Personalização é uma questão de privilégio
Professor que trabalhou em escola no Vale do Silício (EUA) critica o protagonismo da tecnologia para a personalizar a aprendizagem
por Paul France 24 de janeiro de 2018
A educação é um campo dinâmico, com novas tendências constantemente fluindo e refluindo, como um pêndulo que balança para frente e para trás entre novidades verdadeiramente inovadoras e ideias recicladas. Educadores experientes podem reconhecer esses padrões. Mas para professores mais jovens como eu, cujas carreiras ainda estão em sua infância, não é tão fácil de perceber.
Quando me mudei para o Vale do Silício em 2014, eu, como muitos, entrei na febre do ouro chamada “personalização da aprendizagem”. Achei que era uma solução milagrosa. Eu realmente acreditava que o aprendizado personalizado com apoio da tecnologia poderia ser a resposta que a educação estava esperando.
Leia mais:
– Guia Personalização do Porvir
– Seu produto de tecnologia é uma geladeira ou uma máquina de lavar?
Chame isso do que você quiser – otimismo equivocado, ingênuo, idealista e arrogante. Talvez a ideia de aprendizagem personalizada como solução milagrosa seja isso tudo – ou não tenha nada a ver. Mas eu aprendi que o rótulo “aprendizado personalizado”, ou qualquer nome que um novo grande tema venha a ser chamado, não importa. O que mais importa é desafiar os pressupostos e as estruturas sociais que criam ideias injustas que não atendem o que os professores e alunos realmente precisam.
Não me arrependo do meu tempo no Vale do Silício, no entanto. Aprendi algumas lições importantes que vou levar comigo para o resto da minha carreira. Depois de três anos, aqui está o que aprendi.
Aprendi que a aprendizagem personalizada não exige uso da tecnologia.
Muitas vezes combinamos a individualização com a personalização. Para individualizar de forma sustentável a educação de cada criança, é muito útil o auxílio de um algoritmo tecnológico complexo para atribuir atividades às crianças. Mas isso vem com um custo embutido. Usar um algoritmo para determinar o que as crianças veem é impessoal e desumanizante. Esta abordagem concentra-se no consumo de material educativo em vez de interação com provocações significativas.
O escopo das habilidades ensinadas nas escolas é relativamente estreito e, em princípio, é razoável supor que o arranjo organizado das atividades em uma lista de reprodução ou a sequência correta dos vídeos da Khan Academy poderia atender às necessidades de todas as crianças. Mas eu aprendi que essa maneira de pensar é reducionista, na melhor das hipóteses. É simplesmente uma versão mais sofisticada de um modelo industrializado de educação, movendo crianças através de uma linha de montagem personalizável, adicionando questionários, jogos e vídeos a em diferentes ritmos e ordens.
É importante reconhecer que nem toda a tecnologia é ruim. As ferramentas que diminuem a complexidade tornam os educadores mais empoderados, conectam indivíduos ou redefinem tarefas de aprendizagem podem contribuir para um ambiente mais personalizado. Ferramentas como o Seesaw ajudam as crianças a criar portfólios digitais multidimensionais e abrem espaço para que seus pais participem de suas jornadas de aprendizado; aplicativos como iCardSort e Popplet permitem que as crianças explorem o pensamento abstrato; Programas como o Google Earth e o Skype podem conectar pessoas e lugares distantes, redefinindo que tipos de experiências podem acontecer dentro das quatro paredes da sala de aula.
É importante que lembremos de nos perguntar por que estamos usando a tecnologia e garantir que ela esteja tornando o aprendizado pessoal, ampliando e não limitando nossa humanidade.
Em segundo lugar, aprendi que a aprendizagem personalizada é um problema de privilégio, e os problemas da educação são principalmente sistêmicos.
Os tecnólogos e seus financiadores ricos muitas vezes imaginam que os problemas que afetam a educação podem ser resolvidos através de ferramentas digitais. Mas muitos deles às vezes não conseguem reconhecer o papel que o privilégio e a iniquidade desempenham na perpetuação da injustiça e, em vez disso, presumem que as ferramentas tecnológicas para personalização vão “reduzir o déficit de aprendizagem”. As escolas em comunidades afluentes podem facilmente usar essas ferramentas tecnológicas, enquanto as escolas em áreas mais pobres – e que, em geral, atendem comunidades negras – não têm acesso a essas ferramentas. Mas, mesmo que tivessem, acho que elas descobririam que a aprendizagem personalizada não é necessária, e que há assuntos mais urgentes para serem tratados.
Muitas ferramentas de “aprendizagem personalizada” não atendem às necessidades reais. Em vez disso, eles atendem necessidades que foram alimentadas por privilégios. Os pais não precisam de atualizações imediatas e em tempo real sobre o progresso de seus filhos, e eles não precisam que a educação de seus filhos seja individualizada. O desejo da sociedade moderna por gratificação instantânea e transparência ilimitada nos convenceu que estes são problemas reais, quando, na realidade, são preferências socialmente construídas.
O que as crianças precisam de mais são professores bem formados e bem remunerados que trabalham em ambientes emocionalmente seguros, onde a sustentabilidade e a humanidade são valorizadas acima de tudo. Mas a maioria das escolas dificilmente é capaz de pagar professores de forma equitativa e muito menos formá-los para aperfeiçoar sua prática, desenvolver currículo envolvente ou até mesmo usar as tecnologias existentes de forma eficaz.
E se todos os bilhões em capital privado que apoiam a indústria edtech fossem equiparados com um igual compromisso para apoiar nossa infraestrutura educacional? Gostaria de ver esse tipo de dinheiro investido para criar um sistema sustentável de ensino e aprendizagem, que atualize uma visão democrática para a educação, combatendo os privilégios e promovendo a equidade dentro e entre as escolas.
Ao negligenciar essa tarefa – e optar por investir em tecnologia em vez de pessoas – só aprofundamos a divisão entre os distritos escolares, perpetuando ciclos compostos de privilégios e opressões que só continuarão a ampliar o fosso entre as escolas de alta e baixa renda.
Mais importante, eu aprendi que precisamos trabalhar juntos.
Não há solução milagrosa ou bala de prata que irá resolver o grande problema da educação. Apostar em fundos de capital de risco para resolver problemas através da aprendizagem personalizada apoiada em tecnologia só perpetua sistemas de desigualdade, especialmente se apenas escolas em áreas de alta renda e predominantemente brancas podem acessá-las.
Nenhuma ideia, produto ou organização poderá consertar isso sozinho. Este é o perigo da mentalidade capitalista, do vencedor leva tudo. Ele o individualismo que vive dentro da gente, um individualismo que me deixou querer trabalhar no Vale do Silício. Eu queria ser um trabalhador do conhecimento do século 21, e eu queria alcançar isso fazendo algo legal na tecnologia. Cegado pelo meu próprio privilégio, o individualismo obteve o melhor de mim. Acabei me concentrando demais no sucesso no mundo da tecnologia da educação e, como resultado, comecei a perder a satisfação no dia-a-dia do ensino. Fiquei desconectado e desempoderado, porque perdi a perspectiva sobre o que realmente importava.
Precisamos abandonar o individualismo que o capitalismo instalou dentro de nós. Precisamos trabalhar juntos e apoiar uns aos outros, não perpetuar uma teoria carregada de privilégio com o objetivo de ganhar capital.
Na realidade, é o sistema que está quebrado – e não necessariamente as pessoas que fazem parte dele. Conheci profissionais incríveis e inteligentes no Vale do Silício: professores apaixonados, criativos e conhecedores; tecnólogos que pensavam radicalmente diferente do que eu fiz e alimentaram minhas ideias sobre o que era possível na sala de aula. Mas o privilégio e uma mentalidade capitalista acinzentaram nossa compreensão a respeito de quais problemas realmente precisam ser resolvidos na educação.
“Falhar rápido” é um lema bem conhecido no Vale do Silício. Como digo aos meus alunos, não há nada de errado em falhar e estar errado, desde que você promova uma mudança e evite cometer os mesmos erros repetidamente. A tecnologia da educação precisa aprender com seus erros e acredito que voltar a entrar em contato com os princípios do design centrado no ser humano ajudará os entusiastas da educação a reconectar com o que realmente importa nas escolas. Afinal, as pessoas que conhecem melhor, fazem melhor.
Agora sabemos melhor. Como resultado, devemos fazer melhor.
* Paul Emerich France (@paul_emerich) é professor em Chicago
** Conteúdo publicado originalmente no EdSurge e reproduzido mediante autorização