‘Precisamos imaginar pessoas negras em espaços emancipados’
Em conversa com o Porvir, a jornalista, escritora e professora Rosane Borges reforça a importância da representatividade de pessoas pretas na literatura e a possibilidade de criação de outros horizontes a partir de novas narrativas literárias
por Ruam Oliveira 12 de julho de 2023
A presença de pessoas pretas, sobretudo mulheres, na literatura esteve por muito tempo legada a posições de subalternidade e que, em certo sentido, reforçavam e cristalizavam uma imagem negativa em relação a essa parcela da população.
Questões relacionadas à representatividade, contudo, ganham força no debate dentro e fora da escola a fim de tentar reverter esse senso comum que associa a população negra a uma imagem negativa.
A lei 10.639/03, com seus vinte anos recém completados, é um mecanismo que possibilita trabalhar essas representações, pois trata diretamente da história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares. Ao discutir a história desses povos, surge a oportunidade de introduzir novas narrativas, que tiram da população preta a imagem única de escravizados.
Nessa conversa com a pesquisadora Rosane Borges, autora de livros como “Sueli Carneiro – Retratos do Brasil Negro”, “Introdução ao Pensamento Feminista Negro” entre outros, a temática da representatividade é apresentada sob a perspectiva da literatura e da possibilidade de que ela seja um instrumento fundamental de combate ao racismo.
Rosane acredita que ao adentrar o campo da imaginação, que é o lugar da literatura, as pessoas pretas podem ser vistas e pensadas em espaços diferentes, com dignidade e soberania conquistadas.
A escritora, que também é doutora em Ciências da Comunicação, professora colaboradora do Colabor (ECA-USP), pesquisadora nas áreas de comunicação, política contemporânea e relações raciais e de gênero, entende que a sua própria imagem, enquanto mulher preta que ocupa todos esses espaços, contribui para que outras mulheres e meninas negras trilhem caminhos diferentes dos quais foram limitadas devido ao racismo que estrutura as relações no Brasil.
“O racismo, no Brasil e no mundo, é alimentado pela ausência de imagens. Não vemos pessoas negras nas estruturas de poder real”, disse a pesquisadora.
Leia abaixo os principais destaques da entrevista:
Porvir – De que forma você vê a literatura como uma ferramenta importante no combate ao racismo?
Rosane Borges – A literatura é uma ferramenta porque é imaginativa. Ela nos auxilia no processo de imaginação. E a imaginação, ao contrário do que muitos pensam, não é algo mentiroso ou exclusivo da ficção. A imaginação nos possibilita construir mundos possíveis. Este processo de idealizar mundos é fundamental na luta contra o racismo. Precisamos imaginar pessoas negras em espaços emancipados, com dignidade, altivez e soberania conquistadas.
A literatura se torna importante quando antecipamos estas imagens nela. Essa imaginação pode se tornar uma plataforma política. O racismo, no Brasil e no mundo, é alimentado pela ausência de imagens. Não vemos pessoas negras nas estruturas de poder real, porque também não há antecipação dessas imagens na literatura, nas artes e no cinema.
Vejo que a literatura é importante porque possibilita cogitar a construção de horizontes possíveis.
Porvir – Geralmente, as pessoas abordam o racismo pelo lado da violência e do sofrimento. Porém, a literatura possibilita apresentar a vida não apenas pela ótica da violência, mas também da beleza…
Rosane Borges – É exatamente isso. Sobre os povos historicamente discriminados, pesa uma narrativa de dor, falta e violência. A literatura pode virar a chave e criar histórias de leveza. Somos humanos, compostos de coisas boas e ruins, de alegrias e tristezas, de conquistas e limitações.
A literatura é fundamental, pois nos leva a pensar nessa multidimensão humana. Mesmo quando fala de violência ou regressão, a literatura tem um papel de transformar o lugar da barbárie e da violência em um lugar de cultura. Mesmo ao abordar a violência, a beleza e a simplicidade devem surgir. A literatura deve transformar um relato violento em uma história de singeleza e espelhamento, na qual as pessoas podem se ver como partícipes, ainda que não seja uma história fofa.
Porvir – O racismo impacta a dimensão socioemocional das pessoas. A literatura também pode influenciar essa dimensão. Ser uma mulher preta e escritora é um desafio, mas também pode inspirar outras mulheres negras a se tornarem escritoras e ajudar na aceitação de suas identidades. Você concorda?
Rosane Borges – Construímos nossa história como sujeitos, mas ela é uma história coletiva de possibilidades e espelhamentos. A representatividade é importante porque cria modelos. Não é sobre mim enquanto indivíduo, mas sobre a minha história e o que mobilizo em relação ao que é esperado para as mulheres negras.
Nós estamos na base da pirâmide, e espera-se que estejamos em trabalhos exploratórios e subalternos. Quando rompemos isso, nos tornamos uma representação, porque inspiramos jovens, mulheres e meninas negras a dizerem: “É possível também. É possível romper com o destino que o racismo tenta me impor”.
O racismo é um condicionante, não um determinante. A representatividade serve para dizer a todos que, apesar do racismo, do machismo e da homofobia, podemos romper esse pacto regressivo e construir algo onde possamos ser o que quisermos. Seja empregada doméstica, dentista ou dona de casa…