‘Marte um’ e a possibilidade do sonhar
A indicação brasileira para a corrida do Oscar 2023 mostra que os sonhos de infância são tão significativos quanto a busca por alcançá-los
por Ruam Oliveira 22 de setembro de 2022
Quando crianças, nós não encaramos a vida com tantas limitações. Podemos até entender as dificuldades – que a depender de onde moramos, em qual família nascemos, são maiores ou menores. Mas a gente não se aprisiona tanto.
Quando crianças, os sonhos tendem a ser mais divertidos e inusitados. É neste espaço infantil que se constituem jornadas das mais diversas, que primeiro ocorrem no imaginário e depois, com esforço e ajuda de muitos outros fatores, ganham corpo e aparecem no mundo fisicamente.
Foi numa aula de ciências, vendo o professor simular um vulcão entrando em erupção que Deivinho, um dos personagens do filme “Marte Um“, percebeu que a vida de descobertas é grande, muito grande, e que seu gosto pelo lado científico tinha espaço no mundo.
O filme, dirigido por Gabriel Martins, é a aposta brasileira ao Oscar 2023. A história acompanha uma família preta moradora da periferia de Contagem, em Minas Gerais. Além de Deivinho, compõem a família sua irmã mais velha Eunice, que acaba de ingressar na faculdade de Direito, a mãe Tércia, que trabalha como diarista, e o pai Wellington, porteiro de um condomínio de classe média.
O contexto é de uma vida regrada. Os pais estão constantemente calculando o quanto de dinheiro precisam para fechar as contas do mês. No entanto, fazem de tudo para viver, no sentido mais amplo da palavra, celebrando e valorizando a vida e os afetos presentes no dia a dia.
Enquanto vivem as alegrias e frustrações de uma vida comum, a família é exposta a diferentes formas de sonhar. Deivinho, do computador de sua casa, passa bastante tempo assistindo a vídeos do astrofísico e escritor Neil Degrasse Tyson, um homem preto como ele, diretor do Planetário Hayden, em Nova York (Estados Unidos), e uma pessoa de muito sucesso no campo científico.
E na TV o garoto assiste a um comercial sobre a primeira missão tripulada ao planeta vermelho. Chamada de “Marte Um”, o ônibus espacial tem previsão de decolar em 2030. Deivinho quer embarcar nele.
Mas, ao mesmo tempo, esbarra no sonho que é de seu pai: torná-lo um grande craque do Cruzeiro, um dos maiores clubes do futebol brasileiro.
A qual sonho responder? Em muitos momentos do filme, essa dinâmica de forças se mostra latente. Mas quem aprende a sonhar ganha também um jeito diferente de olhar.
O menino Deivinho olha para o alto com frequência. Olha para as estrelas. E não fica apenas no campo da imaginação: ele quer pôr em prática. A criança quer realizar. A despeito de todo o contexto de pobreza e dificuldades financeiras, ele se permite enxergar além.
E a educação tem missão semelhante: ampliar o campo de visão de crianças, adolescentes e jovens. Seja no banco da sala de aula, seja no pátio ou nas incursões por outros espaços de aprendizagem. É da educação o papel de apresentar possibilidades.
Existe um verbo na língua portuguesa que expressa um movimento contínuo capaz de transformar ou mudar tudo o que existe: é o devir, que traz o sentido de “passar a existir” ou “vir a ser”. O Deivinho – veja bem – incorpora essa ação. Seus sonhos apontam para um futuro próximo, e por serem sonhos, dão pouco crédito às limitações impostas a ele ou à sua família.
No filme, cada um dos personagens tem seu universo particular de sonhos e angústias. E, por vezes, precisam de ajuda para transformar os sonhos em algo tangível. Ninguém aprende sozinho, pelo contrário aprendemos uns com os outros – já dizia um grande educador brasileiro.
“Eu sou porque nós somos”, vai dizer a filosofia Ubuntu. O sonho de Deivinho ensinou seu pai, Wellington, a enxergar além. E esse entendimento veio materializado em uma das frases mais de pai e mãe que existem: “A gente dá um jeito”. Como chegar até Marte? Isso ele não sabia, mas a promessa estava feita: eles dariam um jeito.
Apoiar o sonhar de outro – por mais de outro mundo que pareça ser – é manifestar um posicionamento de que o direito de sonhar é legítimo. Independentemente do sonho. E uma educação libertadora deve dar conta disso.