Com aulas de cerâmica e projetos interdisciplinares, escola atende pessoas em situação de rua na EJA
Para muitos dos estudantes matriculados, a EPA (Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre) é também um espaço de acolhimento, visibilidade social e acesso a direitos básicos
por Ana Luísa D'Maschio e Marina Lopes 25 de novembro de 2022
Atravessar o portão roxo, no número 203 da Rua Washington Luiz, no centro histórico de Porto Alegre (RS), pode representar mais do que um retorno à sala de aula. Para muitos dos estudantes matriculados, a EPA (Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre) é também um espaço de acolhimento, visibilidade social e acesso a direitos básicos, como educação, água, saneamento e alimentação. A unidade atende pessoas em situação de rua e vulnerabilidade na EJA (Educação de Jovens e Adultos) e, entre as atividades regulares, oferece espaço para banho e lavagem de roupas.
Do lado de dentro, o jardim bem cuidado e as paredes coloridas chamam a atenção. No saguão de entrada, que dá acesso às classes, uma placa de inauguração, com a data de agosto de 1995, resgata a história da instituição. Por lá, as produções autorais e artísticas dos jovens e adultos matriculados dão um toque especial à decoração do espaço.
Em um ateliê de cerâmica repleto de materiais, um estudante de 16 anos exibe com orgulho uma das peças que modelou: um Ganesha, deus do intelecto, com cerca de 40 cm, considerado símbolo divino de sabedoria na cultura indiana. “Vai fazer um ano que estou aqui”, conta Alex*, que aprendeu a técnica na escola e já produziu seus primeiros trabalhos por encomenda. Ao lado dele, o colega de classe Jonas*, de 26 anos, apresenta suas criações: “Eu gosto de fazer panelas e louças.”
As oficinas de cerâmica são apenas algumas das atividades diferenciadas oferecidas pela EPA Porto Alegre. Além dos componentes curriculares tradicionais da Educação de Jovens e Adultos, como português, ciências e história, o contraturno conta com oficinas de escrita criativa, cinema, tecnologia da informação, floresta e sustentabilidade, poesia, matemática financeira, atividade física e saúde, estudos de problemas contemporâneos, prevenção de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e doenças infecciosas.
Para promover a emancipação pessoal e social dos estudantes, a escola atua na perspectiva do desenvolvimento integral, que abrange as dimensões intelectual, física, afetiva, social e cultural. “Na cerâmica, por exemplo, eles também aprendem a ter paciência. Precisam respeitar a técnica e as etapas, porque senão a peça vai quebrar”, explica Milena Teixeira, vice-diretora da EPA.
Pessoas em situação de rua no Brasil A população em situação de rua no Brasil cresceu 16% em 2022. De acordo com os dados levantados pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), o país tem 180 mil pessoas nessa condição, sendo 91% em situação de pobreza e extrema pobreza. Segundo informações do CadÚnico, cadastro do governo federal para acesso a benefícios sociais, quase 2.500 pessoas estão nessa situação em Porto Alegre (RS). |
Uma escola que existe e resiste
Fundada em 30 de agosto de 1995, a escola teve início como um projeto para atender crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, mas foi se modificando junto com o perfil das ruas. “Houve um momento em que tu não vias mais crianças nas esquinas, e aí a escola foi se adaptando. Ela deixou de ser uma escola para crianças e passou a ser uma escola para jovens e adultos”, conta a vice-diretora, fazendo referência ao impacto do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), criado em 1990, para a proteção e garantia dos direitos dessa população.
Hoje, com cerca de 100 matrículas, a EPA atua no ensino fundamental com a Educação de Jovens e Adultos. Os estudantes, em sua maioria homens, têm idades variadas: em uma mesma turma, por exemplo, é possível encontrar jovens de 16 anos ao lado de educandos com 63 anos. Pela manhã acontecem as aulas dos anos iniciais e, no período da tarde, dos anos finais.
As etapas são organizadas em seis “totalidades”, sendo a sexta equivalente ao nono ano do ensino fundamental. Em três períodos semanais, as turmas se misturam em uma disciplina chamada “projeto temático”, que reúne professores de diferentes componentes curriculares em uma abordagem transdisciplinar. “A gente está sempre se reinventando porque, assim como a rua é fluida, a escola precisa mudar junto. A gente vai tentando, criando e experimentando”, diz Milena.
E não foram apenas as mudanças no perfil das pessoas em situação de rua que fizeram a escola se reinventar. Em quase três décadas de existência, ela já precisou resistir a muitas tentativas de fechamento, iniciadas em 2014, na gestão do ex-prefeito José Fortunati, sob a justificativa de que seria construída uma escola de educação infantil no local. Anos depois, no mandato de Nelson Marchezan Junior, a prefeitura tentou novamente alegar a subutilização do espaço. Até que, em 2019, atendendo a um pedido da Defensoria Pública, o Tribunal de Justiça proibiu o fechamento da EPA.
“O que nós alegamos no processo é o que diz a Constituição [Federal]: a educação é para todos”, afirma Milena, ao reforçar a dívida histórica da sociedade com a população em situação de rua. “Essas pessoas já foram alijadas do seu direito na infância, no período regular. Nós somos duplamente responsáveis por educar essas pessoas.”
Transformações a partir da educação
Se a EPA tivesse sido fechada, Elisangela Soares de Brito, de 41 anos, não teria concluído o ensino fundamental no ano passado. “Eu ainda nem acredito, foi uma batalha para eu conseguir me formar”, conta ela, que é conhecida por todos como Maninha. “O acolhimento das pessoas e do espaço me fizeram permanecer [na escola]. Aqui as pessoas não me julgam pela minha cor, pela minha aparência e pelo meu jeito de falar. Elas ficam felizes por eu aparecer, mostram que se preocupam comigo”, avalia. E ela ainda arrisca dizer: “Acho que é pela falta de acolhimento que muitas pessoas não vão para o abrigo, elas não se sentem bem. Tratar bem as pessoas, dar bom dia e tentar entender os seus problemas já são coisas que fazem a diferença”.
Maninha conta que conheceu a EPA ainda na infância, quando estava nas ruas de Porto Alegre. “Uns amigos me disseram que tinha uma escola que dava banho e alimento”, relembra. Passado algum tempo, depois de matriculada, entre idas e vindas, um convite feito pela escola despertou de vez o seu interesse: participar de um curso na Usina do Gasômetro para aprender a produzir papel artesanal. “Quando eu terminei o curso, comecei a encher a diretora. Falei que a gente precisava de uma sala na escola para fazer papel”, diz ela que, mesmo depois de formada, ainda frequenta o espaço e apoia os professores nas oficinas de papel.
Com um sorriso orgulhoso, Maninha apresenta ao Porvir o laboratório montado na escola para a confecção de papel reciclável. A sala de tijolinhos armazena papéis de várias gramaturas, cores e tipos de fibra. Em cima de uma mesa redonda, ela começa a espalhar alguns dos cadernos artesanais que produziu. Nas capas, estão as xilogravuras de Paulo Freire, Conceição Evaristo, Frida Kahlo e Marielle Franco. “Aqui é como se fosse a minha segunda casa”, afirma a ex-aluna, que hoje mora em uma comunidade com o filho de 23 anos. “Ele estava fazendo faculdade de educação física, mas com a pandemia teve que parar”, conta.
Para Maninha, a escola trouxe acesso a novas oportunidades. “Tive a possibilidade de aprender a conviver com outras pessoas. Aqui a gente também foi a museus e a lugares que eu nunca tinha ido.” Entre os espaços de descoberta, ela recorda da visita à Câmara Municipal: “Fomos lá falar com os vereadores. Eles costumam passar na rua sempre cheios de gravatas, todos bem vestidos, e olham para a gente como se fôssemos nada. Mas, durante a visita, eles cumprimentaram e trataram a gente bem.”
Parcerias e redes de apoio
No dia em que o Porvir visitou a escola, Maninha tinha acabado de retornar de um exame de acuidade visual. A consulta para identificar o grau dos seus óculos, e “não ficar tão cega assim”, faz parte de seu projeto para o futuro: ingressar no ensino médio e, com o diploma, se matricular em um curso superior de design de interiores.
“Estamos próximos dos serviços de assistência social e de saúde, então também acompanhamos a agenda individual de cada estudante”, conta Jacqueline Junker, coordenadora do Serviço de Acolhimento Integração e Acompanhamento da escola. Para fazer essa gestão, ela conta com um calendário em sua sala, que ocupa grande parte da parede. Nele, estão os compromissos de cada um dos jovens e adultos matriculados. “A escola não é só um momento para dizer ‘Você precisa cuidar da sua saúde’. Às vezes também é preciso dizer ‘Fulano de tal, dia 5 você tem fisioterapia’. Eles precisam desse processo para aprender a se cuidar”, explica.
As parcerias e a articulação intersetorial são fundamentais para a concretização da proposta pedagógica da EPA. “Eu não quero ser ‘saúde’, mas entendo que saúde também pode acontecer na escola”, exemplifica a coordenadora, ao mencionar a abertura de espaço para que uma equipe de saúde possa visitar a escola, fazer o agendamento de consultas para os estudantes ou até mesmo ministrar uma palestra. “A aprendizagem da vida social não é organizada em capítulos, como em um livro didático. Ela é uma aprendizagem de vida, que inclui os seus altos e baixos”, contextualiza Jacqueline, ao também mencionar que o trabalho é árduo e que a escola trabalha na perspectiva da redução de danos.
Desafios da EPA
Com uma pasta repleta de retratos de ex-alunos, Jacqueline embarga a voz ao contar que, mesmo com todo o trabalho da escola, a realidade da rua é implacável. “Quando eu olho para essas fotos, algumas pessoas eu sei dizer onde estão, da pior forma possível, enterrados como indigentes no cemitério municipal. Alguns eu não sei se estão vivos; outros, perderam completamente o contato com a realidade pelo sofrimento da rua”, expressa, com pesar. “A grande coisa, que deixa muita gente encucada, é que a gente trabalha com a perspectiva da redução de danos, e danos não somente ligados à questão das substâncias”, pontua a coordenadora.
Por uma série de dificuldades de saúde e questões socioeconômicas, como a busca pela própria sobrevivência, a frequência dos jovens e adultos matriculados na escola também é fluida. “Há alunos que vêm sempre e conseguem manter a frequência, alunos que vêm sempre, mas em dias alternados, e outros que voltam de tempos em tempos”, aponta Milena. “Eles são nômades, e isso é uma característica da rua. Quando eles passam muito tempo afastados, sem contato com a escola, aí precisamos limpar a matrícula, a chamada evasão.”
Diante dessa realidade, as aulas na EPA também precisam ser ajustadas para que a turma consiga caminhar com pessoas em diferentes níveis de aprendizagem. “Não dá para eu começar um tema em uma aula e deixar para concluir, de forma isolada, em outra. Como nem sempre os alunos presentes vão ser os mesmos, todas as aulas precisam ter início, meio e fim”, diz a vice-diretora.
Assim como em escolas de todo o país, a pandemia também trouxe muitos desafios para a EPA. Alguns deles, em uma dimensão ainda mais profunda: “O que a gente mais ouvia naquele período era: ‘Fique em casa e lave as mãos’. Mas eles não tinham casa e não tinham onde lavar as mãos”, recorda Milena. Na tentativa de oferecer apoio aos estudantes, mesmo com as portas fechadas, a escola deu um jeito de passar uma mangueira pelo muro para que eles tivessem acesso à água e manteve a distribuição de marmitex com comida.
Para não interromper as aprendizagens, a escola também fez kits com atividades impressas e disponibilizou conteúdos em plataformas digitais, pensando também nos estudantes que não passavam pela porta da escola, mas tinham acesso a dispositivos móveis e internet gratuita wi-fi em espaços públicos. “Tentamos atacar de todos os lados”, diz Milena. Nesse cenário surgiu o projeto interdisciplinar “Manual de Sobrevivência da EPA – Escola de Porto Alegre“, que foi um dos vencedores da 24ª edição do Prêmio Educador Nota 10.
A Cara da Rua
Além dos serviços de saúde e assistência social, a colaboração da academia também é sempre bem-vinda na escola. A partir de um acordo com a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), os jovens e adultos da EPA já participaram de 13 edições do projeto “A Cara da Rua”, que trabalha fotografia e geração de renda com a população em situação de rua. Em encontros semanais, que duram de 2 a 4 horas, os estudantes têm contato com diferentes referências visuais, aprendem o manejo correto das câmeras e partem para saídas de campo. “O projeto traz um olhar para a cidade a partir de um grupo que muitas vezes é invisibilizado e excluído”, afirma a coordenadora do projeto, Daniela Cidade, professora extensionista e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura da UFRGS.
Entre os registros feitos pelos estudantes, surgem novas formas de se relacionar com a cidade. Detalhes que comumente passam despercebidos, retratos do céu e enquadramentos feitos de cima para baixo aparecem com frequência nas fotografias, refletindo o campo de visão de quem, muitas vezes, está sentado ou deitado nas calçadas. “A partir da própria imagem que eles fazem, trazemos discussões de todas as ordens: da linguagem fotográfica, da relação deles com o espaço e até mesmo de questões da própria cidade, que vão de infraestrutura ao direito à cidade.”
E assim como em outros projetos da escola, como no caso da cerâmica ou do papel artesanal, os trabalhos desenvolvidos pelos estudantes nas oficinas de fotografia também são convertidos em estratégias de geração de renda. “Os alunos que participam das oficinas recebem cartões postais com as fotos, e eles mesmos podem vender. Podem chegar para alguém e oferecer uma obra que é feita por eles”, aponta Daniela.
Na escola, quem acompanha os estudantes no processo de venda e precificação é o NTE (Núcleo de Trabalho Educativo), implantado como uma estratégia para promover a geração de renda, por meio dos princípios da economia solidária, e ampliar a autonomia dos estudantes. “O foco principal do núcleo não é fazer renda imediata, mas ajudar o indivíduo a se organizar para o trabalho”, explica a vice-diretora Milena.
Ampliação de sentidos e redução de danos
Para a professora Janaína Bueno, responsável pela totalidade 3 (última etapa dos anos iniciais), a escola assume um sentido muito amplo na vida da população em situação de rua. Esse é um dos únicos espaços que eles têm de acolhimento, redução de danos e construção de vínculos [sociais] e de aprendizagens”, avalia. “Nas aulas, nós abordamos diferentes temas; hoje mesmo, estávamos falando sobre HIV e Aids. A partir daí, fazemos relações com outras as diferentes áreas de conhecimento.”
Em todas as aulas, as habilidades de cada um dos componentes curriculares se conectam à realidade de vida dos sujeitos. “Em geografia, procuramos sempre relacioná-la com os espaços que eles transitam. Na aula de história, estamos trabalhando a contribuição dos negros e indígenas na constituição da nossa cidade. Já na matemática, por exemplo, falamos sobre questões do cotidiano, principalmente as que estão relacionadas ao sistema monetário, que eles têm mais interesse em aprender”, indica a professora.
“As histórias de vidas que eles carregam nos ensinam muito, eu diria até que muito mais do que temos a ensinar para eles. Partir dos conhecimentos que eles têm, dos interesses e da sede para resgatar o tempo perdido é o que me motiva neste trabalho na educação de jovens e adultos”, conclui a professora.
*Os nomes de alguns entrevistados na reportagem são fictícios para preservar a sua identidade e integridade.
**A pauta foi selecionada pelo 4º Edital de Jornalismo de Educação, iniciativa da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação) em parceria com o Itaú Social. As matérias serão publicadas durante o mês de novembro de 2022.