José Valente, referência do construcionismo e da tecnologia educacional no Brasil
Ele transformou a forma de pensar o uso de computadores na escola ao defender o aprender fazendo. Referência do construcionismo, marcou gerações de professores ao articular tecnologia, pedagogia e pensamento crítico
por Redação
29 de dezembro de 2025
José Armando Valente, professor e pesquisador brasileiro, desafiou a ideia de que computadores serviam apenas para ensinar. Ao contrário, mostrou que as crianças deveriam programar computadores para compreender o próprio pensamento. Ele morreu neste domingo (28), aos 77 anos.
José Valente criticava o sistema educacional por funcionar de forma rígida e previsível, onde o saber é fragmentado em “gavetas disciplinares”, abertas e fechadas ao ritmo burocrático de um sinal sonoro. Para José Valente, a revolução não viria por decreto, mas aos poucos. Os dispositivos que os estudantes carregam no bolso levaram o mundo para dentro da escola, ampliaram o acesso à informação e aos interesses reais dos alunos e obrigaram a instituição a encarar um presente que tentava ignorar.
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Programar para pensar
A origem dessa ruptura intelectual remonta a 1975, em um encontro digno de roteiro de cinema, ocorrido nos corredores da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). José Valente, então um jovem pesquisador fluente em inglês, foi designado para ser o cicerone de Seymour Papert e Marvin Minsky, pesquisadores do MIT e pioneiros da inteligência artificial. Em um webinário para a Rede de Aprendizagem Criativa, o professor lembrou da ocasião como uma verdadeira imersão nos conceitos de aprendizagem, programação e experiências práticas que depois virariam base do construcionismo.
Hospedado com o grupo em uma fazenda sem eletricidade, Valente apresentava com entusiasmo, durante cafés às cinco da manhã, um projeto que havia desenvolvido para ensinar matemática de forma linear e automatizada. Papert, ao observar o projeto, respondeu com franqueza: “Não é nada disso”.
A virada no MIT
Aquele “não” mudou a vida de José Valente e ajudou a abrir caminho para o construcionismo no Brasil. Na Unicamp, ele vivia uma frustração com a ciência da computação após desenvolver, no mestrado, um sistema para linguistas que nunca chegou a ser usado, o que o fez questionar o sentido daquele trabalho. Em 1976, ele partiu para o MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), onde permaneceu por oito anos e concluiu o mestrado e o doutorado. Lá, contribuiu para o desenvolvimento da linguagem de programação Logo, famosa pela “tartaruga” robótica que desenhava formas geométricas no chão.
José Valente a descrevia como um dispositivo pesado, vagamente semelhante a um aspirador de pó circular, equipado com uma buzina e uma caneta. Mas a genialidade não estava na aparência, e sim na experiência. Ao comandar o robô pelo chão, a criança não apenas programava: ela projetava o próprio corpo na máquina. Para desenhar um quadrado, por exemplo, era necessário que o aluno se imaginasse caminhando, virando e avançando, como se ele mesmo estivesse dentro da tartaruga.
Nos Estados Unidos, ele também conheceu um projeto que utilizava tecnologia para interpretar os movimentos de pessoas com paralisia cerebral, traduzindo-os em ações no computador. Isso revelou, para ele, um uso concreto, relevante e socialmente transformador da tecnologia. Foi também nesse período que conheceu sua companheira de vida e de pesquisa, Ann Berger.
O erro como motor da aprendizagem
José Armando Valente foi um dos principais articuladores entre o construcionismo de Seymour Papert e a pedagogia da autonomia de Paulo Freire. De um lado, compreendia a programação de computadores como um ato de alfabetização e conscientização, entendendo o computador como um verdadeiro “espelho da mente”. De outro, apoiava-se em Freire para afirmar que o uso de tecnologias na educação não pode ser mecânico nem meramente instrumental. Para ele, cabe ao educador refletir criticamente sobre sua prática, compreender o sentido pedagógico das ferramentas digitais e questionar para que, para quem e em que contexto elas são utilizadas. Nesse entendimento, a tecnologia não é neutra e tampouco um fim em si mesma, mas um meio a serviço da formação crítica e da autonomia dos sujeitos.
Ao retornar ao Brasil nos anos 1980, José Valente foi um dos fundadores do NIED (Núcleo de Informática Aplicada à Educação) na Unicamp. Em um país no qual computadores ainda eram artigos de luxo, ele liderou a formação de milhares de professores, defendendo o que chamava de “Espiral de Aprendizagem”. Nela, o erro (o “bug”) deixava de ser uma falha e tornava-se o motor do conhecimento. Ao descrever um comando, executar, refletir sobre o erro e depurar o código, o aluno estava, na verdade, depurando o próprio pensamento.
Também foi o responsável pela tradução do livro “Logo: computadores e educação”, de autoria de Papert, lançado em 1985 e que se tornou referência do construcionismo no Brasil, embora tenha se esgotado rapidamente.
Um legado para além da tecnologia
No final de outubro, José Valente esteve presente na 5ª Conferência Brasileira de Aprendizagem Criativa, realizada em Brasília (DF). Na ocasião, debateu a história do construcionismo e o relançamento da obra, agora intitulada “Mindstorms: crianças, computadores e poderosas ideias”. Ao dividir o microfone com Ann, José Valente afirmou que a tecnologia, em especial a inteligência artificial generativa, amplia as possibilidades do construcionismo ao criar um diálogo reflexivo com a máquina, no qual o feedback (retorno avaliativo) constante contribui para ampliar repertórios e refinar o pensamento, dispensando a necessidade de programar.
“O maior desafio não é tecnológico, mas estrutural. Embora as pessoas estejam familiarizadas com tecnologias no dia a dia, a escola ainda funciona com uma lógica antiga, baseada em aulas por hora, certificações por tempo e modelos rígidos de organização”, disse. Para José Valente, essa estrutura dificulta mudanças profundas e exigiria uma transformação radical, semelhante à que ocorreu em outros setores da sociedade, como o sistema bancário. Ainda que reconheça que o processo de mudança pode ser longo, alertou que “manter o modelo tradicional, centrado em cópia e repetição, tende a se tornar insustentável”.
Essa visão aparece em diferentes publicações do pesquisador. Em diferentes publicações, como “Tecnologia e Educação: passado, presente e o que está por vir”, coletânea de artigos que organizou, José Valente sustentava que a inovação não é apenas tecnológica, mas sobretudo humana: a escola precisa deixar de ser um “esquema de expulsão” para se tornar um espaço de convivência e experimentação.
A Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa divulgou nota de pesar:
“É com profundo pesar que a Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa se despede do Prof. José Armando Valente.
Pesquisador do NIED/UNICAMP, professor, formador de educadores e pioneiro da informática na educação no Brasil, foi referência na construção de pontes entre teoria e prática, tecnologia e educação, sempre em defesa de uma aprendizagem mais humana, significativa e criativa.
Inspirado pelo construcionismo de Seymour Papert, Valente dedicou sua trajetória a promover o aprender fazendo, o protagonismo de quem aprende e o uso da tecnologia como meio para criar, pensar e transformar realidades.
A RBAC agradece e honra a vida do Prof. José Armando Valente e o legado que ele construiu, que permanece vivo nos projetos, nas práticas e na comunidade que ajudou a fortalecer.
À nossa querida Ann, familiares, colegas, alunos e amigos, nossa solidariedade e carinho.
Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa (RBAC)”
Memória
Reveja a participação do professor José Valente em diferentes webinários:
- RBAC – Construcionismo e Aprendizagem Criativa no Brasil
- Café Filosófico CPFL – Educação e Tecnologia: Ontem, Hoje e Amanhã – José Valente
- TEDxUnicamp 2012 – Mobilidade e Tecnologia: José Armando Valente





