Quando interdisciplinar e contextualizada, leitura vira hábito na escola
Usar interesse dos estudantes por jogos, redes sociais e leituras fora da escola pode facilitar processo de formação
por Maria Victória Oliveira 20 de agosto de 2021
Para quem gosta de ler, escolher um livro favorito pode parecer missão impossível. Mas na lista de qualquer leitor existem livros dos quais não gostou ou sequer conseguiu finalizar. No meu caso, a leitura obrigatória escolar “Cândido”, do filósofo Voltaire, tornou-se um sofrimento, já que não entendia a linguagem e o propósito daquela obra. Segundo Letícia Reina, gestora educacional da Árvore, esse pode ser o verdadeiro “pulo do gato” quando o assunto é promoção da leitura desde cedo e dentro do ambiente escolar.
A especialista explica que é importante que a escolha de uma obra, seja a partir do gosto do professor ou partindo do interesse dos estudantes, esteja atrelada a uma intencionalidade clara, e que os objetivos envolvidos na proposta sejam compartilhados com os alunos, de forma que a leitura faça sentido para eles.
“Ter definido previamente alguns objetivos de leitura com as suas turmas pode ajudar na atribuição de sentido ao livro. Uma estratégia é acionar os conhecimentos prévios dos alunos sobre o tema, ler trechos mais complexos juntos com eles, estimular a pesquisa sobre a vida do autor, entender em que momento sócio-histórico ele vivia, ou ainda propor debates sobre personagens controversos. Quanto mais contextualizada a proposta de leitura, mais pode gerar o interesse”, exemplifica.
A linguagem na BNCC
A promoção do sentido das propostas de leitura que Letícia comenta encontra embasamento na concepção de linguagem trazida pela BNCC (Base Nacional Comum Curricular).
A competência 3 da área de Linguagens para o ensino fundamental, por exemplo, versa sobre usar “diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao diálogo, à resolução de conflitos e à cooperação”.
A partir dessa concepção, a leitura extrapola o ato de decodificar palavras, e torna-se uma ação ampla de diálogo com o que está no entorno, conforme explica Letícia. “A leitura vai além de entender e interpretar o texto escrito. Ela abarca também saber entender um interlocutor e os contextos de produção e recepção de um texto, seja ele escrito, oral, imagético ou audiovisual.”
Nesse sentido, ela defende a importância de trabalhar a ampliação do letramento desde cedo a partir de diversas situações de diálogo com diferentes interlocuções e ampliando o repertório a partir de múltiplos gêneros textuais. A ideia é que, a partir dessas estratégias, a leitura possibilite não só a compreensão do que está em volta do estudante, mas também um trabalho de autopercepção e posicionamento de modo ético, crítico e reflexivo diante de várias situações.
A competência 4 da BNCC, por sua vez, afirma sobre o uso de diferentes linguagens para defender pontos de vista que respeitem o outro e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável.
Para Januária Alves, educomunicadora e especialista em educação literária e midiática, a Base ajudou a formalizar algo que os professores já sabiam: não é possível ensinar um aluno a expressar suas ideias se ele não tiver acesso a outras ideias diferentes das suas e não conseguir interpretar o que lê.
Um repertório argumentativo interessante é adquirido não apenas pela leitura, mas pelo exercício do diálogo, da escuta do outro e da tentativa de entender um pensamento completamente diferente do seu. Acredito que isso sempre foi praticado pela escola, mas a BNCC organiza e traz uma sistematização, o que ajuda na implementação de práticas na realidade das escolas.”
O que eles querem
Já ficou claro que usar assuntos contemporâneos e de interesse dos estudantes facilita o engajamento com a proposta educacional. Com a leitura não é diferente: muitos leitores desenvolvem gosto pelos livros não a partir das propostas da escola, mas sim a partir de escolhas autônomas de livros de literatura infanto-juvenil.
Segundo Letícia, mapear esses interesses – a partir de pesquisas coletivas com toda a turma, formulários individuais, bate-papos e debates – também consiste em uma estratégia a ser usada pelos professores.
“Quanto mais se compreende esses gostos e preferências, mais os educadores podem fazer as indicações com base nos temas, estilos, obras ou autores preferidos. No entanto, é possível também estimular os alunos com propostas atreladas a uma escolha do professor e não por isso ser uma leitura desmotivadora”, explica a gestora, reforçando a importância da intencionalidade das propostas.
Para Januária, estimular a leitura está diretamente relacionado a indicar conteúdos – sejam autores, livros, artigos e outros tipos de texto – que se relacionam com sua realidade. “É o que Paulo Freire citou sobre levar vida para dentro da escola. Então devemos prestar atenção aos temas que inquietam os jovens, prestar atenção no que estão conversando, o que estão vendo nas redes sociais. Mais do que nunca, o professor deve fazer esse exercício de entrar na pele do aluno e trazer uma literatura que apresente novos caminhos”, defende.
O potencial da interdisciplinaridade
Em muitos casos, os estudantes sentem-se desmotivados em ler por se deparar com uma lista extensa de livros de literatura ao longo do ano letivo. Uma forma de evitar esse desengajamento e potencializar o trabalho com a leitura é usar a mesma obra em diversas disciplinas.
No caso das obras clássicas, por exemplo, Letícia recorre ao sentido dialógico da linguagem apresentado pela BNCC para reforçar que é fundamental a compreensão sobre o momento da história com o qual aquele livro se relaciona bem como uma correlação com acontecimentos atuais e que possibilite a ampliação de repertório dos estudantes.
Esse trabalho pode ser feito de uma forma interdisciplinar, já que “ler um clássico e compreendê-lo por diferentes óticas pode e deve ser uma prática da escola”, explica a gestora. Em língua portuguesa, o professor pode promover um debate sobre como foi feita a construção de um personagem, aprofundar a reflexão sobre como o escritor narra uma situação e descreve um cenário, e em qual escola literária a obra se encaixa.
Em história, é possível discutir sobre os acontecimentos históricos que estavam em evidência no momento de produção do livro. Em artes, os alunos podem usar diferentes estratégias para ilustrar uma determinada cena descrita. “São inúmeras possibilidades de atribuir sentido ao clássico lido, sem ser monótono e sempre deixando exposto e claro os objetivos de cada atividade”, completa.
Novos tempos, novas propostas
De acordo com Letícia, a concepção de leitura pode e deve ser revista e atualizada com o passar do tempo. Isso significa que propostas pedagógicas criadas nos anos 2000 serão diferentes de atividades em 2021.
Ao observar o interesse dos estudantes pelas redes sociais, Karina Predebon, professora de literatura do Colégio Farroupilha, de Porto Alegre (RS), propôs um projeto no qual os alunos criam perfis no Instagram para personagens da obra O Cortiço, de Aluísio Azevedo. A ideia deu tão certo que a educadora realiza o projeto há oito anos.
Ela comenta que uma das maiores dificuldades da disciplina é acessar os estudantes e descobrir seus gostos e preferências. Karina afirma sobre o potencial desses diálogos com os alunos desde o momento de elaboração de uma atividade até a escolha das obras a serem lidas, reforçando que professores devem buscar desenvolver mais esse repertório sobre o que crianças e jovens gostam, desde leituras até as redes sociais que mais utilizam.
“Acredito que nós temos que nos colocar nesse lugar de afirmar que estamos aprendendo todos os dias, de descobrir o que eles leem fora da escola, dizendo que os alunos podem nos indicar livros. Na feira literária que fizemos, descobri que em seis meses um aluno já tinha lido 70 livros, outro tinha lido 30. Devemos deixar que eles compartilhem mais e pensar em como conversar sobre essas obras, porque isso vai engajando mais conforme eles vão compartilhando uma história”, explica.
Nesses debates, podem surgir novas oportunidades de conectar personagens dos livros sugeridos pelos alunos com temáticas semelhantes em livros clássicos de indicação do professor, por exemplo. “Muitas vezes tem a proposta da leitura, os alunos fazem o trabalho mas não sabemos se de fato se aprofundaram. Acredito também que precisamos desmistificar a literatura clássica como algo intocável. Eu falo com meus alunos que existem clássicos que eu mesma não consigo chegar até o fim”, defende.
No Colégio Farroupilha, as propostas envolvendo leitura durante a quarentena serviram para desviar momentaneamente o foco do momento difícil imposto pela pandemia de Covid-19. Os alunos fizeram um jornal sobre a obra “Édipo Rei”, de Sófocles, e criaram um jogo a partir de Inferno, a primeira parte da “Divina Comédia” de Dante Alighieri.
“Tivemos um retorno muito bom nas atividades envolvendo leitura, e aproveitamos para reforçar o trabalho interdisciplinar. Foi uma forma de manter o vínculo mesmo com a distância física. Discutimos que a cidade de Tebas, na obra Édipo Rei, foi acometida por uma peste, e fizemos o paralelo com a Covid-19. Mas também tentamos trazer outras questões, para ser um momento de distração. Acredito que a leitura tenha sido uma válvula de escape nesse sentido de possibilitar outros assuntos e abordagens.”
Saiba mais
🎧 A importância da leitura e diferentes formas de estimular que crianças e jovens descubram o momento da literatura são tema dos episódios do Plantando Histórias, podcast da Árvore. Confira aqui.