Para além do Dia da Consciência Negra: qual projeto de sociedade você quer? - PORVIR
Foto: RyanJ Lane / iStock

Inovações em Educação

Para além do Dia da Consciência Negra: qual projeto de sociedade você quer?

Em entrevista ao Porvir, a professora Petronilha Beatriz Gonçalves sugere que professores e estudantes devem sempre se perguntar qual sociedade gostariam de construir a partir da escola

por Ruam Oliveira ilustração relógio 18 de novembro de 2022

O trabalho e os estudos servem a um propósito. E tal objetivo deve ser claro, tanto para quem está nas salas de aula como para professores e professoras. Identificá-lo, portanto, é tarefa individual. Esta é uma provocação feita por Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, professora emérita da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), interior de São Paulo).

A primeira pergunta que cada estudante deve fazer, segundo Petronilha, é: “Para qual projeto de sociedade eu me educo?”. Isto significa compreender se o tipo de sociedade buscado é inclusivo e benéfico às diversidades, ou se apoia um modelo excludente – ou o que ela chama de relações estabelecidas no século 16 e que ainda perduram. 

Em conversa com o Porvir, Petronilha, doutora honoris causa pela UFABC (Universidade Federal do ABC), comentou como o combate ao racismo deve aparecer na escola e qual pode ser a postura da comunidade escolar diante do preconceito racial. Ela, que foi relatora das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, menciona que existem muitos documentos e leis capazes de trazer a questão racial para o debate na escola, cabendo às gestões, professores e estudantes trabalhar ativamente com esse material. 

Confira abaixo os principais pontos da conversa:


Porvir – A temática racial tem ganhado força nos debates ultimamente. De que forma você acredita que isto toma corpo na sala de aula?

A professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

Petronilha Beatriz Gonçalves É importante a posição dos professores. E quando eu digo a posição dos professores, refiro-me ao conteúdo que está sendo ensinado. A forma de me relacionar com os meus alunos mostra qual projeto de sociedade? Porque a relação ensino-aprendizagem transmite – queira-se ou não – um projeto de sociedade. Se houver professores que entendam que a educação das relações étnico-raciais não é mais importante do que as relações estabelecidas lá no século 16 (e que infelizmente ainda perduram em muitos casos), a gente vai ter dificuldade em avançar.

Porvir – Por quais motivos? 

Petronilha Beatriz Gonçalves – Professores nas escolas e universidades devem se perguntar: ‘O meu ensino é formulado ou aplicado tendo em vista que projeto de nação?’ Da mesma forma, os estudantes e – sobretudo os que estão na universidade – devem ou estão se perguntando: ‘O meu estudo, os meus projetos pessoais e acadêmicos têm em vista que projeto de sociedade?’ Um projeto que começou a ser construído lá no século 16 e que ainda perdura ou um projeto de sociedade realmente de igualdade social e de igualdade é racial. Um projeto de sociedade em que todos se vejam contemplados e participantes, onde a história e cultura dos diferentes povos que constituem a nação brasileira estão presentes não meramente como conteúdos, mas como aprendizagens necessárias para que se faça uma discussão permanente a respeito de qual seja o projeto de país para o qual está se educando.

No site pessoal de Petronilha estão reunidos livros e uma série de artigos para consulta. Um deles, intitulado “Como valorizar as raízes afro nas propostas pedagógicas”, traz dicas para educadores. Segundo a autora, é preciso que se tenha permanente cuidado em ensinar a história do povo da África e da diáspora: “Busquemos apoio em grupos do Movimento Negro, para identificar quais são os interesses do povo negro, seus traços culturais, sua contribuição na construção da nacionalidade brasileira. Busquemos também embasamento em estudiosos que se dedicam ao estudo do negro, sua cultura e sua história.” Confira a íntegra do texto neste link

Porvir – É também comum que tais discussões sejam taxadas como “mimimi” por uma parcela da sociedade. A que se deve essa percepção?

Petronilha Beatriz Gonçalves – Nós que sofremos o racismo sabemos que não é mimimi. Pessoas que não sofrem racismo, mas que tem um projeto de sociedade que contempla a diversidade brasileira e as diferentes maneiras de ser cidadão, maneiras essas que estão enraizadas no pertencimento étnico racial, por exemplo, mas não unicamente.

Se o meu projeto de sociedade é para garantir o benefício só para o meu grupo social étnico racial, eu vou querer manter o projeto que começou lá no século 16. Agora se o meu projeto de sociedade é que cada um na sua diferença, na sua particularidade, seja participante e faça suas propostas, a Educação das Relações Étnico Raciais propõe e instiga para que nós aprendamos a dialogar uns com os outros sempre a partir daquilo que somos. Há grupos que pensam que os privilégios devem ser mantidos para o seu grupo em detrimento dos outros ou até aceitam outros desde que estes assimilem o seu projeto de sociedade.

Porvir – Qual ainda tem sido o principal desafio para a inserção da Educação para as Relações Étnico-Raciais nas escolas?

Petronilha Beatriz Gonçalves – O principal desafio é que não aprendemos ainda a pôr em diálogo diferentes projetos de sociedades que estão por todos os lugares e inclusive nas escolas. O desafio é esse. 

Eu não tenho que abandonar o projeto de sociedade do meu grupo social ou o projeto que escolho defender, mas tenho que ter paciência, curiosidade e respeito para ouvir os distintos, os diferentes projetos e perguntar constantemente como podemos juntos, a partir das nossas diferenças e daquilo que temos em comum, como vamos construir esse projeto sociedade em que todos sejam respeitados na sua especificidade. 

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Porvir – 2022 marca os dez anos da Lei de Cotas. É possível considerá-la bem-sucedida?

Petronilha Beatriz Gonçalves – Eu diria que sim. E também diria que não. Sim porque se nós formos ver o número de estudantes oriundos de escolas públicas e que anteriormente tinham dificuldades de ingressar na universidade, o número de estudantes negros e indígenas cresceu consideravelmente, como também outras diferenças. Vão aparecer então iniciativas com reserva de vagas para pessoas com deficiência, por exemplo. Toda diversidade começa a ser incentivada na universidade, mostrando o ensino superior não como um privilégio, mas como uma possibilidade de ter na universidade a presença da diversidade da sociedade brasileira. 

Porvir – Falar da Lei de Cotas é falar sobre equidade. É possível pensar em equidade sem considerar questões de diversidade como raça, gênero e diferenças?

Petronilha Beatriz Gonçalves – Falando de equidade é impossível desconsiderar as diferentes maneiras de ser uma pessoa. Há a questão racial, as orientações sexuais, as pessoas com deficiência e assim por diante, porque não existe uma maneira uniforme de ser pessoa. A Lei de Cotas não vem para excluir ninguém, mas para incluir a diversidade da sociedade.

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Porvir – O próximo ano trará uma nova composição para o Ministério da Educação. O que o MEC precisa priorizar quando se trata em combater o racismo?

Petronilha Beatriz Gonçalves – Bom, eu o que deveria priorizar é a discussão com os professores e a implantação das normas. Nós temos normas, leis, temos pareceres do Conselho Nacional de Educação, de conselhos estaduais e municipais de educação. Não faltam orientações para o sistema de ensino. E justamente, no meu entender, fazer a pergunta para os professores: “O meu ensino e as relações que eu mantenho com os meus estudantes e com meus colegas, a gente está veiculando um projeto de nação. Qual é esse projeto?”


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educação antirracista

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