Medo e censura nas escolas adoecem professores, revela estudo nacional
Estudo em parceria com o MEC revela impactos emocionais, profissionais e institucionais, incluindo ansiedade, autocensura, retirada de conteúdos e abandono da carreira docente
por Redação
9 de dezembro de 2025
Lançada neste começo de dezembro, a pesquisa “A violência contra educadoras/es como ameaça à educação democrática”, que analisa o avanço das tentativas de censura e perseguição a educadoras e educadores desde 2010 e seus impactos na saúde, na carreira e no clima escolar, passa longe de trazer boas notícias.
O levantamento do ONVE (Observatório Nacional da Violência contra Educadoras/es), financiado pelo MEC (Ministério da Educação) e disponível para download, mostra que a censura é um fenômeno espalhado por todo o território nacional e atravessa todas as etapas da educação.
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Os dados são alarmantes. Nove em cada dez profissionais da educação básica e superior, das redes pública e privada, já sofreram ou presenciaram episódios de perseguição e censura em instituições de ensino no Brasil.
A guerra cultural chega à sala de aula
A violência contra educadores aumentou ao longo da última década, impulsionada por episódios como a controvérsia do kit Escola sem Homofobia, em 2011; o avanço do ativismo religioso conservador contra discussões de gênero e sexualidade nos planos nacionais, estaduais e municipais de educação a partir de 2014; e a disseminação de projetos Escola sem Partido entre 2014 e 2018.
Houve picos de violência em 2016, 2018 e 2022, anos marcados por tensões políticas e eleições presidenciais. “A tensão política que o país vive está, infelizmente, entrando nas escolas”, aponta o coordenador.
De acordo com Fernando Penna, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) e coordenador do ONVE, trata-se de um fenômeno que atinge não apenas educadores individualmente, mas a própria possibilidade de garantir a liberdade de aprender. “Estudantes estão deixando de discutir temáticas vitais para sua formação”, afirma.
Medo e intimidação viram rotina profissional
Entre os professores que sofreram censura direta, são frequentes os relatos de intimidação, questionamentos agressivos sobre métodos de trabalho e proibição de conteúdos. Segundo o levantamento, as temáticas que mais levam ao questionamento do papel e da prática pedagógica do educador são lideradas por questões políticas (73%), questões de gênero e sexualidade (53%), questões de religião (48%) e negacionismo científico (41%).
Também aparecem casos de demissões, remoção de funções, agressões verbais e até agressões físicas.
Em entrevista à Agência Brasil, Fernando destacou o exemplo de um professor que tentou distribuir um material do Ministério da Saúde sobre a vacinação durante a pandemia e foi impedido sob o argumento de que estaria promovendo “doutrinação”. “E quando ele foi entregar isso à diretora da escola, ela disse para ele que na escola não ia ter doutrinação de vacina.”
“Professores que tentam levar conhecimento às crianças e adolescentes acabam sendo demitidos ou transferidos”, comenta o coordenador.
Adoecimento emocional se espalha na categoria
O estudo também revela impactos profundos na saúde física e emocional dos educadores. Entre aqueles que tiveram contato direto com situações de censura e perseguição (grupo que representa 76% desses profissionais) a grande maioria relatou tristeza e estresse (79%), além de sinais de adoecimento emocional, como ansiedade e depressão (60% desse público).
A convivência constante com o medo também aparece como marca dessa violência: 41% disseram temer pela própria segurança e 39% têm medo de perder o emprego. Em muitos casos, a perseguição gera ainda consequências financeiras, afetando 22% desses profissionais. O impacto pessoal foi classificado como alto ou extremo por 72% dos entrevistados.
Entre aqueles que apenas testemunharam episódios ou souberam que ocorreram na instituição, o que corresponde a 38% dos respondentes, a sensação de insegurança e sofrimento também é predominante. Desses, 65% passaram a se sentir mais tristes e estressados e 39% desenvolveram ansiedade e/ou depressão. No total, 83% relataram algum nível de impacto em sua vida pessoal.
Autocensura vira estratégia de sobrevivência
As experiências de censura têm repercussões diretas na prática pedagógica. Tanto vítimas diretas quanto indiretas relatam mudanças em seu cotidiano profissional, com destaque para mecanismos de autocensura.
Entre os que sofreram perseguição diretamente, 60% passaram a refletir mais sobre o que podem ou não dizer em sala de aula; 59% afirmam sentir-se constantemente vigiados; 53% questionaram sua permanência no local de trabalho; e 52% chegaram a duvidar da continuidade na carreira docente — sendo que 2% efetivamente deixaram a educação.
A retirada de conteúdos curriculares também se tornou comum: 38% deixaram de abordar temas, metodologias ou materiais, enquanto 32% desistiram de projetos e cerca de um terço diminuiu sua atuação pública em redes sociais e debates.
Chilling effect: educar se torna arriscado
Esse processo é descrito por Fernando Penna como um chilling effect (efeito inibidor ou amedrontador), expressão usada no campo jurídico para caracterizar o efeito inibitório causado pela ameaça de punição. “As pessoas estão com medo de discutir temas. Estão com medo de fazer o seu trabalho de acordo com o seu saber profissional”, afirma.
Quando perguntados sobre quem foram os agentes da violência, os educadores citaram os próprios integrantes da comunidade interna da escola ou da universidade. Ou seja, a própria direção, coordenação, além de estudantes e seus familiares. “Isso é muito grave porque traz um dado de pesquisa que mostra que essa violência pode ter partido de figuras públicas, de uma atenção política mais ampla, mas, infelizmente, ela já está dentro das comunidades educativas”, comenta o coordenador do estudo.
A pesquisa identificou ainda que são os próprios integrantes da comunidade educativa que estão levando essa violência para dentro da escola, liderados pelos profissionais da área pedagógica (57%), familiares dos estudantes (44%), estudantes (34%), os próprios professores (27%), profissional da administração da instituição (26%), funcionário da instituição (24%) ou da secretaria de educação (municipal ou estadual) ou reitoria, no caso das universidades (21%).
Risco de apagão docente aumenta
O cenário contribui para o desprestígio da carreira docente e pode intensificar o chamado “apagão de professores”. “Em muitos casos, professores que vivenciaram esses episódios acabaram deixando de ser educadores”, explica o coordenador.
Os resultados reforçam a necessidade de medidas de proteção a educadoras e educadores, especialmente em anos eleitorais, quando a violência tende a se intensificar. O relatório recomenda a criação de uma política nacional de enfrentamento à violência contra educadores, proposta que está em discussão no MEC, e a inclusão desses profissionais como defensores de direitos humanos nas políticas do Ministério dos Direitos Humanos. “Vivemos em uma sociedade na qual educadores têm medo de falar e de trabalhar de acordo com seu saber profissional”, lamenta Fernando Penna.
Quando a escola silencia, a democracia perde
O estudo abre a série “Ameaças à educação democrática”, dedicada a mapear as novas formas de violência contra docentes no Brasil. O Observatório sugere a criação de uma política nacional de enfrentamento à violência contra educadores, como resposta do poder público, que estaria sendo elaborada no âmbito do MEC.
O Observatório tem ainda um acordo de cooperação técnica com o Ministério dos Direitos Humanos.
Quando um episódio de censura ocorre dentro de uma instituição, ele não afeta apenas quem o sofre: “Quando a violência acontece em uma escola ou universidade, ela degrada o clima escolar. O dano para a sociedade é gigantesco”, finaliza o coordenador do estudo.
Com informações da Agência Brasil





