O desafio de transformar a BNCC Computação em prática real nas redes públicas
Políticas públicas como o VAAR podem acelerar a chegada da computação a todas as escolas, mas a mudança depende de vontade política e apoio à formação docente
por Débora Garofalo
12 de novembro de 2025
Para falar da BNCC Computação, precisamos olhar no retrovisor. Voltamos para 2018, quando a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) passou a determinar que todos os estudantes brasileiros devem desenvolver competências digitais e de pensamento computacional ao longo da educação básica. Essa diretriz marca um avanço importante: reconhecer que compreender a lógica das tecnologias é tão importante quanto ler, escrever e calcular.
No entanto, transformar esse princípio em prática cotidiana nas escolas públicas ainda é um desafio. O Brasil vive um momento decisivo: de um lado, há avanços em políticas de tecnologia e inovação; de outro, persistem desigualdades em infraestrutura, formação docente e acesso.
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A BNCC Computação, complemento à BNCC que estabelece habilidades e competências essenciais de computação para os estudantes, foi normatizada em 2022 (com a publicação das diretrizes). Contudo, a implementação plena e obrigatória em todas as redes de ensino deve ocorrer a partir de 2026. O sucesso desse trabalho, porém, dependerá da capacidade das redes de ensino de articular currículo, investimento e formação docente em torno de um projeto de transformação digital humanizada.
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O papel do VAAR na implementação da BNCC Computação
Um dos instrumentos mais promissores para viabilizar essa transformação é o VAAR (Valor Aluno Ano Resultado), indicador criado pelo MEC (Ministério da Educação) para medir a qualidade da educação básica nas redes públicas. O VAAR relaciona o investimento realizado por aluno com o desempenho obtido, permitindo uma análise mais precisa da eficácia dos recursos aplicados.
Esse indicador é um dos destaques do novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), aprovado em 2020, principal fundo público composto por recursos de impostos destinados ao financiamento da educação básica pública. O VAAR adota uma lógica de financiamento baseada não apenas no número de matrículas, mas também nos resultados de aprendizagem e na equidade. Ou seja, escolas que melhoram o desempenho dos alunos (especialmente os mais vulneráveis) recebem mais apoio financeiro
Na prática, o VAAR estimula estados e municípios a desenvolver planos de melhoria da aprendizagem, que podem incluir a implementação da BNCC Computação, a formação docente em tecnologias digitais e o fortalecimento de uma cultura de inovação pedagógica.
Segundo dados de 2024 do MEC, cerca de 70% das redes municipais ainda não incorporaram plenamente o componente de computação ou pensamento computacional (criar algoritmos simples ou resolver problemas com lógica) em seus currículos. Ao vincular recursos ao avanço de indicadores educacionais, o VAAR pode ser o motor para acelerar essa implementação, garantindo que a inovação não seja privilégio de poucas redes, mas uma realidade para todos os estudantes.
💡O que a escola precisa para ensinar no mundo digital?
Exemplos de São Paulo, Minas Gerais e Ceará
Alguns estados vêm se destacando nesse processo. Em minha passagem pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEDUC-SP), em 2019, implementamos o programa Inova Educação, que integra o ensino de tecnologia e inovação ao currículo do ensino fundamental 2 e do ensino médio, alcançando mais de 3,7 milhões de estudantes em 5.400 escolas. Além de disciplinas específicas, a rede oferece formações para professores e infraestrutura tecnológica nas unidades escolares.
Em Minas Gerais, o projeto Trilhas de Futuro – Educação Profissional e Tecnológica conecta estudantes do ensino médio a cursos técnicos em áreas digitais, impactando mais de 1 milhão de alunos em 600 escolas estaduais. Já no Ceará, a criação dos Centros de Educação em Tempo Integral e o investimento em formação tecnológica docente consolidaram o estado como referência em inovação e equidade digital, com foco especial em escolas do interior.
Esses exemplos mostram que, quando há planejamento, formação e investimento estruturado, a computação deixa de ser um tema periférico e se torna parte da cultura escolar.
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Formação docente e cultura digital: o coração da mudança
Mais do que laboratórios ou equipamentos, o sucesso da BNCC Computação depende das pessoas. De acordo com o Cetic.br, em 2023, apenas 41% dos professores da educação básica se sentIiam preparados para ensinar conteúdos relacionados à tecnologia digital. Esse dado revela uma lacuna significativa entre o currículo e a prática.
Investir em formação continuada, mentorias em rede e comunidades de prática é fundamental. A formação deve ir além do uso técnico das ferramentas: precisa apoiar o professor a compreender como o pensamento computacional pode desenvolver a resolução de problemas, o raciocínio lógico e a criatividade em qualquer área do conhecimento.
Se a BNCC Computação é uma oportunidade para preparar os estudantes para o futuro, ela também revela um problema antigo: a desigualdade digital.
Segundo a PNAD 2023 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), quase 4 milhões de estudantes brasileiros ainda não têm acesso regular à internet em casa, e 30% das escolas públicas rurais não dispõem de conexão de qualidade. Sem infraestrutura, falar em computação é falar de uma promessa que não chega a todos.
Garantir conectividade universal, equipamentos adequados e manutenção tecnológica nas escolas é condição básica para que a BNCC se torne realidade. Mas a equidade digital também exige o reconhecimento das diferentes condições de partida: são necessárias políticas específicas para escolas rurais, quilombolas e indígenas, respeitando contextos e saberes locais.
Computação como cultura, não como ferramenta
A computação na BNCC não deve ser vista apenas como um conjunto de conteúdos ou habilidades técnicas, mas como uma forma de pensar o mundo.
Ensinar computação é ensinar os estudantes a compreender e criar com tecnologia, e não apenas a utilizá-la. É formar cidadãos críticos e criativos, capazes de participar ativamente da sociedade digital.
Para isso, o papel do professor é insubstituível. É ele quem transforma códigos e algoritmos em aprendizado significativo, quem conecta a lógica das máquinas à emoção e à curiosidade humanas. Por isso, toda política de inovação precisa colocar o educador no centro da mudança — fortalecendo-o, ouvindo-o e valorizando sua autonomia pedagógica.
O Brasil tem potencial para liderar uma revolução educacional baseada em inovação, equidade e humanização. A BNCC Computação, aliada a políticas como o VAAR, pode ser o caminho para um ensino público mais conectado às necessidades atuais. Mas o desafio não é apenas técnico: é cultural. Envolve garantir que cada estudante, em qualquer lugar do país, tenha a oportunidade de aprender com e sobre tecnologia — e que cada professor tenha condições de ensinar com confiança, criatividade e propósito.
A computação na educação básica é mais do que uma exigência curricular: é um convite a repensar o próprio papel da escola. E, como toda grande inovação, ela começa com um passo simples, mas transformador: colocar o humano no centro da tecnologia.
Débora Garofalo
Professora, mestra em Educação, gestora em inovação, integrante da comissão municipal de Direitos Humanos, embaixadora do Instituto Ayrton Senna e da Varkey Foundation. Considerada uma das 10 melhores professoras do mundo pelo Global Teacher Prize.





