Preservar línguas indígenas é preservar a cultura dos povos
O ano de 2022 marca o início da década das línguas indígenas, promovida pela Unesco, e pode ser momento ideal para debater o tema em sala de aula para além das efemérides
por Ruam Oliveira 9 de agosto de 2022
A linguagem faz alguém ser quem é. De onde a pessoa é, em qual localidade nasceu, a qual cultura pertence. Todas essas coisas passam pela linguagem.
Na escola, acontece um processo de descoberta e aprimoramento da língua, que reforça todas essas características. Mas no caso das crianças Guarani Mbya que vivem na Aldeia Tenondé Porã, localizada na região sul de São Paulo (SP), o processo é diferente. Elas só têm contato com o português após os quatro anos de idade, apesar de na aldeia ser pouco comum ouvi-las falando o idioma.
Enquanto correm entre as atividades no CECI (Centro de Ensino e Cultura Indígena) Tenondé Porã e as brincadeiras no local, predomina entre elas o guarani, língua falada pelos povos da etnia Ñandeva, Kaiová e pelos Mbya.
Uma década para preservar
O ano de 2022 marca o início da Década Internacional das Línguas Indígenas, promovida pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para a valorização e preservação do patrimônio linguístico e cultural dos povos originários.
Atualmente existem entre 160 e 180 línguas indígenas que são faladas em território nacional. A estimativa é de que, antes da chegada dos portugueses, existiam entre 600 a mil idiomas. No país existem dois troncos linguísticos principais: O Tupi – do qual se origina o Guarani – e o Macro-Jê.
“Apesar de seu imenso valor, as línguas ao redor do mundo continuam a desaparecer a taxas alarmantes. Isso é motivo de séria preocupação”, aponta o relatório do Ano Internacional das Linguagens Indígenas, promovido também pela Unesco em 2019. O Fórum permanente sobre questões indígenas indica que ao menos 40% dos mais de 6 mil idiomas falados em 2016 estavam sob risco de desaparecimento, muitos deles sendo línguas indígenas, o que “coloca em risco as culturas indígenas e os sistemas de conhecimento a que essas línguas pertencem”.
Relacionadas
A questão indígena pelo olhar da interdisciplinaridade
Professora mobiliza turma em projeto sobre indígenas em contextos urbanos
Série do Futura retrata luta indígena e aprofunda debate na escola
Em outro contexto
Tatá Guarani, auxiliar no CECI, conta que há cerca de 40 anos a instituição funcionava apenas até o sexto ano do ensino fundamental, antiga quinta série, o que fazia com que os integrantes da comunidade precisassem ir para uma escola convencional, com maioria de falantes em língua portuguesa.
“Eu tive muita dificuldade quando fui transferido. Foi uma luta para me adaptar de verdade e até aprender um pouco a língua portuguesa. Foi uma batalha porque a gente sai de uma convivência que está acostumado [e que é] totalmente diferente, de como se comportar, como interagir com as pessoas… Isso é o mais impactante para mim pessoalmente”, comenta Tatá. Atualmente a escola local já atende até o ensino médio.
A antropóloga e linguista Ana Carla Bruno, em artigo publicado no site Amazônia Real, afirma: “O que observamos é que, vivendo nas cidades, muitos destes indígenas frequentam escolas que desconhecem suas histórias, suas línguas e experiências”. Para a antropóloga, não apenas a língua como também os próprios indígenas são estigmatizados nesses espaços “até ajustarem-se a novas formas de se portar e falar, como um ritual de passagem em que o indivíduo deve atravessar a fim de mudar seu status ou sua posição social”, completa.
A escola pela língua
O CECI é um espaço diferente. Ele é voltado para crianças de 0 a 6 anos, que estão regularmente matriculadas, mas recebe adolescentes e jovens também. Ele funciona como um espaço de ensino não regular. Entre as atividades previstas estão algumas relacionadas à caça, culinária, e à própria troca de saberes indígenas.
Lá a forma de aprender também é outra. A escola possui apenas duas pequenas salas e um espaço comum onde ocorrem oficinas – e isso somente quando o tempo está chuvoso. Do contrário, todas as atividades são desenvolvidas ao ar livre.
Para Tatá, essas ações contribuem para a preservação do idioma e, por consequência, da própria cultura. Elias Verá Mirim, Xamõi da aldeia, comenta que há um esforço entre eles para que a língua não se perca. Desde cerimônias tradicionais até mesmo o que vivem no dia a dia, os conhecimentos tradicionais estão presentes em diversas atividades, e o esforço pela linguagem também.
“Eu conheci uma aldeia no Mato Grosso na qual eles perderam também a própria língua. Os mais velhos ainda falam, agora os mais jovens e as crianças não”, diz Elias. Essa é uma preocupação latente. Não apenas pelos idiomas que estão ameaçados como pelas culturas que acabam sendo ameaçadas junto com as línguas.
“Quando uma língua é extinta, é como se tivesse ocorrido um incêndio em um museu”, exemplifica Benedito Prezia, mestre em Linguística Geral pela USP (Universidade de São Paulo), doutor em ciências sociais, com ênfase em antropologia pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e autor de paradidáticos com a temática indígena.
Benedito ressalta: os indígenas descobriram que a língua é também uma bandeira política e que deve ser usada para evitar a desvalorização de um povo. “A língua é um instrumento, mas não pode ser um instrumento discriminatório”, afirma.
De outro mundo
Há três anos atuando em escolas em território indígena, Vanessa Hengler, mulher branca e coordenadora do CECI, aponta que, de fato, um dos grandes desafios que encontrou tem relação com a língua. “É realmente não entender o que eles estão falando. Ainda tenho muita dificuldade”, conta.
O mesmo não ocorre com a cultura. Vanessa destaca que a maneira como as crianças aprendem na aldeia poderia ser reproduzida em outros lugares. “Eu vejo aqui como um exemplo para as escolas de fora. O jeito como as crianças aprendem, a forma como o ensinamento é passado dos mais velhos aos mais jovens… E aqui é aberto, as crianças aprendem praticando, sem medo de se sujar. Literalmente colocam a mão na massa”, ressalta.
A coordenadora ainda reforça que esse modelo pode ser muito mais significativo do que estar fechado em uma sala de aula com atividades estritamente direcionadas.
Como as escolas podem se envolver?
No caso do CECI Tenondé Porã, o planejamento é feito pela equipe da escola. De 31 funcionários, somente três não são indígenas, e isso se reflete no que a escola decide incluir para os alunos.
Mas essa não é a realidade da maioria das escolas no Brasil. Em unidades que não estão localizadas em território indígena ou que não possuem um currículo voltado para essa questão, ainda assim é possível realizar algumas ações.
A própria legislação prevê algumas inserções onde a linguagem pode ser vista e apreciada. A lei 11.654, de 2008, trouxe uma adição à LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) incluindo a obrigatoriedade do ensino e cultura da história dos povos indígenas. Por meio desse ensino, é possível abordar linguagens e até mesmo expressões muito usadas, mas que os estudantes não fazem a ligação com o universo indígena.
“É importante nós sabermos que herdamos muitas palavras que são de origem indígena”, explica Benedito. Pacaembu, morumbi, arapuca, pipoca… Todas essas palavras são de origem tupi.
O professor e pesquisador sugere que educadores interessados no tema comecem com a leitura de livros paradidáticos sobre o assunto e que invistam em formações na área, até mesmo no campo da linguística. Entre os títulos recomendados por Benedito estão: “Línguas brasileiras para o conhecimento das línguas indígens”, de Aryon Rodrigues; “Brasil Indígena: 500 anos de resistência“, de vários autores e “Povos Indígenas: Terra, cultu ras e lutas”, de Benedito Prezia, Beatriz Catarina Maestri e Luciana Galante.
O Xamõi da Tenondé Porã, Elias Verá Mirim, destaca que já ouviu muitas pessoas de fora da aldeia afirmando que eles – os indígenas – já não são mais puros, que estão “civilizados” e que isso, de certa forma, muda a cultura local, o que ele discorda. “Eu tenho muito orgulho de ser indígena. A gente vive bem com as matas, os rios e as cachoeiras e isso faz bem para a gente.”