Furacão que revolucionou o ensino público
Nova Orleans pós-Katrina aposta na gestão compartilhada de escolas e vê melhoria no desempenho dos alunos
por Patrícia Gomes 6 de junho de 2012
Quando o furacão Katrina passou por Nova Orleans, em 2005, não restou pedra sob pedra. O lago Pontchartrain invadiu a cidade, cerca de 200 mil casas ficaram submersas e 100 das 128 escolas foram parcial ou totalmente destruídas. Na época, o sistema de ensino sofria grave crise, com casos de corrupção, o distrito tinha as piores notas do estado de Loiusiana e 62% dos alunos da rede pública estudavam em escolas classificadas como “falidas”. Quase sete anos depois, no entanto, o panorama é outro: o esforço de reconstrução incluiu uma reforma educacional que transformou a educação local em referência nos Estados Unidos e o percentual de alunos em escolas falidas caiu para 13%. Essa guinada é atribuída às escolas públicas de gestão compartilhada, conhecidas por charter schools.
Muito comuns nos EUA, as charter schools são um modelo no qual uma escola pública funciona com verba do governo, mas é gerida por uma entidade privada por meio de um contrato (charter). Para continuarem administrando os espaços, as instituições se comprometem com metas, mas são autônomas para determinar currículos e salários, contratar professores, além de ter liberdade para escolher de quem comprar material e como contratar serviços, como alimentação e transporte. Para os alunos, assim como as escolas públicas tradicionais, as charter não têm mensalidade.
Em Nova Orleans, até 2005, menos de 5% dos alunos de escolas públicas estavam matriculados em escolas charter. Em 2003, mesmo antes do Katrina e diante de um sistema falido de ensino, o estado de Louisiana criou o RSD (Recovery School District, ou Recuperação das Escolas Locais), um programa que permitia que organizações privadas assumissem a gestão de escolas públicas em circunstâncias críticas. “Antes do Katrina, o RSD cuidou de cinco escolas. Mas, depois do furacão, Nova Orleans foi declarado um ‘distrito em crise’ e o RSD assumiu 107 das 128 escolas locais. Essa retomada criou condições para a reforma que veio a seguir”, afirma Michael Stone, diretor de relações internacionais da ONG New School for New Orleans, ou Novas Escolas para Nova Orleans, em livre tradução.
Com a devastação da maior parte das escolas, alunos e educadores buscaram abrigo em outras regiões, o que esvaziou o sistema escolar. O governo encerrou os contratos com todos os professores e fechou as portas de dezenas de instituições de ensino. O movimento gradual de retomada se deu quando as famílias começaram a voltar para as suas casas e as escolas foram sendo reabertas, já com sua gestão assumida por entidades privadas.
A ONG Novas Escolas para Nova Orleans nasceu logo após a passagem do Katrina. Sob o lema “escolas públicas excelentes para todas as crianças de Nova Orleans”, a entidade foi uma das que atuou na reforma educacional ao assumir a gestão de escolas públicas. “Nós acreditamos que os governos devem delegar a operação das escolas a organizações sem fins lucrativos e fazer com que elas prestem contas. As boas escolas devem se expandir da mesma forma que as ruins devem fechar. Os pais precisam ter a opção de onde matricular seus filhos e os professores devem poder escolher onde querem trabalhar”, afirma a organização em recente relatório de balanço dos resultados do modelo charter.
Baseada na legislação que dá autonomia às charter para gerir carreiras, salários e matrículas, a organização diz ter adotado três estratégias ao assumir as escolas: atrair e preparar profissionais talentosos para darem aulas, apoiar a matrícula aberta e sem pré-requisitos (qualquer aluno pode se matricular em qualquer escola, sem exames seletivos) e defender a existência de escolas sustentáveis financeiramente, que prestam contas e que oferecem ensino de alta qualidade.
“Bons professors foram o instrument do nosso sucesso e hoje Nova Orleans é o melhor lugar dos EUA para educadores hoje. Na maior parte das cidades, os professores têm um patrão: o governo; se ele quer ensinar, o governo vai dizer onde, quem vai ser o seu diretor e quem serão seus colegas. Em Nova Orleans, os educadores escolhem o lugar para trabalhar que mais bem se adequa aos seus valores, crenças e habilidades. Os melhores professores recebem as melhores oportunidades, propostas e salários – o que os deixa sempre motivados”, afirma Stone.
Hoje, mais de 80% dos alunos de Nova Orleans estão em escolas públicas de gestão compartilhada e a previsão é que até 2014 esse número chegue a 93%. O indicador educacional da cidade, composto pelos resultados dos alunos, taxa de frequência e evasão, melhorou 49% desde o furacão. A cidade diminuiu de 23% para 10% a diferença da média obtida por seus alunos em comparação com os do estado e a reforma educacional protagonizada pelas escola charter é usada como argumento em favor do modelo.
Apesar dos resultados, o apoio ao modelo charter não é unânime, nem dentro nem fora de Nova Orleans. Pais de crianças com necessidades especiais que moram na cidade entraram na Justiça contra o Departamento de Estado de Louisiana alegando que seus filhos estão sendo postos à margem do sistema – suas matrículas não são aceitas ou, quando são, eles não recebem o tratamento adequado, previsto por lei.
Além disso, o modelo charter é bastante polêmico por envolver concessão de serviços públicos. Em 2010, o documentário Waiting for Superman, que ainda não chegou ao Brasil, lançou fogo à discussão ao mostrar as falhas do sistema educacional norte-americano e a disputa pelas vagas da escola charter, normalmente melhores que as públicas tradicionais.
Assista aqui ao trailer.
Embora não sejam comuns no Brasil, as charter são permitidas por lei. No país, os contratos podem ocorrer por meio de parcerias público-privadas, também com estabelecimento de metas e mais autonomia às escolas. O modelo, no entanto, é mais comum em outras áreas, como na saúde – as organizações sociais que gerem hospitais em São Paulo são um exemplo.
A solução brasileira
No ano passado, as fortes chuvas ocorridas em janeiro provocaram na região serrana do Rio a pior tragédia natural que o país já viu. Foram mais de 900 mortes confirmadas, além de destruições em três cidades, inclusive de escolas. O esforço de reconstrução por aqui veio da participação da população.
Em Nova Friburgo, cidade mais afetada pela enchente, 25 de suas escolas estaduais foram severamente prejudicadas pelas águas. As restantes serviram, nas semanas seguintes ao ocorrido, de abrigo para pessoas que perderam as casas e a quadra de uma delas recebia os corpos das vítimas. “Foi um trauma horroroso para as crianças. Até hoje é”, diz Carla Bertania, diretora pedagógica da região serrana.
Bertania conta que, nas semanas que se seguiram ao desastre, a Secretaria Estadual de Educação do Rio pode contar com a comunidade – pais, alunos, vizinhos – em mutirões de limpeza e de distribuição de víveres. As primeiras atividades pedagógicas, assim que as aulas foram retomadas, foram no sentido estimular as crianças a falar sobre o assunto e a lidar com as perdas.
Por ser um fenômeno muito recente, diz a professora, os resultados da reconstrução ainda puderam ser verificados, mas ela acredita que o engajamento da comunidade em torno de um objetivo comum fez toda a diferença. Tanto é que, preliminarmente, Bertania comemora que, em 2011, as notas dos alunos de Nova Friburgo estiveram entre as melhores do estado no Saerj, prova que avalia os estudantes de escolas públicas do Rio. “Apesar do que eles viveram, eles estão conseguindo dar a volta por cima.”
Esse texto foi atualizado em 7 de junho, às 11h46.