Como a cultura amazônica enriquece um projeto de ciências no ensino médio
Estudantes do ensino médio de Codajás, no interior do Amazonas, relacionam saberes indígenas com a ciência orientada pela base curricular
por Elzilene Aquino de Araújo 25 de outubro de 2024
As comunidades indígenas na Amazônia possuem um vasto conhecimento tradicional sobre a flora, fauna e recursos naturais da região. No entanto, enfrentam desafios significativos devido à expansão da exploração de recursos naturais, como o desmatamento, a mineração e a exploração madeireira, que ameaçam a biodiversidade e seus modos de vida tradicionais.
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Essas pressões ambientais são frequentemente impulsionadas por interesses econômicos, que muitas vezes não levam em consideração as implicações a longo prazo para o meio ambiente ou para as comunidades indígenas que dependem desses recursos. Além disso, a rápida urbanização e a exposição crescente às influências culturais externas podem contribuir para apagar esse conhecimento ancestral e os traços da cultura indígena.
Esta foi a conclusão que os meus estudantes do 1º ano do ensino médio da Escola CETI (Centro de Educação em Tempo Integral) José de Araújo Rodrigues, localizada no município de Codajás (AM), chegaram ao analisar suas vivências rotineiras e a grade curricular, a partir de uma atividade teórica e investigativa com o tema “Cultura indígena na educação em ciências”.
Especialmente no ensino médio, muitas escolas públicas na região amazônica enfrentam desafios para incentivar a educação científica e promover a pesquisa, considerando as realidades das comunidades indígenas. Esses obstáculos incluem a falta de recursos pedagógicos, a escassez de laboratórios e problemas de infraestrutura, além de outras questões que afetam o ensino. Mesmo assim, realizamos o projeto “Estudo intercultural em uma perspectiva na educação em ciência/química: cultura indígena no contexto amazônico”.
Primeiros passos
Pensamos em uma proposta interdisciplinar, envolvendo conteúdos de biologia, geografia, português e história. Para isso, partimos de perguntas norteadoras: O que é interculturalidade? Qual a relação desse tema com os povos indígenas? Como podemos relacionar os assuntos com a ciência?
A interculturalidade é relacionada à interação, compreensão e o respeito entre as diferentes culturas. Focamos nesse tema para explorar a identidade e diversidade dos povos amazônicos, aproximando esses saberes da ciência ocidental presente na matriz curricular.
Alquimia dos doces
Reunimos alguns elementos culturais que podem ser explicados pelo conteúdo teórico da disciplina de química. Para essa etapa, montamos, então, a atividade “De onde vem o doce?”. Os alunos buscaram frutas, legumes, ervas e doces locais que servem de base para receitas tradicionais da região, como bolo de milho, paçoca, doce de banana. Aproveitamos a oportunidade para estudar as reações ou substâncias químicas presentes nos alimentos (proteínas, carboidratos, lipídios, entre outros).
Aqui na Amazônia, o pé de moleque é feito com massa da mandioca, açúcar, sal, manteiga, cravo e erva-doce. Para produzi-lo, é necessário deixar a massa de mandioca fermentar e descansar. Em seguida, a massa é aquecida para eliminar o cianeto, uma substância tóxica que é neutralizada durante o cozimento. Essa técnica foi desenvolvida pelos antepassados. Saba-se que essa mandioca é chamada de “mansa”. Já a mandioca “brava” precisa passar pelo cozimento industrial antes do consumo. As folhas ajudam os indígenas e os agricultores a diferenciar os dois tipos.
Pesquisamos também a história desses doces. A palavra paçoca vem do termo indígena “pasoka”, que significa “esmagar com as mãos”. Já “milho”, também de origem indígena, quer dizer “sustento da vida”. Antigamente, os indígenas faziam bolo de milho usando o tipiti, uma espécie de espremedor de palha trançada para escorrer e secar grãos e raízes. E já sabiam que o ingrediente é nutritivo, com minerais que ajudam a controlar a pressão arterial e que possui antioxidantes (substâncias que protegem o organismo de danos causados por radicais livres).
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Jogos sobre o território
Codajás é uma cidade com pouco mais de 29 mil habitantes, localizada a 240 quilômetros de Manaus, capital do estado. Seu nome vem de curucudaiá, da língua cudaiá, dos primeiros povos indígenas. Eles habitaram o município no século 18, ocupando as margens dos rios Amazonas e Madeira.
Para chegar até Manaus, há apenas duas maneiras: uma viagem de barco, de 11 horas e 35 minutos, ou seguir de balsa até Coari e pegar um avião, o que leva aproximadamente 9 horas. A distância e a falta de estrutura nos impede de sair da cidade, mas mesmo assim, decidimos conhecer pela internet marcos históricos do nosso estado. Pesquisamos a origem de lugares culturais que marcam nossa cultura, como Teatro Amazonas, MUSA (Museu da Amazônia), Mercado Adolpho Lisboa e Museu do Seringal, para saber como a realidade amazonense é retratada.
“E o espaço para a histórias e lendas, onde fica?”, perguntaram. Divididos em grupos, os estudantes criaram “Cubos de histórias”. Receberam papéis recortados para montar um cubo. Cada lado deveria ter uma versão ilustrada de algumas lendas indígenas escolhidas, como:
- “Lenda do Tajá”: À planta chamada tajá, de folhas triangulares, são atribuídos diversos poderes místicos. Se em uma casa ela cresce exuberante, significa que o lar tem bastante amor. Conta a história que, no povo Macuxi, um índigena se dedicou a cuidar de sua amada doente, carregando-a nas costas por onde andava, até a morte. Foram enterrados juntos, e no local surgiram folhas entrelaçadas da planta tamba-tajá, símbolo do amor eterno entre o casal.
- “Lenda da Mandioca”: Uma menina indígena chamada Mani, de pele branca e muito sábia, morreu precocemente. A mãe a enterrou perto da oca, e, no local, nasceu uma planta de raízes brancas e nutritivas, chamada de mandioca. O dito popular simboliza a vida que renasce da terra.
- “Lenda da Mãe Sumaúma”: A árvore Sumaúma, considerada a “mãe das árvores”, pode alcançar até 70 metros de altura. Ela simboliza a conexão entre o céu, os rios e a terra. Os povos indígenas acreditam que a Sumaúma protege os segredos da floresta. A lenda também diz que uma curandeira se tornou espírito e vive dentro da árvore.
Clique na foto para conferir a galeria de imagens:
Essa releitura dos personagens lendários inspirou os estudantes a produzirem um curta-metragem com as melhores ilustrações dos cubos. A animação foi feita no aplicativo Flipaclip, proporcionando aprendizado e diversão ao mesmo tempo.
Todas as atividades e os momentos de pesquisa culminaram no livreto “Contos históricos”, que está sendo escrito, estimulando ainda mais a compreensão sobre a formação cultural do nosso estado.
Resultados alcançados
As atividades lúdicas e interdisciplinares contribuíram para a formação de cidadãos conscientes, respeitosos à diversidade cultural e comprometidos com a preservação ambiental. Neste projeto, destaco os princípios das metodologias ativas, especialmente a aprendizagem baseada em projetos, ao longo de toda a sua execução. Estudamos a composição química dos alimentos, a memória geográfica e histórica do Amazonas, bem como a língua portuguesa e as artes na recriação dos contos.
Os resultados das análises dos materiais produzidos e do questionário aplicado ao final indicaram que os alunos desenvolveram uma apreciação mais profunda da diversidade cultural da região amazônica. Ao valorizar nossa cultura indígena, a turma compreendeu a importância do conhecimento tradicional e sua conexão com a ciência.
Elzilene Aquino de Araújo
É graduada em Licenciatura em Ciências (Biologia e Química) pela UFAM (Universidade Federal do Amazonas). Professora efetiva da SEDUC-AM (Secretaria de Educação e Desporto do Amazonas) desde 2018, atuou na Escola Estadual Indígena Luiz Gonzaga de Souza Filho (2020) e atualmente trabalha no CETI José de Araújo Rodrigues. Tem experiência em Química, com ênfase no uso de materiais alternativos e metodologias lúdicas, além de pesquisas sobre frutos amazônicos, extratos vegetais e antioxidantes. É mestre pelo Programa de Ensino de Ciências e Matemática da UFNT (Universidade Federal do Norte do Tocantins).