A revolução necessária na formação dos professores - PORVIR
Crédito: LaylaBird/iStockPhoto

Coronavírus

A revolução necessária na formação dos professores

Precisamos substituir os discursos sobre a importância dos professores por ações claras e concretas para superar problemas crônicos e emergentes na formação

por Renato Casagrande ilustração relógio 23 de junho de 2020

Começamos o ano letivo de 2020 acreditando que este seria mais um ano e que daríamos alguns passos certamente lentos em direção ao futuro da educação, que sempre se anunciou como fundamental, mas que também foi retardado ao máximo. De uma hora para outra, no entanto, a vida dos professores foi virada de ponta cabeça com o advento do novo coronavírus (COVID-19) e a pandemia que ocasionou uma mudança drástica em suas rotinas e, também, na das escolas.

Os professores e gestores urgentemente precisaram se reinventar, e de forma muito rápida. Um período difícil, de susto, inquietações, angústias e incertezas, mas que rapidamente se converteu em ação. Esta, por si só, descontrolada, pouco eficiente e sem objetivos claros, mas que aos poucos foi dando espaço a outras mais bem planejadas, estudadas e melhor executadas. Passado o susto, os educadores perceberam que “o avião deveria continuar no ar”. Assim, passamos a viver um novo momento na educação brasileira, o da implantação do ensino não presencial.

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O professor está num processo de quebra de paradigmas, de redução de estigmas e preconceitos e passando a encarar uma nova forma de ensinar, não mais centrada na sala de aula e nem nos métodos de ensino até então utilizados com relativo sucesso. Aquilo que era proclamado já em estudos de um ensino mais personalizado, em que o aluno se torna protagonista do seu processo de aprendizagem, encontra nesse momento um espaço de desenvolvimento.

Diferentemente do que alguns educadores e pais pensavam, o ensino remoto ou as atividades a distância na educação básica não serão breves ou um mero modismo. A educação não presencial deverá perdurar por um período considerável, e a educação mediada por tecnologias como as que estamos presenciando neste momento deverão se fazer presentes nas escolas a partir de agora, independentemente da crise da COVID-19. O que sabemos de antemão nos leva a um novo momento, que é a convivência com o ensino híbrido. Esta sim parece ser uma tendência inevitável.

O que sabemos de antemão nos leva a um novo momento, que é a convivência com o ensino híbrido. Esta sim parece ser uma tendência inevitável

Todos esses desafios e mudanças só são e serão possíveis com a transformação, engajamento, mobilização e comprometimento dos professores. Com novos comportamentos e atitudes eles poderão dar saltos quantitativos e qualitativos em suas aulas. Esses comportamentos não virão somente por desejo dos professores, mas precisam estar calçados em nossas competências e habilidades a serem rapidamente desenvolvidas para que o avanço ocorra e essas mudanças se consolidem. É preciso voltar a insistir num assunto que parece até gasto, mas é prioritário: a formação dos professores.

Para tratar o tema de formação de maneira bastante didática e objetiva, separei os aspectos a serem refletidos em dois grupos. O primeiro se refere a aspectos já amplamente discutidos e que independem da pandemia que atualmente vivemos. Esses não perderam sua relevância, pelo contrário, tornaram-se mais importantes e urgentes com a crise ora instalada na educação. O segundo grupo de aspectos é específico para este momento e deve ser implantado urgentemente para minimizar os impactos da paralisação das aulas presenciais e contribuir com o retorno das aulas, provavelmente numa abordagem híbrida: presencial e não presencial.

Conheça a série do Porvir sobre Formação de Professores

Os problemas crônicos na formação dos professores
É consenso entre educadores, pesquisadores e gestores da educação que um dos maiores gargalos da educação brasileira é a formação dos professores, tanto a inicial como a continuada. O problema da má formação é grave e um grande desafio para as instituições de educação superior, sistemas e redes de ensino, escolas e todos os gestores e responsáveis pelo sistema educacional brasileiro, público ou privado. E por que temos avançado tão pouco na formação dos nossos professores? Quais são os obstáculos que nos impedem de oferecer uma formação melhor e mais efetiva para nossos atuais e futuros professores? Destaco cinco pontos que considero nevrálgicos e que explicam em partes nossa letargia ou nosso insucesso na formação docente. São eles:

– É preciso (re)formar os formadores
As universidades, na sua maioria, não têm apresentado um programa de formação alinhado com as transformações vividas pela sociedade. Ainda encontramos num número expressivo de cursos de Pedagogia e Licenciatura um professor tradicional, usando métodos tradicionais (muitas vezes avesso ou temerário às novas tecnologias), num ambiente tradicional de ensino. É importante lembrar que o professor é o único profissional que pode tomar como modelo a própria formação. Afinal, ele se forma nas mãos de um professor para ser outro professor. É de se esperar que, além de aprender as teorias ensinadas, também adquira e aprenda as próprias metodologias adotadas pelos professores nas suas aulas. Se seus professores, muitas vezes, utilizam métodos antiquados, há grande possibilidade de ele reproduzir esses modelos (que são referência) na sua prática na escola.

– É preciso aliar a formação prática à formação crítica e teórica
Há muitas dúvidas e incertezas no que ensinar e em como ensinar professores. Na própria academia há fortes discussões sobre uma formação mais prática (e considerada mais rasa por um grupo de pesquisadores) ou uma formação mais crítica, mais densa (e considerada pouco efetiva por outro grupo de pesquisadores). No geral, vence a formação mais crítica, mais densa e mais reflexiva, o que não deixa de ser louvável. No entanto, em função do pouco tempo de formação (três a quatro anos, no máximo), as questões técnicas, práticas e metodológicas são deixadas em segundo plano. Assim, muitos professores chegam em sala de aula sem saber como ensinar. E isso pode se arrastar por todos os anos de docência desse professor, principalmente em função da necessidade de criar um modus operandi, às vezes errado. Depois de um certo tempo, o professor acaba por firmar raízes com esse método, e então, fica difícil mudar.

Entenda as 10 competências gerais que orientam a Base Nacional Comum

Com a implantação da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), novas e importantes diretrizes foram emanadas e devem contribuir nos programas de formação, com destaque para as competências profissionais dos professores, como o conhecimento (domínio de conteúdos), a prática profissional (desenvolver e fazer a gestão dos ambientes de aprendizagem) e o seu engajamento profissional (comprometimento do professor com a aprendizagem e todos os agentes que constituem a comunidade escolar).

– É preciso ensinar o que o professor vai ensinar e como vai ensinar
Associado a questão da falta de prática, muitos professores, além de não saberem como ensinar, não dominam o que ensinam. Os pedagogos saem das universidades com dificuldade na língua portuguesa, na matemática básica e conhecimentos gerais. Isso se deve, principalmente, ao fato de que cada vez mais os ingressantes em cursos de Pedagogia, que preferencialmente atuam na educação infantil e ensino fundamental 1, são alunos, na sua maioria, que apresentaram baixo desempenho no Enem, segundo estudos publicados pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas).  É preciso então, ensinar matemática, língua portuguesa, ciências, além de investir numa sólida formação cultural para futuros e também dos atuais professores. Portanto, além do como ensinar, o professor precisa dominar o que está ensinando ou se propondo a ensinar.

– É preciso ir além do estágio supervisionado
Assim como ocorre com muito sucesso nos cursos de medicina, várias universidades e centros de formação de professores descobriram que uma boa estratégia para melhorar a formação dos professores é a implantação da residência pedagógica.

Os programas de residência permitem aos futuros professores participar de forma ativa na vida da escola. Primeiramente atuando como observadores, coletando dados, identificando necessidades institucionais, fazendo análise da estrutura e do espaço educativo, dos materiais disponíveis e necessários para a prática pedagógica, além de participar das atividades escolares, auxiliando professores e orientadores pedagógicos nas suas atividades, obtendo uma visão real dos problemas vividos pela escola. Em alguns casos podem até atuar como interventores, pesquisando e sugerindo soluções e implantando ações que possam vir a minimizar ou sanar os problemas.

Associado aos programas de residência, recomendamos também um programa de tutoria para os professores no início de carreira. Em países desenvolvidos como, por exemplo, a Alemanha, mais de 90% dos professores ingressam na vida profissional sob a tutoria e o acompanhamento de professores experientes, que os ajudam a desenvolver as primeiras práticas e, assim, corrigir o rumo e os erros naturais do início de carreira. No Brasil, ocorre justamente o contrário. Mais de 90% dos professores iniciam sua vida profissional sem nenhuma espécie de tutoria. Isso ocasiona, como já mencionado, um problema no modelo de trabalho que, muitas vezes, fica “torto” e mal estruturado e, em função da falta das devidas orientações, os jovens professores tratam seu modelo como uma verdade absoluta e todo o resto fica comprometido.

Instituições que implantaram com êxito programas de residência e/ou programas de tutoria afirmam haver avanços consideráveis na formação dos professores, quando comparados aos tradicionais estágios curriculares. Tanto a residência pedagógica como os programas de tutoria podem ser as melhores portas de entrada da escola para os futuros professores.

– É preciso organizar os programas de formação em função de diagnósticos mais precisos e atrelá-los a objetivos e ações efetivas
No Brasil, gastamos muito com formação de professores e obtemos pouco resultado. Boa parte dos programas é organizada sem um real diagnóstico da situação e das dificuldades do dia a dia em sala de aula. Praticamente todos os professores, independentemente da sua caminhada, das áreas que atuam ou das suas necessidades, são colocados nos mesmos programas de formação, sem qualquer diferenciação. Há muito mais reflexão, como ocorre na formação inicial, do que atividades mão na massa. Geralmente os programas são pontuais e desenvolvidos no formato de eventos. Também, na maioria das vezes, não estão atrelados a objetivos claros de onde se pretende chegar. Associada a esses problemas, temos ainda a falta de amarração dos programas com planos de ação de melhoria e acompanhamento dos resultados. Isso exige de todas das instituições e redes de ensino um novo olhar e uma nova ação sobre a formação dos nossos professores.

Os problemas emergentes na formação dos professores com a crise da COVID-19
Quando voltarmos às aulas nas escolas, além de todos os problemas relacionados à crise provocada pela COVID-19, teremos que voltar ao trabalho de implantação da BNCC e todos os seus desdobramentos. Essa implantação continuará exigindo de todos os sistemas educacionais, como já estava ocorrendo antes da pandemia, uma ampla formação dos professores. Dentre as questões previstas na BNCC, acredito que três aspectos se destacam para o momento e devem ser priorizados pelos gestores e técnicos responsáveis pela formação dos professores.

O primeiro aspecto está associado à ênfase para o uso das tecnologias e novas metodologias de ensino. Muitos dos problemas e dificuldades que temos com a implantação das aulas não presenciais são minimizados quando há a implantação de uma metodologia adequada de ensino remoto ou ensino híbrido associado às tecnologias acessíveis e convenientes. Quando isso ocorre, ganha-se a confiança dos pais, o que melhora seu engajamento, traz segurança aos professores no trabalho e ajuda no processo motivacional dos alunos. O professor precisa saber trabalhar com múltiplos materiais simultaneamente, entender a utilização de diferentes metodologias a distância em função da idade dos alunos, saber que material utilizar nos momentos presenciais e nos momentos não presenciais e entender quais tecnologias que podem dar suporte à implantação da metodologia.

O segundo aspecto a ser considerado nos programas de formação, para este momento, se refere à avaliação da aprendizagem. Em um processo de ensino remoto ou híbrido essa avaliação torna-se muito mais difícil. Por mais que adotemos jogos, quizzes (questionários interativos) e outras estratégias de avaliação disponíveis em plataformas na internet, sabemos que nada se compara à observação direta do professor em sala de aula ao longo de um período letivo. O contato com o aluno, o fazer pedagógico do dia a dia do professor é ainda o método mais eficaz de avaliação da aprendizagem.

O terceiro e último aspecto prioritário nos programas de formação se refere às questões socioemocionais. Se antes já precisávamos nos dedicar a elas, agora isso se torna imprescindível. Questões como cativar, motivar e garantir a resiliência dos alunos são funções básicas para um programa de formação que esteja atrelado à nova realidade da escola. Se já insistíamos no desenvolvimento de competências socioemocionais, agora, com o advento de toda essa crise vivida, o professor precisa ter capacidade de lidar com essas competências em um ambiente de quase pós-guerra.

Estudos desenvolvidos pela Universidade de Harvard apontam efeitos da pandemia na educação, orientando que professores precisam estar preparados para lidar com crianças que voltarão às escolas com medo e com a saúde emocional afetadas. Crianças e adolescentes acuados, desesperados, com estresse familiar, violência doméstica, a ideia de perder familiares, de verem seus pais ficarem sem trabalho e não ter dinheiro para sobreviver.

Voltaremos numa situação muito delicada. Os professores precisarão manter a calma, tranquilidade e possuir habilidades para lidar com todos esses problemas. Essas sensações devem ser interpretadas como um sinal de alerta a todos os professores, ajudando as crianças e adolescentes a não desenvolverem doenças psíquicas.

Precisamos substituir os discursos, bonitos e “floreados”, sobre a importância dos professores por ações claras e concretas

Assim, acredito que a crise da COVID-19 pode e deve ajudar a promover uma revolução na educação. Revolução essa esperada e proclamada há muito tempo. Temos muito a fazer. Precisamos substituir os discursos, bonitos e “floreados”, sobre a importância dos professores por ações claras e concretas que visem melhorar a formação docente a ponto de promover uma transformação.

Para isso, faz-se necessário que todos os agentes educacionais (governo, sociedade, sindicatos, escolas, professores e até a sociedade organizada) se unam em prol de uma pauta positiva e que, de fato, impacte o nosso tão precário sistema educacional.

Sem dúvida vivemos um momento de aprendizado, de reflexão, mas também um momento de ação e de construção de novas rotas para a educação. Não podemos perder essa grande oportunidade de investirmos firmemente na formação dos professores para a nova escola que desponta no horizonte.


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aprendizagem baseada em projetos, base nacional comum curricular, competências para o século 21, coronavírus, formação continuada, formação inicial, personalização, socioemocionais, tecnologia

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