Promover a tolerância religiosa é um compromisso da escola - PORVIR
Fernando Frazão / Agência Brasill

Inovações em Educação

Promover a tolerância religiosa é um compromisso da escola

Como a escola pode atuar para que diferentes crenças se tornem motivo de respeito e de antirracismo?

por Rafael Silva ilustração relógio 17 de novembro de 2025

No contexto escolar, trabalhar a tolerância religiosa é mais urgente do que nunca. O Brasil registrou 3.853 violações motivadas por intolerância religiosa em 2024, um aumento de mais de 80% em relação a 2023. 

Engana-se quem acredita que os espaços escolares vivem uma realidade distinta, pois alunos e educadores sofrem com esse tipo de preconceito. Nesses casos, as religiões que registraram o maior número de violações foram a umbanda e o candomblé, ambas de matrizes africanas. Um ponto de atenção especial é o uso no plural (matrizes), dado que ao longo dos séculos culturas de outras populações africanas foram inseridas no culto aos orixás, como a influência de povos Bantus.

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O ambiente da escola — com sua diversidade de gêneros, etnias, culturas e crenças — torna-se um espaço privilegiado para cultivar o respeito às diferenças e prevenir formas de discriminação que, quando não tratadas, prejudicam o clima pedagógico, a autoestima dos alunos e o resultado das aprendizagens. Estudos mostram que, quando a diversidade é ignorada ou tratada de forma superficial, ela pode favorecer a emergência de hostilidades e bullying. 

A legislação brasileira reforça esse dever de promoção da tolerância: segundo a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), Lei nº 9.394/1996, a disciplina de ensino religioso, por exemplo, deve “assegurar o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo”. E mais recentemente, a Lei nº 13.796/2019 ampliou garantias aos estudantes no que se refere ao direito de preservarem suas crenças no ambiente escolar.

As leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornaram obrigatório o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena, respectivamente, são também formas de abordar religiões e manifestações culturais relacionadas à espiritualidade. Neste sentido, trabalhar a temática religiosa é uma forma de assegurar o conhecimento e respeito às religiões de matrizes africanas e indígenas e apresentar a força dessas populações para manter vivas suas crenças e saberes ancestrais. Uma das formas mais promissoras de trabalhar o tema é a partir de festas populares, como o dia de São Cosme e Damião, celebrado em 27 de setembro. 

Mulheres vestidas com roupas tradicionais brancas participam de manifestação cultural
Participantes de manifestação ligada às religiões de matriz africana, em uma rua de cidade histórica. Foto: Agência Brasil.

Nesta data, as ruas se enchem de alegria: doces, cores e brincadeiras que celebram os irmãos que se tornaram santos católicos. Mas, nas tradições de matrizes afro-brasileiras, o mesmo dia também é dedicado aos Ibejis — divindades gêmeas que representam a infância, a alegria e a renovação. Esse encontro entre santos e orixás não é simples coincidência, é expressão de uma das formas de resistência cultural africana no Brasil: o sincretismo religioso.

Mais do que uma “mistura” de crenças, o sincretismo religioso foi uma estratégia de sobrevivência diante da perseguição e do apagamento. O processo colonial não foi apenas a dominação política e militar portuguesa nas Américas e em África, foi a imposição de valores, culturas e práticas sociais e religiosas. 

Dessa forma, os africanos e seus descendentes, além de serem escravizados, foram proibidos de cultuar seus deuses. No povo Yorubá, um dos maiores grupos étnicos do sudoeste da Nigéria e do Benin (antiga Daomé) era comum o culto aos orixás. Trazidos para a América Portuguesa, esses indivíduos se viram proibidos de seguir suas crenças e obrigados a adotar nomes portugueses e a fé cristã. 

Neste contexto, os Yorubás associaram seus orixás a santos católicos e assim mantiveram viva sua espiritualidade, memória e culto aos ancestrais. Essa adaptação, nascida da dor, transformou-se em gesto de invenção, uma forma de afirmar humanidade e fé em meio à violência da colonização. 

Por essa razão, religiões de matrizes africanas como o candomblé e a umbanda são chamadas de religiões afro-brasileiras, pois só existem no Brasil. 

Como o assunto pode aparecer nas aulas

Trazer esse tema para a escola é também propor uma nova forma de olhar a história do Brasil. O conceito de encruzilhada, trabalhado pelo pesquisador e professor de História Luiz Antônio Simas, ajuda a compreender o sincretismo como espaço simbólico de encontro, criação e reexistência. É ali, nas frestas abertas pela opressão, que africanos e seus descendentes transformaram imposições em liberdade, silêncio em cantos. Os pontos de partida são as tecnologias de resistência, criatividade e cultura africana e não a opressão em si. 

No componente de História, o tema pode ser articulado com a habilidade EF07HI16, que propõe a análise das dinâmicas do comércio de pessoas escravizadas e das regiões africanas de onde vieram. 

Ao investigar como grupos de diferentes etnias trouxeram e adaptaram suas tradições religiosas ao contexto colonial, os estudantes aprendem que as populações africanas não foram apenas vítimas, mas também agentes ativos na construção cultural do Brasil. 

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Educadores podem propor, por exemplo, um mapa das rotas do tráfico e das influências religiosas africanas, relacionando regiões de origem e o estudo de seus elementos culturais (línguas, comidas, músicas, ritos) na África e na diáspora. 

Já a habilidade EF08HI14, que discute a tutela de povos indígenas e a participação dos negros no final do período colonial e as permanências de estereótipos e violências, pode ser trabalhada a partir da observação de como a religiosidade afro-brasileira ainda é alvo de preconceito. 

Esse tema pode ser conectado com a BNCC de Ensino Religioso, que na unidade temática Manifestações religiosas tem como objetivo “a valorização e o respeito às distintas experiências e manifestações religiosas”. 

A partir desse estudo e objetivos, o docente pode promover rodas de conversa ou análises de reportagens sobre intolerância religiosa, estimulando os alunos a reconhecer essas práticas como manifestações legítimas da identidade nacional e da herança africana. 

Nesse contexto, é importante apresentar o conceito de racismo religioso, uma forma distinta de discriminação religiosa que tem em sua origem a discriminação de religiões de matrizes africanas e indígenas. 

Outras formas de inclusão

O sincretismo também permite dialogar com a habilidade EF08HI27, que convida à reflexão sobre os discursos “civilizatórios” e seus impactos sobre as populações negras e indígenas. Ao mostrar como o catolicismo foi imposto como padrão de fé, o professor pode propor debates sobre o que se entende por “civilização” e “barbárie”, questionando a hierarquia cultural construída no período colonial e suas repercussões atuais. 

Uma das formas mais potentes de contextualizar o tema é por meio de obras literárias. A partir delas, o professor pode propor atividades de leitura e releitura simbólica, estimulando que os estudantes expressem, em desenhos, poemas ou dramatizações, o que aprendem sobre diversidade, resistência e cultura africana e afro-brasileira. 

Abaixo, sugestões de quatro títulos possíveis sobre a temática:

  • “Biu e o caminho de Sankofa”, autor Rafael Silva e ilustrações de Leo Fanelli.  
  • “Os Ibejis e o carnaval”, autora Helena Theodoro 
  • “Omo-Oba”, autora Kiusam de Oliveira e ilustrações de Ayodê França 
  • “Contos e lendas afro-brasileiros”, de Reginaldo Prandi e ilustrações de Joana Lira podem apoiar esse trabalho.

Mais do que ensinar fatos históricos, esse trabalho ajuda a desenvolver empatia, pensamento crítico, valorização da pluralidade e tolerância ao diferente. Por fim, a partir dessa prática, a escola pode formar sujeitos capazes de compreender que a história do Brasil foi, e continua sendo, construída nas frestas da resistência e na luta pela manutenção da memória e identidade dos povos que sofreram o processo de colonização. 


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artigo, Coluna Rafael Silva, educação antirracista

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Gessé Antônio de Souza

A formação de grupos identitários parece resolver um problema de invisibilidade, negação ou inexistência de si mesmo no espaço social. Mas essa emersão pode criar um novo problema. A emersão, e consequente existência visível, poderá gerar conflitos com outras identidades, no espaço social, historicamente estabelecido. Esta busca de identidade e visibilidade precisa supera o dilema do identitarismo tribal, ou seja, emergir sim, pois isso é um direito e um dever das categorias oprimidas ou submersas. Contudo, um segundo momento é muito importante: a integração ética entre os diversos grupos identitários bem definidos, que sejam capazes de desenvolverem habilidades de amar e aceitar reciprocamente outras identidades estabelecidas no transcurso da história. Ser um outro e amar o outro reciprocamente, considerando legítima a existência do diferente de si, passa a ser uma necessidade improrrogável. Identidade sim, identitarismo tribal, não.

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