COP não é Copa: a visão de uma professora sobre os paradoxos da COP30
por Marcela Castro
14 de novembro de 2025
Nas aulas de geografia, ensinamos aos nossos alunos que o clima na Amazônia é quente e úmido. Abanar-se com leques por causa do calor de Belém e, 15 minutos depois, ver pessoas do mundo aplaudindo um toró enorme é aprender na prática que o clima se mostra de forma diferente em cada um dos lugares onde estamos. Talvez por isso, a escolha da cidade das mangueiras para sediar a COP30 tenha sido tão acertada; a capital do Pará nos ensina que entender a natureza é entender quem somos e nos questiona para onde queremos ir.
COP significa “Conferência das Partes”, uma associação de todos os países membros – as “partes” – que se reúnem para discutir e avaliar questões climáticas. Como professora e moradora de Belém, vivenciei o preparo da cidade para receber esse evento, o maior de nossa história. Para uma população negligenciada ou desconhecida por grande parte do Brasil, receber a COP30 virou uma festa, quase um clima de Copa do Mundo, um golaço.
Mas não para todos.
A preparação para a conferência foi alvo de incontáveis polêmicas. Da construção de parques em bairros de elite à derrubada de florestas para a abertura de estradas, muitos foram os questionamentos da população local sobre o momento pré-COP30. Por isso, ver a concretização do evento é lição de casa para qualquer professor.
📍Inscreva-se já na nossa trilha de webinários Porvir na COP30
A COP é dividida em dois setores, a blue zone (zona azul, área do evento com acesso restrito a jornalistas credenciados, autoridades e convidados), green zone (zona verde, aberta ao público em geral). Na segunda-feira (10), dia da abertura, fui com um grupo de alunos da escola pública ao espaço a nós permitido e, desde o começo, o choque de culturas e percepções: num evento no qual o mascote é o brasileiríssimo Curupira, a língua que nos recebe na entrada do evento é o inglês: “WELCOME” – uma escola bilíngue colocaria à prova a eficiência de seus métodos na COP30.
Well, fomos mesmo assim. Os arredores do evento são extremamente vigiados, com a presença de todas as polícias de que se tem conhecimento no país. Os alunos olhavam com ansiedade para os muros imensos do Parque da Cidade, um espaço de lazer construído para a conferência, mas que vai ficar para a população. Em toda a lateral do parque, há uma ciclofaixa usada para o tráfego de patinetes elétricos. Enquanto caminhávamos, um casal de indígenas usando cocar e dois estrangeiros usando terno passaram por nós, em cruzamento. Todos ficaram alvoraçados, como se vissem dois mundos distantes que se encontravam amistosamente ali, uma repaginação do quadro a “Primeira Missa no Brasil”, do pintor catarinense Victor Meirelles (1832–1903), tão presente os livros didáticos, mas agora em suposta equidade. Bonito de ver.
Além do patinete, para chegar à green zone na COP30, é preciso andar sob o constante calor amazônico ou se embrenhar em um engarrafamento digno dos que os telejornais noticiam. Em um evento sobre clima e sustentabilidade, um professor de biologia, de imediato, questionaria: onde está o espaço para bicicletas? Não há. A mobilidade ativa precisa ser exercida somente a pé. Essa ausência é excludente tanto com a população local quanto com os participantes da conferência que desejassem se locomover com pedais. Na blue zone, há um pequeno bicicletário que, por ser destinado somente a convidados e participantes credenciados, não atende à demanda da população que está frequentando intensamente o evento.
A entrada conta com uma segurança digna de aeroporto: detector de metais, descarte de alguns itens, como desodorante em aerossol, fiscalização eletrônica de bolsas. Ao avançar, a cor verde predomina, seja na pintura das paredes, seja nas plantas da decoração presentes em todo o lugar. Essa ornamentação é sinalizadora de um lugar extremamente vigiado, controlado, que faria um professor de filosofia relembrar Michel Foucault (1926-1984). É impossível estar na COP30 e não pensar na preservação da biodiversidade, nosso comportamento é completamente moldado pelo lugar, como se fôssemos transportados para outra realidade.
Ao caminhar, encontramos estandes de diversas instituições públicas e privadas ligadas à economia verde e à agenda ESG (ambiental, social e de governança). Em todos eles, conversas abertas ao público, que participa avidamente das discussões – ouvindo, opinando, registrando.
Às vezes, encontramos lideranças políticas, como deputados e ministros, que se mostram abertos a conversar com quem passa. Meus alunos ficam curiosos, afinal, nunca tinham visto tantos políticos em um só lugar, e eu também não. Um professor de sociologia identificaria rapidamente o capital simbólico de estar em um evento de tamanha magnitude. Prova disso é a presença também de grupos do agronegócio predatório na COP30. Mesmo sendo protagonistas na crise climática, exercitam como ninguém o greenwashing (lavagem verde, em português, é uma estratégia de marketing comum e ilusória na qual empresas promovem seus produtos como ambientalmente responsáveis sem cumprir os critérios reais de sustentabilidade) e tentam convencer os passantes de que é possível ser sustentável e aniquilar a natureza ao mesmo tempo. Alô, colegas de língua portuguesa, o paradoxo chegou.
A COP tem delegações de vários países, mas a maioria dos participantes da área livre é do Brasil, com notoriedade para as diversas etnias indígenas. Eventos controlados impõem regras para compras, dentre elas, o uso de um cartão específico e a proibição de vendedores ambulantes, como ocorreu com a retirada à força de um homem do pavilhão. Essa regra, porém, é quebrada em relação aos povos indígenas. Espalhados em vários lugares da green zone, comercializam suas biojóias e adornam braços com tintura de jenipapo. Soa até idílico, “o povos intocáveis”, que o poder preserva, olha e admira. Lindo, não é?
Mas nem tanto. No segundo dia da COP30, desde cedo, indígenas chegavam em grandes quantidades. No ar, sentia-se que algo iria acontecer. Em “Pode o subalterno falar?”, da crítica literária e feminista indiana Gayatri Chakravorty, é analisado o sofisticado silenciamento de grupos minorizados, que atua, também, usando personagens como símbolos do que deve ser dito, mas não do que precisa ser dito. Pois bem, ao anoitecer, indígenas adentraram a blue zone, onde se fala sobre clima, muitas vezes com a presença de quem usa terno e gravata e a ausência de quem usa cocar. E isso em plena Amazônia potencializada pelo calor lancinante do espaço – dizem os jornalistas. Na escola, estudamos várias revoluções, muitas vezes sem imaginar como os grupos de resistência atuam – quer você concorde, quer não. Na COP30, recebemos uma aula dos indígenas de como isso pode acontecer. Como resultado, o “clima” de sustentabilidade festiva deu lugar a um policiamento ostensivo ainda maior. É a História acontecendo e se repetindo diante de nossos olhos.
Ontem, quinta-feira, 13, quarto dia da COP30, o evento foi centrado em discussões sobre a infância. Nesse quesito, uma tônica se repete: as infâncias são tratadas como algo para o futuro. Essa palavra é repetida à exaustão em todas as rodas de conversa. Em propagandas governamentais que pululam, crianças falam sobre o que vem pela frente. No olhar desta professora, as crianças já estão aqui, é preciso olhar para o presente, o que envolve a infância das pessoas com deficiência, que parecem inexistir nos debates sobre o clima. Como mãe atípica que sou, esse silêncio me chamou para dizer: é preciso falar.
O evento segue. Apesar de toda a xenofobia contra Belém, algo improvável se desenha por lideranças do mundo todo presentes na minha cidade: a construção de um caminho para a eliminação de combustíveis fósseis. Ver isso acontecer com a concordância da Alemanha e do Reino Unido é acreditar no verde presente na entrada da green zone, é voltar a esperançar, um verdadeiro gol de placa. Isso é muito mais importante do que reclamar do preço da coxinha.
O calor de Belém fez as pessoas sentirem na pele o que é a crise climática. Como professora na Amazônia, vejo meus alunos da rede pública tentarem escrever enquanto a caneta desliza de tanto suor. Não é somente ar condicionado que falta, é combate à crise climática, algo que precisa ser implantado via COP30, o maior gol de todos.
Estamos na primeira semana. Ainda há tempo de esperançar.
Marcela Castro
Licenciada em Letras pela UFPA (Universidade Federal do Pará), especialista em educação inclusiva e mestre em Estudos da Linguagem, atua como professora de língua portuguesa na Secretaria de Estado de Educação do Pará e na Casa da Redação, em Belém. Com 25 anos de experiência em sala de aula, soma sua trajetória no magistério à curadoria de eventos literários, como a Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes, além de coordenar o projeto de Educação Midiática do Amazônia Vox na Escola Estadual Antônio Lemos. Como mãe atípica, entende que o mundo possui muitas vozes que precisam ser ouvidas.





