Por uma relação família-escola baseada em parceria
Pesquisadora explica os benefícios de um modelo que se destaca por ações flexíveis, responsabilidades compartilhadas e uma comunicação frequente, em que um lado não culpa o outro por questões relacionadas ao comportamento e ao desempenho do estudante
por Renata Trefiglio Mendes Gomes 5 de janeiro de 2021
Dentre muitas das necessidades e urgências que a pandemia trouxe para a realidade da educação brasileira, uma não pode mais ser negligenciada: a importância da relação família-escola. Para que seja possível refletir sobre os aspectos essenciais na construção saudável dessa relação, é preciso primeiro entender os modelos praticados nas escolas.
Uma pesquisa (em publicação) que desenvolvo na Universidade de Nebraska-Lincoln (Estados Unidos) buscou identificar a percepção de professores quanto à necessidade de uma parceria com a família, bem como identificar estratégias vigentes e lacunas no estabelecimento dessa parceria. Entre as conclusões desse trabalho, foi identificado que muitas das práticas vigentes nas escolas contemplam um sistema centrado no aluno. Mas qual o problema dessa perspectiva? Não seria o aluno o foco principal de um contato entre os dois ambientes?
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O problema está na implementação dessa perspectiva na prática do dia a dia nas escolas. Nesse tipo de abordagem, não é atribuída uma adequada atenção à família e à escola como ambientes interdependentes e que influenciam no desenvolvimento da criança. Especialmente nos primeiros anos da vida escolar, a criança não tem habilidade suficiente para fazer escolhas efetivas, refletir sobre o seu próprio aprendizado, reconhecer suas fraquezas e mudar o que precisa ser mudado. Os adultos à sua volta acabam sendo os verdadeiros responsáveis pela avaliação do comportamento.
Quando o foco dos ambientes escolar e familiar é centrado no aluno, uma incompatibilidade de opiniões, por exemplo, é vista como uma barreira na comunicação, e não como uma diversidade de realidades que deve ser incorporada como parte do processo (e que não necessariamente é negativa). É aqui que professores e famílias tendem a “culpar” uns aos outros.
Uma perspectiva centrada no aluno torna desigual a importância que outros contextos têm na vida do estudante, pois o foco está em seu desempenho, em suas questões individuais e pessoais, e não nos fatores externos a ele. Nessa orientação tradicional os objetivos de aprendizagem, as atividades, estratégias e as expectativas de aprendizagem e comportamental tendem a ser determinadas pela escola. Mas, então, qual seria a perspectiva mais eficaz a assumir dentro da escola em busca de uma efetiva parceria? Como o próprio nome já diz, uma orientação centrada na parceria entre família e escola. O termo “parceria” faz referência ao relacionamento que envolve uma cooperação frequente, em que famílias e escolas são próximas umas das outras.
Aqui, todas as ações são flexíveis, responsivas, proativas; os papéis são claros, mútuos e de apoio. As diferentes perspectivas são consideradas importantes e parte do processo de entendimento da dificuldade que o aluno possa estar enfrentando. A comunicação é frequente, positiva, bidirecional, e os planos, coconstruídos, com responsabilidades para todos os participantes. Durante a operacionalização de uma parceria família-escola, as metas de intervenção e mudança de comportamento são mutuamente determinadas e compartilhadas.
Com essa abordagem, é possível ter acesso às condições de vida das crianças que são ideais para promover a aprendizagem e o desenvolvimento saudável. A partir de uma orientação centrada na parceria, a atenção às habilidades e competências se estende aos membros da família e aos educadores. Os dois contextos colaboram, trabalham juntos, são vistos como fatores externos que podem ser modificados para ajudar à criança. Não é possível mudar internamente os alunos, então a melhor prática que pode existir é a consciência de que os adultos têm o poder de alterar aspectos do ambiente em que a criança está, de modo a modelar o seu comportamento e a ensiná-la estratégias de superação das dificuldades.
Quando existe um alinhamento entre os dois principais contextos em que a criança está inserida, isso se torna um fator de proteção para o desenvolvimento infantil. Pais e professores trabalham em parceria, um contexto pode orientar o outro sobre estratégias eficazes a serem adotadas em conjunto, como por exemplo a implementação de uma rotina diária que, consequentemente, organiza as atividades da criança e diminui sintomas de ansiedade infantil, uma vez que a instituição de uma rotina apresenta previsibilidade e a criança sabe o que tem que fazer, sabe o tempo com que as coisas vão acontecer, ela consegue se auto monitorar. Mas isso só é possível porque o adulto interveio. A criança por si só não consegue pensar sobre isso, por isso defendo que uma orientação de parceria precisa prevalecer à prática atual centrada no aluno já que uma abordagem de parceria implica comunicação bidirecional, relacionamento à base da confiança, e o compartilhamento das responsabilidades e do suporte à criança.
As famílias são os primeiros professores das crianças; muito do aprendizado e desenvolvimento de habilidades comportamentais de uma criança ocorre fora da escola. Considerando que a aprendizagem não acontece somente dentro da escola, e que uma parceria entre a família e a escola é um processo interativo de planejamento ou de resolução de problemas que é caracterizado por respeito mútuo, confiança, e comunicação aberta, é essencial transitar de uma orientação tradicional, centrada no aluno, para uma orientação de parceria.
Essa colaboração envolve igualdade, a disposição de ouvir, respeitar e aprender uns com os outros e paridade, a combinação de conhecimentos, habilidades e ideias para aprimorar o relacionamento e, consequentemente, o desempenho das crianças. Assim, famílias e escolas compartilham responsabilidades e direitos, são vistas como iguais e podem contribuir de forma igualitária para o processo.
Modelo para o Desenvolvimento de uma Parceria Efetiva
A parceria com famílias é um processo intencional, que é mais facilmente realizado quando se trabalha a partir de uma estrutura que reflete cinco A’s: Abordagem, Atitude, Atmosfera, Ações, Alcance/Realização.
*Abordagem
Consiste em uma perspectiva abrangente de que escolas e famílias são essenciais para o sucesso do aluno. Há uma responsabilidade compartilhada pela educação e socialização das crianças. A ênfase está nos relacionamentos, em vez de papéis distintos.
*Atitude
Consiste na crença de que professores e pais trabalhando juntos é mais eficaz do que trabalhar sozinho. Todas as famílias têm pontos fortes. Os pais podem ajudar seus filhos a serem bem-sucedidos, e essa premissa é condição pré-requisito para o estabelecimento de uma parceria. Não há espaço para culpas; ninguém é o “culpado”.
*Atmosfera
Consiste em sinais físicos, concretos, que são capazes de despertar o interesse nas famílias em participar do processo de escolarização. Clima afetivo que convida as famílias. Comunicação calorosa e convidativa. Alguns exemplos são o uso de quadros de avisos para toda a família, o uso de painéis com fotos dos alunos e suas famílias
*Ações
Ações = Parceria. Consiste em ações que são baseadas no relacionamento e que criam estratégias para apoiar o aluno. É um processo intencional. É baseado em comunicação. São ações que promovem continuidade e consistência no uso das estratégias em casa e na escola. Abrangem uma resolução de problemas de forma colaborativa.
Uma das descobertas mais consistentes sobre os impactos da abordagem baseada na parceria foi o poder de criar continuidade e consistência das ações entre os dois ambientes. As intervenções que oferecem oportunidades de aprendizagem e apoio em casa e na escola se revelaram as mais eficazes, pois há um benefício real em criar continuidades nos apoios oferecidos às crianças em todos os ambientes. Isso não significa que eles tenham que ser idênticos, mas sim complementares. Pais e professores podem ter experiências diferentes com a mesma criança e podem ter percepções diferentes sobre o foco do problema e da necessidade de intervenção.
A ênfase nas contribuições que cada um pode oferecer na parceria, o uso de uma linguagem unificadora, como a substituição do ‘você’ e do ‘eu’ pelo ‘nós’/’nosso’ constitui outra estratégia importante. O uso do ‘nós’ transmite um senso de igualdade e propósito compartilhado e palavras singulares como por exemplo o ‘você’ ou o ‘eu’ trazem um senso de separação e podem ser interpretados como colocando uma distância e separação entre as partes envolvidas.
Um modelo de estabelecimento de parceria entre as famílias e as escolas é o TAPP (Teacher and Parents as Partners), que pode ser traduzido para “Professores e Pais como Parceiros” (Confira a publicação do Porvir sobre a implementação do programa no Brasil).
Renata Trefiglio Mendes Gomes
É doutoranda no Departamento de Child, Youth and Family Studies (CYAF) pela University of Nebraska-Lincoln (UNL), nos Estados Unidos, com especialização em Child Development/Early Childhood Education, bem como em Quantitative, Qualitative and Psychometric Methods (QQPM). Possui mestrado em Educação e Saúde na Infância e Adolescência pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). É pedagoga e psicopedagoga com especialização em neuropsicologia. Palestrante. Pesquisadora. Consultora Escolar. Professora. Supervisora clínica.