'Fotografia é uma questão de ponto de vista' - PORVIR

Inovações em Educação

‘Fotografia é uma questão de ponto de vista’

Deficientes visuais aprendem a fotografar em curso gratuito do Centro Universitário Senac

por Patrícia Gomes ilustração relógio 8 de maio de 2012

Como quem quisesse jogar papo fora, João Batista Maia, 38, chega perto e puxa assunto. Fala da mudança de temperatura, dos sobrinhos pequenos. Quando a pessoa já está entregue à conversa fácil e dá o primeiro sorriso, João Batista saca sua máquina semiprofissional e registra o momento. Pronto. Mais uma imagem para a sua coleção que começou a ser feita depois que ele fez um curso gratuito de fotografia voltado para deficientes visuais no Centro Universitário Senac.

João Batista ficou cego há quase dez anos devido a uma uveíte, uma espécie de inflamação dos olhos, e hoje, com o 0,5% de visão que lhe resta, distingue apenas vultos com algum resquício de percepção de cores. Quem desmistificou a fotografia para ele foi outro João, o Kulcsár, idealizador do curso do Senac que largou uma carreira bem sucedida em engenharia pelo prazer de fotografar e ensinar. “Fotografia é só uma questão de ponto de vista”, repete o professor para os alunos com deficiência que chegam céticos à primeira aula.

Técnica

Kulcsár começa o curso com explicações técnicas: como segurar a máquina, onde apoiá-la, os tipos de enquadramento, o vocabulário do mundo da fotografia, a distância que devem estar do objeto a ser retratado para o enquadramento desejado.

cegos aprendem a fotografarcrédito Josias Neto

Os alunos aprendem, por exemplo, que para fazer um retrato, eles devem descobrir a altura da pessoa  –perguntando ou tocando nela–, dar o número exato de passos para a distância necessária ao enquadramento e só então fazer o clique. Para saber se o resultado condiz com o imaginado, não tem jeito: só pedindo para alguém descrever a imagem –papel normalmente assumido por quem acaba de ser fotografado ou por alunos voluntários do bacharelado de fotografia do Senac.

Além de aspectos técnicos, dinâmicas desenvolvidas em sala ajudam a aguçar outros sentidos, principais aliados na hora de “sentir” o momento da foto. Um dos exercícios feitos em sala propõe que, no período de um minuto, as pessoas fechem os olhos e registrem todos os sons que perceberam. O resultado surpreende principalmente os que enxergam e participam da atividade. “As pessoas acham que a foto depende só da visão. Não. Depende também do som, do cheiro”, diz Kulcsár.

Outro ponto fundamental na formação de um bom fotógrafo é cultura geral. Por isso, no curso os alunos são apresentados às obras de fotógrafos como Sebastião Salgado e Cartier Bresson. Para entenderem a genialidade das imagens, o professor recobre a fotografia clássica com material de diferentes relevos –como grãos de areia, de arroz e palitos de sorvete– facilitando a noção, pelo tato, dos contornos e dos planos retratados na imagem. O grupo que o professor orienta acaba de lançar o site Alfabetização Visual  em que é possível acompanhar as atividades das aulas.

Kulcsár diz que sua proposta inova por associar um projeto para deficientes visuais e fotografia, o que por si só já é algo diferente, com cunho social, longa duração e o fato de ser realizado na universidade.

Light painting

Por estarem habituados ao escuro, os deficientes visuais se saem melhor do que quem enxerga em algumas técnicas de fotografia. Uma delas, desenvolvida nas aulas, é o light painting.

cegos usam técnica de light paintingcrédito Marco Otho

A pedido da reportagem, Marco fez um desenho semelhante ao redor de João Batista. 

Numa sala completamente escura, uma máquina é voltada para o modelo que será fotografado. O timer da máquina é disparado para captar, durante um período que costuma ser de 30 segundos, a luz do ambiente. Nesse meio tempo, o fotógrafo ilumina o corpo do modelo com a ajuda de uma lanterna, levando luz aos pontos que ele quer destacar ou até mesmo criando desenhos ao redor do centro da foto com os feixes de luz.

Marco Otho, um dos primeiros alunos do curso, se especializou nesse tipo de imagem. Treinou com o filho de 8 anos incontáveis vezes, iluminando-lhe o corpo e desenhando com a luz auréola e asas em torno dele. “Meu filho é meu anjo”, diz Marco.

Faz diferença

Apesar das habilidades desenvolvidas ao longo do curso, nenhum dos alunos é fotógrafo profissional. Eles dão oficinas e workshops para quem se interessa pelo projeto, mas não vivem da foto. E então que diferença a fotografia faz na vida das pessoas que se envolvem no projeto?

“As aulas desenvolvem confiança, autoestima, independência. É uma oportunidade de eles perceberem que também podem fazer”, diz João, o professor. “É uma forma de ter acesso à cultura e de quebrar o estigma de que a fotografia é só para quem tem a visão perfeita. Eu não tenho visão, mas posso fotografar”, diz João, o aluno.


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