalizou o ensino médio na turma profissionalizante de EJA (Educação de Jovens e Adultos) do Sesi Bahia, mas muito aconteceu antes disso.

No dia 25 de agosto de 2003, quando cursava o primeiro ano do ensino médio, Roqueline se sentiu mal na classe. Estranhou o fato de o pai não ir buscá-la, mas sim um primo, que ficou em silêncio durante o caminho de volta para casa. Manoel e um irmão haviam morrido em um acidente na rodovia BA-093, notícia tão impactante que foi destaque no telejornal local. “Naquele dia, entrei em estado de choque. Fiquei sem falar por seis meses. Não conseguia chorar, gritar ou emitir qualquer som. Tinha perdido o meu maior incentivador”, relembra Roqueline, entre lágrimas. “O maior sonho do meu pai era me ver formada, mas não tive forças para continuar.” 

Com o passar dos anos, depois de um longo tratamento psicológico e fonoaudiológico, Roqueline precisou superar outra barreira. Venceu um câncer e, aos poucos, conseguiu transformar a dor da ausência do pai em uma saudade bonita. E, em homenagem à memória de Manoel, decidiu voltar a estudar, com o apoio incondicional do companheiro, o comerciante Daniel Borges Souza, que conheceu em 2007 e com quem tem três filhas: Laís Vitoria, de 14 anos, Hadassa Emanuele, 9, e Antonia Neta, 6. 

De volta à escola

Em 2017, aos 30 anos, Roqueline se matriculou no Sesi Bahia, para concluir o ensino médio no curso técnico em manutenção e reparação de micro. Encontrou uma turma com pessoas da mesma idade e se sentiu abraçada pela escola, mesmo no curto período de seis meses em que a frequentou. E a lembrança de Manoel surgia nos mínimos detalhes. “Quando fiz a prova de conhecimentos gerais para ingressar, que traz todas as disciplinas de maneira aplicada no cotidiano, nossa… Se meu pai estivesse ali, acertaria tudo!”

Parte das aulas do período noturno acontecia de maneira remota, e ela não tinha computador no começo do curso. Contudo, recusou-se a desanimar. “Logo nos primeiros dias de aula, meu marido reuniu todo o dinheiro da venda de três caixas de guarda-chuva e fomos atrás de uma máquina.”

O projeto pedagógico da EJA do Sesi tem como princípio norteador reconhecer os conhecimentos adquiridos pelos adultos trabalhadores ao longo da sua trajetória de vida e formação, por meio da Metodologia de Reconhecimento de Saberes. 

Crédito: Patrícia Cardoso de Almeida / Salvador (BA) Crédito: Patrícia Cardoso de Almeida / Salvador (BA)

De acordo com Clessia Lobo, gerente de Educação e Cultura do Sesi Bahia, a metodologia é um instrumento fundamental para o êxito de uma EJA. “O público chega com aquele sentimento de fracasso, com expectativa baixa sobre a capacidade de aprender. Sua motivação precisa ser alimentada pelo processo educativo e pelos professores”, explica. “Começar esse processo pela metodologia que reconhece e diz que esse estudante já aprendeu ao longo da vida, do trabalho – algo que por vezes ele não reconhece ou não identifica que já sabe –, é superimportante”, complementa. 

Desde a matrícula, os estudantes entendem que serão protagonistas: participarão de uma educação básica formal, mas preparada para um contexto que se adequa ao tempo de aprendizagem deles. “O processo dura em torno de três meses, no qual estudantes e professores vão construindo seu portfólio, a fim de resgatar, identificar e sistematizar quais aprendizagens são essas para que eles sigam no processo formativo”, explica Clessia. 

A oportunidade é de acordo com o sonho deles, e a gente faz com que eles sonhem cada vez mais

Roqueline acredita que a proposta é o grande diferencial da escola. “A nossa cultura, baiana e brasileira, é usada no dia a dia, na didática das aulas. Há um respeito muito grande em relação à história e à experiência de vida de cada um.” Clessia complementa: “Não dá pra fazer Educação de Jovens e Adultos sem uma diversidade de estratégias, porque os alunos trazem diversidade de demandas. A oportunidade é de acordo com o sonho deles, e a gente faz com que eles sonhem cada vez mais. Essa é a riqueza que temos encontrado”. 

Para Roqueline, finalizar a educação básica em uma sala de EJA teve um significado especial. Afinal, ela estudou justamente na escola que Manoel almejava para a filha. “Com emoção, posso lhe falar que a EJA foi um recado de meu pai. Senti como se fosse ele dizendo: ‘Vá, minha filha, vá. Saia logo desse casulo, o mundo precisa conhecer quem você é, porque eu te preparei para ele’.”. 

Matrículas distantes da meta
A modalidade que une a EJA ao ensino profissionalizante se desenvolve timidamente no país, aponta o Anuário Brasileiro de Educação Básica, de 2021: no ensino médio, em 2010, eram 38.164 pessoas matriculadas; em 2020, o número passou para 44.910. Já no ensino fundamental, em 2010, eram 14.997 inscritos; dez anos depois, 9.328 cursaram a modalidade.

O documento também mostra que o Brasil está distante de cumprir as metas estipuladas no Plano Nacional de Educação: do total de matrículas de EJA, apenas 1,8% eram integrada à educação profissional. 

No ano passado, oito estados brasileiros não tiveram nenhuma matrícula de EJA ensino fundamental integrado à educação profissional. Nessa etapa, a maior porcentagem de atendimento ocorre em Alagoas, onde 6,9% das matrículas se inserem nessa modalidade.

‘Defensora dos oprimidos

Com uma boa nota no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), Roqueline ingressou no curso de Direito em 2018. “Consegui uma bolsa de 50% do ProUni (Programa Universidade Para Todos) e a outra metade a gente ralou para conseguir pagar”, conta. Foram cinco anos de aulas e uma boa dose de aprendizado. “Quero ser uma defensora das causas dos oprimidos. Meu pai sempre me ensinou a olhar para quem mais precisa.” 

Durante as aulas, Roqueline fez um estágio no INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e descobriu que a área previdenciária era onde gostaria de atuar. Acabou de montar, com uma sócia, um escritório de consultoria na Avenida 7 de Setembro, uma das principais vias urbanas de Salvador. E segue estudando para a segunda fase da prova da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). “A Educação de Jovens e Adultos me deu a oportunidade de chegar à OAB”, assegura. A formatura na universidade será em dezembro. 

“Aquela menina temerosa da vida ficou para trás”, diz Roqueline, orgulhosa. Sua meta, agora, é levar Daniel para a EJA: o companheiro, de 54 anos, que deixou a escola porque precisava trabalhar e ajudar a família na infância, pouco lê e escreve. “Serei a provedora do lar para que meu esposo se dedique aos estudos. Chegou a vez de ele ter a vida transformada”, afirma. 

**A pauta foi selecionada pelo 4º Edital de Jornalismo de Educação, iniciativa da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação) em parceria com o Itaú Social. As matérias serão publicadas durante o mês de novembro de 2022.


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eja, ensino superior, Série Desafios e Perspectivas da EJA no Brasil

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