A Base e o essencial
Em artigo, pesquisadoras convidam sociedade a refletir sobre o que deve ser trabalhado nas escolas para construir o futuro do país
por Leticia Lyle / Tonia Casarin 15 de janeiro de 2016
Fora do mundo da educação poucas pessoas sabiam a importância da consulta pública que se iniciou no dia 16 de Setembro de 2015. A sociedade civil teria três meses para discutir, sugerir e apresentar comentários sobre o documento da Base Nacional Comum – um currículo para todo o ensino básico do Brasil. No entanto, tamanha foi a procura e a participação do público que a consulta foi estendida até dia 16 de março de 2016. Mas, por que tanto interesse?
Esse currículo, realizado a muitas e mestras mãos, tem como objetivo delinear o que é essencial para uma criança brasileira aprender na escola. Com algumas diretivas amplas, e outras específicas, um documento como esse não pretende limitar o que escolas ensinam, mas garantir que todos os alunos aprendam o necessário para ter sucesso na escola e em suas vidas. Foram consultados grandes nomes da educação no Brasil, observados conteúdos e formatos de outras iniciativas, modelos de Estados e Municípios, em um esforço de anos e muita discussão. O foco do debate são as definições do que é essencial na formação de uma criança brasileira.
Imagine essa discussão sob a seguinte ótica: há duas maneiras dialógicas de encarar um currículo; uma é pelo presente, outra é por uma visão de futuro. Quando se desenha um currículo para o presente, pensa-se nas grandes questões que não conseguimos até agora plenamente dominar e trabalhar – por exemplo, a alfabetização até a idade certa, ou questões de aprendizagem de matemática. São eleitos conteúdos sobre o que especificamente devemos saber (ex: por que e como ocorreu a Inconfidência Mineira), e as competências que devem decorrer desse aprendizado (ex: como identificar a importância de movimentos populares). Essa é uma discussão de currículo que permite, no âmbito dos conteúdos, que tenhamos métricas específicas, planos estruturados e um caminho a seguir.
No entanto, quando desenhamos um currículo para o futuro, essa lógica entre conteúdo e competência fica mais complexa. As perguntas passam a ser: o que será essencial daqui a 12 anos quando essa criança sair da escola para ingressar na faculdade? E daqui a 16 anos no mercado de trabalho? O que ela deverá conhecer e saber quando, em diversos momentos de sua vida adulta, confrontar sua realidade com suas expectativas? A necessidade de reflexão e estudo sobre tendências e influências passa a ser tão importante quanto os conteúdos essenciais para o presente – a discussão passa a ser: quais as ferramentas que a escola precisará oferecer para essa criança viver no futuro?
Não precisamos ir muito longe para imaginar a desesperadora velocidade da tecnologia nas nossas vidas: 17 anos atrás o Google era uma pequena empresa em um garagem na Califórnia, não tínhamos smartphones, nem Facebook, muito menos WhatsApp. Até 2030 estima-se que 40% dos empregos que existem hoje serão realizados por máquinas, ou deixarão de existir (Genesis Report, CBRE , 2014). Os conteúdos que vemos como relevantes já estão a um clique de distância, o mundo não é separado por fronteiras geográficas rígidas, você vive, colabora, interage e compete com todo ele.
Há alguns meses, a Harvard Business Review publicou um artigo com uma premissa provocadora: em um mundo cada vez mais tecnológico, as habilidades sociais e emocionais são cada vez mais importantes. O artigo diz que no modelo de mundo que já é presente e cada vez mais se aproxima, saber se relacionar, se comunicar, trabalhar cooperativamente e se adaptar a circunstâncias diversas pode ser o diferencial entre você e o outro candidato a um emprego, e não necessariamente sua capacidade de fazer cálculos mentais. Ele aponta que bons robôs são excelentes em realizar tarefas específicas, as que foram programados para realizar, mas por esse mesmo motivo não são flexíveis – e essa é a vantagem dos seres humanos no mercado de trabalho: ser capaz de estabelecer relações em diferentes contextos.
As competências para esse novo mundo encontram vários nomes em movimentos atuais: competências para o século 21, competências socioemocionais, não-cognitivas etc. Independente de pequenas variações entre o que se considera mais importante, essas competências foram definidas com base em linhas de estudo que há anos juntam educação, psicologia, neurociência, economia e outras ciências em torno de soluções, preparando crianças e jovens para suas vidas que já começam no novo milênio. Na discussão da Base Nacional Comum, a resposta dada por esses pesquisadores, organizações e empreendedores à pergunta sobre qual será o mundo dessas crianças brasileiras no futuro é, retumbantemente, um mundo tecnológico, inovador, no qual a capacidade de ser flexível, autônomo e responsável com o mundo onde vive são essenciais.
Nossa Constituição Federal (1988), em seu artigo 205, e a LDB (1996), em seu artigo 2o já apontam como papel fundamental da educação brasileira o pleno desenvolvimento do educando. Esses documentos sob os quais a Base Nacional Comum é construída, indicam uma atemporalidade necessária ao campo da educação; eles permitem e incentivam que, assim como a sociedade se transforma, a educação e seus indivíduos, se transformem também. O modelo de educação focado em conteúdos desarticulados, distantes dos indivíduos e de suas capacidades não só pode, como legalmente deve se transformar.
Em junho de 2016 esse novo documento, um marco legal e obrigatório para o ensino de todas as crianças brasileiras será colocado em prática. O convite é para que todos os brasileiros que pensam no futuro conheçam e participem do debate sobre o que é essencial para nosso país. Certamente é mais claro planejarmos para o que já sabemos que é essencial e deve ser trabalhado nas escolas. Mas fica o desafio: como planejamos para o mundo que está por vir?
* Letícia e Tonia coordenam projetos pedagógicos na Mindset Education, empresa especializada em implementação de projetos e construção de currículo socioemocional.
Leticia Lyle
É pedagoga e mestre em Currículo e Educação Inclusiva pelo Teachers College da Columbia University, nos Estados Unidos. É cofundadora da Camino Education e da Cloe, além de diretora da Camino School. Também é coautora do livro "Convivência Ética na Educação" e conselheira do Instituto Porvir e do Instituto Ame Sua Mente.
Tonia Casarin
Tonia Casarin é mestra pelo Teachers College da Columbia University e Lemann Fellow. É autora do livro infantil Tenho Monstros na Barriga que ensina crianças a identificarem seus sentimentos.