O que a arte pode fazer pela educação antirracista?
Confira entrevista com o professor e compositor Allan Pevirguladez após participação em painel na Bett Brasil 2024. Com vídeos ao lado de estudantes, o educador faz sucesso nas redes sociais
por Ruam Oliveira 25 de abril de 2024
“O meu cabelo é bem bonito, é Black Power e é bem pretinho. O do João também é bonito, é amarelo e bem lisinho”. Esses são os versos iniciais da canção “Meu cabelo é bem bonito”, criada pelo professor e músico carioca Allan Pevirguladez. Dentro do que ele define como “MPBIA” (Música Popular Brasileira Infantil Antirracista), as composições exploram temas como raça, identidade e valorização cultural.
Professor de educação infantil na rede municipal do Rio de Janeiro (RJ), Allan participou nesta quarta-feira (24) de um painel sobre educação antirracista e arte na Bett Brasil 2024. Em entrevista ao Porvir após a palestra, ele abordou a importância de incluir esses temas desde a primeira infância. “A música — que é o elemento que eu utilizo artisticamente — tem grande efetividade. Ela tem o poder de penetrar no imaginário do ser humano de uma forma que nenhuma outra manifestação artística possui. Possui a capacidade de incutir mensagens e ideias. Isso é extremamente libertador”, comentou o artista.
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Os vídeos de Allan nas redes sociais, que mostram crianças cantando suas músicas, tornaram-se virais. Seu primeiro álbum dedicado à MPBIA inclui 10 faixas utilizadas em sala de aula. Allan comenta que este projeto é considerado pioneiro, pois é o primeiro de música infantil que se dedica ao antirracismo. Confira abaixo destaques da conversa:
Porvir – Como a arte pode ser antirracista?
Allan Pevirguladez – A partir do momento em que ela promove valores como o respeito à diversidade e à pluralidade existentes em nosso país, e quando ressignifica a identidade negra e indígena de forma positiva, mostrando quem foram os personagens importantes na construção deste país, acredito firmemente que a arte pode ser antirracista por meio desses movimentos.“
Porvir – A arte também pode ser libertadora. Como esse potencial pode ser usado no combate ao racismo?
Allan – A arte cumpre essa função. A música — que é o elemento que utilizo artisticamente — é extremamente eficaz. Ela tem o poder de penetrar no imaginário humano de uma maneira que nenhuma outra manifestação artística consegue. Possui a capacidade de incutir mensagens e ideias. Isso é incrivelmente libertador, especialmente porque não requer tecnologia. Trabalho com base na oralidade, sem utilizar nenhum recurso adicional no meu cotidiano como educador musical, mas ao mesmo tempo, a única ferramenta que emprego é a voz. Por meio dessa oralidade, consigo, de certa forma, libertar meus alunos, permitindo que eles compreendam que podem ser o que desejarem, que são autônomos, independentes e valorosos dentro da sociedade. A arte é libertária quando promove a emancipação e constrói autonomia nos alunos.
Porvir – Você está atualmente no chão da escola, dando aulas para alunos da educação infantil. De que forma essa prática inspira sua arte?
Allan – O tempo todo. Um olhar, uma conversa ou mesmo uma fala de uma criança, tudo isso funciona como uma fagulha. Às vezes, vem uma ideia ou verso e percebo a importância daquilo. Foi assim que nasceram as primeiras canções, a partir de insights dentro da escola. Depois de uma conversa com uma professora, voltei para casa e escrevi três canções, incluindo “Meu cabelo é bem bonito”.
Porvir – Por que é importante falar sobre raça desde a educação infantil?
Allan – É essencial porque é nos primeiros anos de vida que a criança preta e a indígena começam a perceber se ela é valorizada ou não, se ela é vista como bela ou não, se o seu cabelo é alvo de chacota ou não… Quando comecei a trabalhar na educação infantil, presenciei uma situação de racismo entre dois alunos, uma menina branca de 5 anos e um outro menino preto cinco anos, então isso me saltou os olhos e me chamou atenção e me alertou de que era necessário trabalhar o tema. Posso te dizer que com as turmas que tenho trabalhado, a partir do repertório da MPBIA, não tenho casos de racismo.
É essencial porque nos primeiros anos de vida que a criança preta e a indígena começam a perceber se são valorizadas ou não, se são vistas como belas ou não, se seu cabelo é alvo de chacota ou não… Quando comecei a trabalhar na educação infantil, presenciei uma situação de racismo entre dois alunos, uma menina branca e um menino preto, ambos com cinco anos, o que me chamou a atenção e alertou sobre a necessidade de abordar esse tema. Posso dizer que com as turmas que trabalhei, usando o repertório da MPBIA, não registrei casos de racismo. Acredito que isso se deve à constante exposição às músicas, que ajuda a internalizar que não deve xingar o coleguinha, nem mexer no cabelo ou falar da cor da pele.
Em contrapartida, vejo outras professoras, até da mesma escola em que trabalho, que vêm até mim pedir ajuda porque existem manifestações de racismo em suas turmas, onde não há um trabalho semelhante ao que realizo. A falta de um trabalho antirracista nessas turmas acaba permitindo que o racismo se manifeste, e eu acredito que seja fundamental trabalharmos isso desde a primeira infância. Assim, podemos erradicar e antecipar-nos ao racismo, afastando-o desse universo infantil e permitindo que nossas crianças vivam e cresçam de forma mais saudável.
Não basta que apenas o educador na linha de frente realize esse trabalho se os demais profissionais, que também estão inseridos no ambiente escolar, não possuírem essa formação
Porvir – Este exemplo destaca a importância da formação de professores. Como podemos garantir que esse processo não fique restrito apenas aos professores negros?|
Allan – Este é um problema recorrente na educação brasileira. Uma pesquisa realizada pelos institutos Alana e Geledés revelou que 79% das secretarias municipais não aplicam a Lei 10.639/03. Quando um profissional se dedica a essas questões antirracistas na escola, muitas vezes ele se torna o totem para todas as situações, mas o ideal seria um processo de formação continuada para todos os profissionais da escola. E não apenas o educador que está em sala de aula, mas também as pessoas da cozinha, da limpeza e da portaria precisam estar envolvidas na construção de uma escola antirracista. Não basta que apenas o educador na linha de frente realize esse trabalho se os demais profissionais, que também estão inseridos no ambiente escolar, não possuírem essa formação, pois isso pode resultar em discursos racistas que prejudicam o trabalho desenvolvido em sala de aula.
Porvir – A arte é considerada um direito humano. Atuando na educação infantil, como você observa a concretização desse direito na vida das crianças por meio de seu trabalho artístico?
Allan – Eu vejo com muita responsabilidade e muita entrega, porque penso que é fundamental a criança ter essa convivência com a arte. Essa construção vai dar a ela uma possibilidade muito maior de entender e lidar com o mundo, além de saber como se expressar. Quando integramos a arte à educação, percebo que nossos alunos se desenvolvem de maneira mais ampla do que se não tivessem essa oportunidade. Eles conseguem explorar e maximizar suas potencialidades e suas identidades de forma mais significativa.
Porvir – Você comentou mais cedo sobre o lugar de representatividade que ocupa. Nesse sentido, qual é o peso e a alegria de estar nesse posto?
Allan – É imenso nas duas pontas. Carrego uma responsabilidade enorme, pois estou em uma posição de visibilidade e representatividade, o que é uma linha tênue em caso de erro. Sabemos que é fácil ser colocado em um pedestal e igualmente fácil ser derrubado. No entanto, estar nesse lugar me traz muita felicidade, porque muito depende de mim e acredito profundamente no que faço. Sinto que posso contribuir significativamente com a sociedade, com minha comunidade e com meus irmãos negros deste país e de outros lugares.