Pandemia de coronavírus deve piorar desigualdade racial no ensino médio
Efeitos da doença na saúde, nas questões sociais e econômicas irão afetar mais os estudantes negros, segundo especialistas. Risco de evasão escolar e de lacunas na aprendizagem crescem neste contexto
por Fernanda Nogueira 19 de maio de 2020
A pandemia do novo coronavírus deve agravar um quadro já preocupante no ensino médio no Brasil: a desigualdade racial.
Dados do Ministério da Saúde mostram que cresce o percentual de pretos e pardos entre internados e mortos por COVID-19. Além disso, um estudo na cidade de São Paulo concluiu que pretos têm 62% mais chance de morrer pela doença do que brancos. Ao mesmo tempo, a população negra tem, historicamente, mais dificuldades para permanecer na escola e concluir a educação básica, como mostram dados analisados pelo Observatório da Educação do Instituto Unibanco.
A plataforma com 14 mil documentos, entre análises e curadoria de artigos, teses, dados estatísticos e eventos, além de produção audiovisual sobre ensino médio e gestão em educação pública, será fonte principal, a partir de hoje, de uma série de reportagens sobre o ensino médio no Brasil, realizada pelo Porvir em parceria com o Instituto Unibanco.
Uma análise integrada sobre desigualdade racial disponível na plataforma identifica que, em 2018, 27% dos negros de 15 a 17 anos (idade adequada para o ensino médio) estavam fora da escola contra 19% dos brancos na mesma faixa etária. Em escolas com nível socioeconômico baixo, o desempenho de alunos negros no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) também é pior (2015).
CEDOC – Acervo de conteúdos sobre gestão em educação e ensino médio – Marcelo Paixão fala da desigualdade racial
“A escola por um lado tem uma enorme potencialidade para a formação de um cidadão participativo crítico consciente profissionalmente capaz de realizar atividades profissionais e, ao mesmo tempo, está dentro das estruturas sociais vigentes e pode atuar como mecanismo de perpetuação das desigualdades”, Marcelo Paixão, professor da Universidade do Texas (EUA)
A população negra representava 67% do público total atendido pelo SUS (Sistema Único de Saúde), segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) incluídos na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra de 2017 do Ministério da Saúde. Pretos ou pardos estavam ainda 73,5% mais expostos a viver em um domicílio com condições precárias do que brancos, e sofrem mais com diabetes, hipertensão e asma, doenças que pioram o quadro da COVID-19.
Rita Helena Borret, médica de Família e Comunidade, coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade) e membro do coletivo NegreX, explica que a pandemia pode afetar mais os jovens negros por vários motivos.
O primeiro deles é o fato de estarem mais vulneráveis à contaminação. “Esse grupo representa maioria desproporcional entre as pessoas sem acesso a saneamento básico e vivendo em condições de adensamento urbano em favelas e periferias. A população negra também representa a maioria entre desempregados e entre empregados informais, o que lhes confere maior instabilidade financeira nesse momento da quarentena e os expõe à necessidade de sair para trabalhar, visto que as entidades governamentais não assumem o papel de garantir fonte de subsistência para os brasileiros durante a pandemia”, explica Rita.
Aliado à dificuldade de isolamento social, há o racismo estrutural, que atinge, principalmente os jovens negros. “A utilização de máscaras caseiras coloca esses jovens na situação de serem abordados com maior frequência pelas forças de segurança por sua imagem de máscara estar socialmente associada a ‘pessoas perigosas em potencial’”, diz a médica.
A doutora em Saúde Pública Edna Maria de Araújo, que é professora de pós-graduação em Saúde Coletiva, coordenadora do NUDES (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdades Sociais em Saúde) da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana) e integrante da diretoria da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), concorda com Rita.
“Eles estão mais expostos, seja por atuarem em ocupações essenciais como entregadores de alimentos, medicamentos, por serem caixas de supermercados, comerciários, por se exporem na ocupação informal, por representarem uma boa parte da população privada de liberdade, por fazerem parte da população em situação de rua, ainda por falta de informação ou até mesmo por não obedecerem às orientações sanitárias de proteção contra a COVID-19 por acharem que não serão atingidos”, explica Edna.
Mais vulnerável à contaminação, a população negra também é a que apresenta maior dificuldade de acesso aos cuidados em saúde necessários para lidar com a COVID-19, segundo Rita. “A concentração de unidades de saúde de urgência e emergência, de leitos hospitalares, leitos de cuidados intensivos e respiradores é desigual entre os setores público e privado, o que representa uma iniquidade em saúde”, afirma.
Risco de evasão
Na área da educação, a evasão, que já é maior entre negros no ensino médio, deve aumentar, segundo Alexsandro Santos, doutor em Educação pela USP (Universidade de São Paulo), pesquisador do Núcleo de Estudos da Burocracia da FGV (Fundação Getulio Vargas) e diretor-presidente da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo. “O ensino médio, a gente precisa compreender, que, infelizmente, para uma parcela grande da nossa população preta e pobre, ainda é um privilégio, não é um direito”, diz.
As mesmas vulnerabilidades que fazem com que negros sejam as principais vítimas do COVID-19 são lembradas por Alexsandro como dificuldades para estudar em casa durante o período de isolamento social. “Vivem em moradias que, provavelmente, não permitirão que esses jovens negros tenham um canto sossegado para estudar, que possam organizar seus materiais numa mesa para fazer suas tarefas ou que tenham acesso à internet, pacote de dados, para utilizar as plataformas de educação a distância que o governo dispõe.”
Para Suelaine Carneiro, socióloga, mestre em Educação e integrante do Geledés Instituto da Mulher Negra, a pandemia dificulta o acesso à educação. “O que está em ação são algumas propostas de educação a distância, educação remota, e uma variedade de denominações que, no fundo, representam uma educação mediada pela tecnologia ou programas que vão ser disponibilizados na televisão ou nos meios digitais, via programas na internet. É um espaço ao qual a população negra em geral tem menor acesso”, afirma Suelaine.
A socióloga e educadora Ednéia Gonçalves, que coordena a ONG Ação Educativa, também vê prejuízos. “A oferta de EaD da forma como se apresenta desconsidera a dificuldade de acesso dos estudantes à internet e o investimento quase inexistente na formação dos professores da escola pública para o uso qualificado de tecnologias no cotidiano escolar”, diz.
Suelaine fala sobre a importância da mediação de um adulto. “Você tem um grande número de estudantes negros que, se o pai ou mãe não estiver desempregado, tem que sair durante a pandemia para fazer algum tipo de atividade para ter renda, por outro lado, você também tem um grande número de familiares que trabalham na linha de frente dos serviços essenciais. São situações que inviabilizam o processo de aprendizagem e podem contribuir para a evasão, para o desestímulo e para as dificuldades, todas, desse processo educativo”, explica.
Equidade no retorno
Sobre o retorno às aulas, quando for possível, Alexsandro considera que é preciso preparar professores e gestores para que compreendam o peso da desigualdade racial no cenário da pandemia e para que possam construir ações para este público específico. “O Brasil tem uma tradição pedagógica de tratar todos os estudantes como se fossem iguais. A gente faz isso porque acredita que, fazendo assim, estaria evitando discriminações, mas eu não posso tratar como se fossem iguais grupos sociais que são muito desiguais”, afirma.
Banco de Soluções – EMEF Oziel Alves Pereira – Diretor descreve prática adotada para valorizar a diversidade e solucionar casos de preconceito racial
– Coleção Gestão Escolar e Relações Étnico-Raciais
Para Daniel Teixeira, diretor do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), uma das principais ações necessárias é a implementação da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) (LDB), alterada pela lei 10.639, de 2013, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas. “Isso para que, finalmente, a gente tenha o conteúdo referente à contribuição civilizatória no Brasil feita pela população negra ensinado, e que esse conteúdo possa alterar o currículo nas escolas, inclusive esta é uma dimensão trazida pela UNICEF em 2019. Uma das medidas fundamentais para a mudança de cenário é mudar o currículo, expandir a relação das atividades da escola com a comunidade.” O CEERT lançou o Edital Equidade Racial na Educação Básica, uma iniciativa do Itaú Social em parceria com o Instituto Unibanco, a Fundação Tide Setubal e a Unicef, com inscrições até 13 de junho.
A escola precisa dialogar com a cultura dos alunos negros e com suas famílias, de acordo com Daniel. “A evasão escolar tem como uma das principais raízes essa dimensão de que o alunado não vê a escola como um espaço interessante, em que ele se interesse em ficar, justamente por não dialogar com sua cultura. Ele que, sendo negro, tem pressões maiores do ponto de vista socioeconômico para trabalhar.”
É preciso ainda pensar nas expectativas dos jovens, de acordo com Alexsandro. “Num cenário em que o futuro aponta para um horizonte de restrição econômica, de desemprego, de morte, de desesperança, a possibilidade dos jovens mais pobres e dos jovens negros deixarem de acreditar na educação como um caminho para sua mobilidade social, para sua realização como sujeitos, é muito maior. A gente pode ter jovens desacreditando de que a escola é um espaço para sonhar e desenhar projetos de vida possíveis. Eu colocaria esse impacto no campo socioafetivo, no campo moral. Isso será muito maior entre os jovens negros.”
No mesmo contexto, Ednéia critica o Ministério da Educação. “A insistência do MEC na realização do Enem neste ano, por exemplo, atinge diretamente a juventude da periferia e, sobretudo, a juventude negra, que supera obstáculos imensos para acessar e concluir o ensino médio e elege o ambiente escolar como espaço privilegiado de articulação de conhecimentos, promoção de aprendizagens e projetos de vida.”
Ednéia enumera medidas para evitar a piora da desigualdade racial no ensino médio pós-pandemia, começando pela aplicação da lei 10.639 de 2013, como defende Daniel, e também: “a superação do silenciamento sobre ocorrências de racismo nas escolas, que persiste traumatizando adolescentes e jovens; o fortalecimento da gestão democrática e formação docentes e de gestoras e gestores de todas as instâncias do sistema educacional sobre questões raciais (história, estatísticas, relações raciais e legislação) e ampliação das iniciativas de combate à violação dos direitos da população negra nas escolas e de apoio a profissionais da educação para atuarem no combate ao racismo, como a desnaturalização do bullying e das brincadeiras de cunho racista”.
A Ação Educativa, segundo Ednéia, tem uma metodologia participativa chamada “Indicadores de Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola”, que funciona como instrumento de apoio a processos de autoavaliação participativa escolar para o fortalecimento da gestão democrática.
Gestão Escolar para Igualdade Racial – Sueli Carneiro e Macaé Evaristo discutem soluções para a desigualdade educacional entre jovens negros e brancos
No Ceará, com o fechamento das escolas devido à pandemia, as aulas remotas contam como dias letivos. O Estado era o segundo do país com maior número de infectados pela pandemia até a última quinta-feira (14/5), com 18.587 casos confirmados e 1.280 mortes. Para educar os 423 mil alunos da rede a distância, a Secretaria explica, em nota, que “fez parcerias para que professores e estudantes utilizem a tecnologia, mas tomando como referência principal o livro didático e criou um Guia de Estudos Domiciliares, incentiva a formação docente e a promoção da segurança alimentar dos alunos”.
Segundo o Censo Escolar do INEP de 2018, 84% dos alunos matriculados no ensino médio no Estado eram negros. A taxa de aprovação nesta etapa escolar era de 89,6% dos estudantes negros contra 92,4% dos alunos brancos. Para evitar uma possível piora nas desigualdades no ensino médio devido à pandemia, a Secretaria explica que adotou outras estratégias além de plataformas e ferramentas digitais, como a entrega de kits de atividades impressas em casa ou aos pais na hora da retirada de cartões de alimentação. Além disso, incentiva e compartilha experiências de educadores da rede pública estadual e fornece apoio técnico.
Aprofundamentos:
– Roda de conversa: Juventude, tecnologia e equidade na escola
– Tecnologia como direito: Tecnologia e o desafio da educação escolar
– Implementação e monitoramento: Gestão Pública de Tecnologias Educacionais
A Secretaria tem uma Coordenadoria da Diversidade e Inclusão Educacional, com uma área responsável pelo desenvolvimento de ações para implementação e manutenção da educação das relações étnico-raciais na educação. “Nesse sentido, tem desenvolvido ações formativas presenciais e semipresenciais para professoras e professores da rede estadual e tem participado de órgãos colegiados que discutem a igualdade racial como o Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial. A maioria dos centros de multimeios das escolas são equipados com acervo bibliográfico que tratam da história e da cultura africana e afro-brasileira.”
Um programa de bolsas para egressos da rede que entram no ensino superior por meio do Enem garante cotas de 20% para negros, indígenas e quilombolas. Além disso, mantém dados sobre estudantes quilombolas e indígenas. “Muitos projetos desenvolvidos por escolas e regionais têm focado na valorização da identidade negra estudantil e na superação do racismo, de modo a garantir que o estudante consiga cada vez mais se ver valorizado nos projetos pedagógicos das escolas.”
A Secretaria afirma ainda que mantém diálogo permanente com os movimentos sociais organizados, como os movimentos indígenas, quilombolas, ciganos, de terreiro e com o movimento negro, “seja por meio da participação em instituições, seja pelo diálogo direto com os movimentos, quando solicitado e dando encaminhamento às suas demandas”.