Para alunos e professores, Base deve dialogar com realidade
Desenvolvimento integral, novas tecnologias e Enem estão entre as preocupações dos principais atores do sistema educacional em relação à construção de orientações curriculares
por Sergio Pompeu 24 de setembro de 2015
Depois que a porta da sala se fecha, a coisa fica entre eles. Qualquer orientação curricular sugerida na Base Nacional Comum Curricular (BNC), colocada este mês em debate público pelo Ministério da Educação, precisa passar pelo teste dos dois principais atores do sistema educacional: professores e alunos. Paradoxalmente, tanto um grupo como o outro se queixa de não ser ouvido nos debates sobre o tema.
Um dos riscos de não se ouvir atores-chave no debate da BNC é o de partir de pressupostos errados. Esse é um dos temores de Cristiana Mattos Assumpção, coordenadora de Tecnologia Educacional e Ciências do Colégio Bandeirantes, em São Paulo. Para Cristiana, o conceito de desenvolvimento integral (que inclui competências não-cognitivas, como as socioemocionais) deveria estar no centro da Base – no anteprojeto do MEC, essas competências são descritas apenas na introdução do texto.
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“O ponto de partida é definir o tipo de aluno que se quer formar”, diz Cristiana. “E aí temos de falar na formação integral dele, não só de conteúdo: os jovens precisam sair do ensino básico hoje como pessoas informadas, produtivas para a sociedade, capazes de tomar as melhores decisões possíveis com base em dados objetivos e em valores éticos.”
Para Cristiana, a escola precisa acompanhar mudanças radicais da sociedade e da tecnologia que são recentes, não estavam colocadas em outros momentos do debate sobre educação. “Qual é o novo papel do professor e do aluno quando os dois têm acesso a todo tipo de informação na ponta dos dedos?”
A coordenadora do Bandeirantes cita um exemplo que ilustra com clareza a dificuldade de se discutir conteúdos tradicionais dissociados do desenvolvimento integral. “Se concordarmos que nossa meta é formar alunos questionadores, isso muda toda a estratégia em sala de aula.” É difícil mesmo acreditar que alunos questionadores se acomodem durante todo o ensino básico a uma rotina de aulas expositivas de 50 minutos uma atrás da outra. É bem possível que parte deles seja vista mais como indisciplinada do que como o grupo mais brilhante da classe.
A realidade de Cristiana é bem diferente da de Enir Cerqueira da Silva Oliveira, professora do 5º ano de uma escola municipal de Ribeirão Pires, na Grande São Paulo. Mas Enir também está preocupada em se conectar com a realidade do aluno e procura qualificação para conseguir trabalhar melhor. Ela é uma das inscritas no curso online Gestão da Sala de Aula, oferecido pela Fundação Lemann e pela Elos Educacional para professores a melhorarem as práticas, mudando o modo como trabalham com os alunos.
Com 18 anos de experiência, Enir tem expectativas modestas em relação à BNC. Já se daria por satisfeita se a Base conseguir atrair a família do estudante para o cotidiano escolar. “Os pais são muito distantes, precisamos de projetos que não se limitem ao menino na sala de aula, mas envolvam toda a escola e o entorno”, diz. “O que existe hoje, o Família na Escola, é apenas uma série de palestras feita duas vezes por ano e tem muito pouca participação.”
A aproximação com os pais talvez possa ajudar a atacar um dos problemas que, na avaliação de Enir, só piorou desde que ela começou a trabalhar: a indisciplina dos alunos. “Também tem sido muito difícil fazer os meninos se envolverem com os estudos”, diz. “Mas não vou dizer que tudo piorou: em termos de recursos pedagógicos a situação está muito melhor. Temos mais livros didáticos, mais computadores.”
Para Bárbara Bahia de Holanda Melo, presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), o desinteresse dos alunos está ligado à falta de conexão entre sua realidade e o que a escola ensina. “A nova Base só vai dar certo se os estudantes se sentirem parte do seu processo de montagem e se o currículo que sair do debate estabelecer uma correlação direta com o cotidiano do jovem, não for uma coisa abstrata”, diz.
A Ubes foi ouvida pelo MEC na montagem do projeto da Base colocado em consulta pública este mês, mas pretende dar uma contribuição mais incisiva. Diretores da entidade estão liderando discussões em fóruns regionais e o tema será tratado também durante o Congresso da Ubes, marcado para o início de novembro em Brasília. “A consulta pública precisa ser o mais democrática possível, mas depois tem a parte eletiva, que fica fora da Base. A nossa proposta é que cada escola faça seu próprio congresso para discutir seu currículo.”
Ao contrário de outros participantes do debate da BNC, Bárbara, de apenas 20 anos, lembra bem do seu período de estudante do ensino básico. “Eu sofria bastante com o ‘monstro da Química’”, diz. Entre as propostas para melhorar o ensino, não só de Química como de outras disciplinas, a presidente da Ubes cita o uso intensivo de tecnologia. “Muitas vezes você tem mais tecnologia embutida no smartphone de um estudante do que na escola inteira”, diz. “E, quando tem tecnologia na escola, muitas vezes o professor não foi capacitado para utilizá-la.”
Integrante do Mapa da Educação, movimento que nasceu para estimular o debate sobre educação durante as eleições do ano passado, Gabriel Dolabella, de 19 anos, acredita que a maioria das partes envolvidas no processo (alunos, professores, gestores e pais) foi pega de surpresa pelo documento divulgado pelo MEC. “O documento veio do nada, sem um aviso prévio, o que dificulta o debate com a sociedade. Acho que seria necessária uma chamada mais forte para o pessoal poder participar.”
De fato, apesar de a criação da Base já estar prevista no Plano Nacional de Educação, nenhum dos entrevistados para esta reportagem afirmou ter analisado mais detidamente o documento do MEC. Ou seja: o debate permaneceu restrito a alguns círculos a ainda não empolgou a maioria dos atores que deveriam participar dele, o que é preocupante.
Estudante de Direito na Fundação Getúlio Vargas no Rio, Gabriel pediu para que fosse ressaltado na entrevista que falou em seu nome, não no do Mapa da Educação. Ele acredita que o princípio da BNC, de tratar o currículo mínimo como um direito dos estudantes, tem identidade com as bandeiras do movimento. Mas acha também que a Base não vai sair do papel se não dialogar fortemente com o vestibular. “Ele é atualmente o grande foco da educação do Brasil. Você não mudará o currículo se não mudá-lo”, diz.
Gabriel afirma que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) trouxe ganhos por centralizar o processo de seleção, antes disperso em exames individuais de dezenas de instituições. “Mas ele ainda obriga o jovem a cumprir uma carga muito ampla de disciplinas e o impede de focar mais cedo na sua área de interesse”, diz. “Mesmo se quisesse se aventurar para construir algo diferente, o aluno ainda estaria atrelado a algo estatístico, um teste de quanto a pessoa consegue absorver e demonstrar em um único exame.”
O estudante de Direito não tem uma fórmula pronta para um novo Enem, mas acredita que a solução passa por mais “ousadia” na divisão entre as áreas do conhecimento no exame. Isso permitiria reduzir a carga horária de disciplinas não ligadas diretamente à área de interesse do aluno. “Com um currículo menos engessado, a pessoa que quer empreender, por exemplo, pode ter aulas específicas sobre isso”, diz. “Tem muitos jovens com boas ideias sem um mínimo de capacitação em finanças para manter um negócio, algo que a escola poderia ter dado.”