Igualdade de gênero nas carreiras demanda mudança em casa, na escola e na universidade
Porvir e Iede mostram como a trajetória escolar de meninos e meninas em nenhum momento traz dados de proficiência que justificam diferenças de rendimento salarial
por Marina Lopes / Regiany Silva / Dados: Portal Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede) 8 de março de 2018
No dia 8 de março, não há muito o que comemorar quando são comparados os dados de rendimento salarial por gênero. Apesar de terem trajetória escolar semelhante e mais anos de estudo, dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) mostram que as mulheres ainda ganham menos do que os homens na maioria das ocupações e atividades econômicas.
Em parceria com o portal Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional), o Porvir apresenta um levantamento da trajetória acadêmica de meninos e meninas no país. Da educação básica ao ensino superior, não há dados de proficiência que justifiquem a discrepância na proporção de pessoas que chegam a patamares altos de remuneração no Brasil: 5,37% homens contra 1,49% das mulheres com 15 ou mais anos de estudo que ganham mais de 20 salários mínimos.
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Dados da Prova Brasil 2015 mostram que, desde o início do ensino fundamental ao final do ensino médio, considerando escolas públicas e privadas, tanto meninas quanto meninos têm desempenho abaixo do esperado:
Embora grande parte dos estudantes brasileiros não apresente um nível de proficiência adequado, os dados sugerem uma leve diferença no desempenho por gênero entre as áreas. De acordo com dados do Pisa 2015 (prova internacional para alunos de 15 anos), as meninas do Brasil obtêm melhor desempenho em leitura e resolução colaborativa de problemas, enquanto os meninos se saem melhor em matemática e ciências.
Para Roseli de Deus Lopes, professora da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (POLI-USP) e coordenadora da Febrace (Feira Brasileira de Ciências e Engenharia), esse resultado não está baseado em nenhuma evidência biológica, mas em uma construção social. “Eu acho que essas coisas são muito mais resultado de uma cultura e mentalidade que nos fazem acreditar que algumas profissões não são adequadas para meninas ou meninos, assim como alguns comportamentos”, diz.
De brincadeiras a comportamentos, ela diz que as crianças recebem desde cedo uma série de influências que podem fortalecer ou não a sua autoconfiança. “Precisamos de investimentos porque todo mundo tem potencial para fazer qualquer coisa. Qualquer um pode ser um cientista”, destaca. Como exemplo disso, anualmente a feira coordenada por ela apresenta projetos desenvolvidos por estudantes de todo o país que tentam resolver problemas reais de uma forma criativa.
Ao longo dos últimos anos, a Febrace tem registrado um crescente aumento da participação de meninas. De acordo com o último relatório feito pelos organizadores da feira, referente à edição de 2016, a divisão de estudantes por gênero foi de 51% masculino e 49% feminino. No entanto, a professora da POLI-USP afirma que ainda são necessárias mais iniciativas para fortalecer a confiança de meninas nas exatas, como a conscientização da sociedade e o maior investimento na formação de professores para uma mudança de mentalidade nas escolas.
Tendência mundial
A diferença de pontos no desempenho relativo de meninos e meninas em matemática, ciências e leitura tende a ser maior nos países ibero-americanos do que a média da OCDE. No entanto, em países com melhor desempenho, como Singapura e Taiwan, ambos alcançam pontuações altas.
A partir da análise de resultados do Pisa, um relatório elaborado pela OCDE também sugere que as disparidades de gênero por área não são determinadas por diferenças inatas de habilidades, mas por um esforço concentrado de pais, professores, políticos e líderes para que meninos e meninas sejam capazes de contribuir para o crescimento dos seus países.
Em um estudo sobre equidade de gênero na educação, a OCDE aponta que meninos de 15 anos são mais propensos a ter fraco desempenho geral. Porém, isso pode estar relacionado a uma série de fatores: eles gastam uma hora a menos por semana em deveres de casa do que as meninas; 75% das meninas leem por prazer contra 50% dos meninos; e nos países da OCDE os meninos são mais propensos a relatar que a escola é um desperdício de tempo.
Importância de exemplos de vida
Para a estudante Lara Franciulli, 17, o incentivo dos pais e o contato com outras mulheres que atuam na área foi fundamental para romper com os estereótipos que cercam as exatas. Atualmente no terceiro ano do ensino médio do Colégio Etapa, em São Paulo (SP), ela já acumula mais de dez classificações nas principais competições científicas nacionais e internacionais. “Eu comecei em 2012 a participar de olimpíadas fora da escola. Com 12 anos, fui medalha de ouro na Olimpíada Paulista de Matemática e ganhei o bronze em uma competição na Argentina”, conta.
Apesar de acumular reconhecimentos nacionais e internacionais, a estudante avalia que em algum momento da trajetória escolar os estereótipos de gênero das exatas ganham força e começam a pressionar as meninas. “As pessoas começam a cobrar muito que você seja perfeita. Alguma coisa acontece entre a infância e a adolescência. Com o passar dos anos, eu passei a acreditar menos em mim, mas não tinha sentido nisso. Para você conseguir que as meninas alcancem seus sonhos, você tem que trabalhar com a autoestima delas. Você tem que falar que elas conseguem alcançar.”
De acordo com dados de um relatório da OCDE, quando meninas e meninos apresentam o mesmo nível de confiança e autoestima com a matemática, as diferenças de rendimento desaparecem. Para fortalecer a autoestima das meninas que estão entrando na adolescência, Lara participa de atividades do projeto Força Meninas, que fortalece a liderança de meninas de 6 a 18 anos, dá aulas em uma ONG no Jaçanã e já fez oficinas de matemática e tecnologia para jovens estudantes. “A questão da representatividade é fundamental, mulheres que contam sua experiência para inspirar outras meninas.”
Elas nas carreiras de exatas
A falta de autoconfiança de muitas meninas nas disciplinas exatas, como relata a jovem medalhista brasileira, também se reflete nas escolhas de cursos durante o ensino superior. Nos países da OCDE, apenas 14% das mulheres que entraram na universidade pela primeira vez em 2012 escolheram campos relacionados à ciência, contra um total de 39% dos meninos. No Brasil, apesar das mulheres representarem mais de 60% dos concluintes de cursos de ensino superior, quando considerados os cursos de ciências, como engenharia, matemática e física, essa participação cai para 41%.
Enquanto ainda são minoria nas áreas de tecnologia e engenharia, as mulheres ocupam a maior parte das vagas nas licenciaturas, principalmente nos cursos de pedagogia. Isso se reflete na distribuição de docentes na educação básica brasileira: 1.758.94 mulheres e 437.425 homens. Na etapa da educação infantil, essa diferença é ainda maior: são 553.936 professoras e 21.310 professores. Entretanto, ao analisar os dados do ensino superior, a participação feminina se reduz consideravelmente. Existe uma diferença de mais de 34 mil professores homens que ocupam estes cargos.
Mais anos de estudo e salários menores
A escolha de carreiras em diferentes áreas também pode ser um fator que resulta na diferença de rendimento salarial entre homens e mulheres. A professora do Departamento de Economia da UFPR (Universidade Federal do Paraná), Raquel Guimarães, PhD em demografia e mestre em educação comparada, explica que a literatura econômica apresenta essa diferença a partir de dois tipos de efeito. “O primeiro seria um efeito composicional, das características do emprego. Pode existir um diferencial salarial devido ao fato de que mulheres e homens se concentram em ocupações de diferentes características”, sugere.
“As mulheres tendem a se concentrar em ocupações que tendem a ter salários menores, como as da saúde, da educação e das ciências humanas. Ao passo que os homens vão para as carreiras executivas e de engenharia”, diz, ao mencionar que, apesar de ser uma opção de ambos, essa escolha tem por trás uma série de estereótipos. “Também tem uma questão da flexibilidade de trabalho. Para as mulheres se inserirem em ocupações mais competitivas que pagam os melhores salários, elas teriam mais dificuldade de conciliar a carreira com a família”, acrescenta Raquel, enquanto diz que o cuidado familiar ainda está muito associado como uma responsabilidade feminina em grande parte dos países.
Enquanto uma parte do diferencial salarial pode ser explicado pela escolha de ocupações que tendem a pagar menos, a professora do Departamento de Economia da UFPR também destaca que ainda existe um efeito de discriminação ao comparar homens e mulheres com a mesma escolarização, experiência profissional e atributos produtivos. “Quando eu pego homens e mulheres com o mesmo nível de escolaridade, com a mesma ocupação e características produtivas, se persiste esse diferencial, podemos dizer que temos um sinal de discriminação”, pondera.
De acordo com ela, a literatura econômica identifica que essa diferença salarial pode estar associada a questões do empregador. “Se ele tem uma homem e mulher correndo a uma carreira executiva, os dois têm mestrado e MBA, a mesma experiência e característica produtiva, mas a mulher tem mais probabilidade de sair de licença maternidade. Isso pode fazer com que o chefe não dê a ela promoções e deixe isso implícito no salário.”
“A questão que parece mais grave é a grande diferença de percentual de homens e mulheres que chegam a um bom patamar de remuneração no Brasil. No acesso às posições de liderança, em especial, a diferença é muito forte em favor dos homens. É muito mais difícil para uma mulher chegar a um salário de R$ 10 mil, e não há nenhum dado de proficiência que justifique isso”, avalia Ernesto Faria, diretor e fundador do Portal Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional).
Como mudar esse cenário
A desigualdade de gênero também traz prejuízos globais do ponto de vista econômico. Segundo um relatório da OIT (Organização Internacional do Trabalho), se essas disparidades fossem reduzidas em 25% até 2025, seria possível adicionar US$ 5,8 trilhões para a economia global.
O caminho para mudar esse cenário, de acordo com a economista Raquel Guimarães, passa por uma mudança de mentalidade. “As políticas públicas deveriam olhar para a questão de gênero no mercado de trabalho na perspectiva de entender que também existe uma economia do cuidado por trás.” Dados do Ipea, apresentados no estudo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, mostram que com a dupla jornada, que incluem cuidados familiares e com a casa, as mulheres trabalham 7,5 horas a mais que os homens na semana. Mais de 90% das mulheres dizem realizar atividades domésticas, já entre os homens essa proporção cai para 50%.
Nesse sentido, ela sugere políticas que estimulem uma mudança cultural e que consigam sensibilizar os empregadores de que, quando uma mulher está em licença maternidade, por exemplo, ela tem um grande impacto para a economia. “Em um contexto de transição demográfica acelerada, é uma criança que está vindo para ajudar na economia. Esse direito tem que ser garantido para que de fato elas tenham a possibilidade de cuidar dos seus filhos na primeira infância, algo que tem sido levantado pela literatura como um período muito importante.”
Já do ponto de vista educacional, o documento Cracking de Code (“Quebrando o Código), lançado pela Unesco em 2017 a partir de recomendações feitas por especialistas em educação, mostra que a mudança que permitirá uma presença maior de meninas nas carreiras de ciências e exatas não tem uma única solução e demanda quatro níveis diferentes de intervenções: da própria menina, da família e dos amigos, da escola e da sociedade.
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No nível individual, as intervenções devem ter como foco o desenvolvimento de habilidades espaciais e letramento numérico desde cedo, de autoconfiança, do interesse e da motivação para meninas seguirem carreira nas ciências.
Para o nível familiar e de amizades, as intervenções precisam atacar equívocos e estereótipos ligados ao gênero e supostas habilidades inatas para ampliar as oportunidades educacionais e espaços no mercado de trabalho; conectar famílias a tutores que ajudem na construção de trilhas voltadas às ciências, assim como o apoio de pares.
Dentro deste cenário, cabe à escola desenvolver percepções e habilidades de professores para que sejam desenvolvidas atividades e avaliações que considerem a igualdade de gênero.
Em um sentido mais amplo, é papel da sociedade fomentar mecanismos culturais e sociais relacionados à igualdade de gênero e ao combate de estereótipos na mídia, em políticas públicas e legislações.
Texto: Marina Lopes com a colaboração de Vinícius de Oliveira (Porvir)
Infografia: Regiany Silva (Porvir)
Dados: Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional)
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