Quarentena interfere no desenvolvimento das crianças e professores serão importantes para a ressocialização
Falta de contato e convívio com colegas e rotinas indefinidas em razão da suspensão das aulas presenciais prejudicam a socialização e aprendizado. Retomada das aulas deve ser feita com paciência, escuta e diagnóstico
por Maria Victória Oliveira 30 de novembro de 2020
Compreender a existência de uma ameaça invisível que está impedindo a vida como se conhece está longe de ser uma tarefa fácil. O cenário fica ainda mais desafiador para crianças: privadas do convívio com colegas e professores, com primos, amigos e familiares, os pequenos também têm sentido os efeitos da pandemia de Covid-19. Há quem diga que até mais que os adultos.
O artigo Repercussões da Pandemia de COVID-19 no Desenvolvimento Infantil, produzido pelo Comitê Científico do NCPI (Núcleo Ciência pela Infância) apresenta uma pesquisa realizada na China, na qual 36% dos respondentes afirmaram que crianças e adolescentes apresentaram dependência excessiva dos pais, 32% desatenção e 29% preocupação.
Pesquisadoras do Child Trends (centro de pesquisa nos Estados Unidos) mostraram, no artigo Recomendações para apoiar o bem-estar emocional das crianças durante a pandemia da COVID-19, traduzido pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), que as alterações na vida cotidiana no mundo todo podem representar uma dificuldade para crianças e jovens, por interferir em seu senso de estrutura, previsibilidade e segurança. Também entra nessa conta a possibilidade de absorverem sentimentos das pessoas que os rodeiam.
Diana Tatit, gerente pedagógica da CLOE e integrante do grupo Tiquequê, cita a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a educação infantil para afirmar que o componente social das crianças foi um dos mais afetados pelo cenário da pandemia, uma vez que todo o campo de experiências 5, intitulado “o eu, o outro e o nós” não está sendo trabalhado em sua totalidade nesse momento.
“Esse campo é mais voltado ao aspecto de pertencer a um coletivo. Ou seja, estar na escola e ter que lidar com os pares e com adultos são objetivos de desenvolvimento que falam sobre como você percebe o outro, como expressa o que está sentindo, como lida com situações coletivas. Então, entre cinco campos de experiências, um quinto não está sendo desenvolvido, porque falta justamente a troca entre pares. Não é que a socialização faz parte do ato de ir para escola. Ela é um direito e algo a ser aprendido pelas crianças pequenas”, pontua.
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A potência do convívio para o desenvolvimento
Beatriz Abuchaim, gerente de conhecimento aplicado na Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, explica que é brincando e fazendo atividades em conjunto que crianças criam hipóteses, interpretações, aprendem a compartilhar e a conversar. A falta desse contato no presente pode, portanto, ocasionar algumas dificuldades futuras. “Talvez tenham mais dificuldade em dialogar ou em dividir materiais, mas isso depende da idade da criança e de seu processo de amadurecimento em relação a essas questões.”
Para a especialista, o fato de o cérebro das crianças ser “plástico” até os seis anos de idade, termo usado para designar a maior capacidade de adaptação no começo da vida, é um ponto positivo que trabalha a favor das crianças. “Essa característica permite rapidamente a retomada de certos processos de desenvolvimento e aprendizagem. Então, quando as atividades das salas de aula voltarem, é muito provável que essas habilidades sejam recuperadas. O desenvolvimento infantil não será perdido.”
Diana, por sua vez, reforça que a falta de contato com outras crianças pode trazer prejuízos que vão além da socialização com o outro e envolvem o desenvolvimento corporal e o aprendizado sobre o funcionamento de outras casas e famílias. Para crianças que vivem em apartamentos nos grandes centros urbanos, por exemplo, a escola é um lugar que possibilita a realização de movimentos mais amplos, promovendo o desenvolvimento motor.
Além disso, é no convívio com colegas que elas vão saber como estabelecer e compreender diferentes acordos, costumes, interesses e culturas. “No campo da oralidade, por exemplo, a criança vai conhecer outras formas de expressão além das que sua família usa. É aquele momento que os pais perguntam onde o filho aprendeu determinada expressão. Ainda, a escola também é lugar desse intercâmbio cultural. Uma criança pode ter uma família mais ativa fisicamente, com pais esportistas. Outra, pode vir de uma organização que prioriza atividades em que o corpo está mais quieto. Na escola, todas terão a oportunidade de conviver e realizar os dois tipos de ações”, explica Diana.
A importância da rotina
De modo geral, especialistas também pontuam que a rotina é um componente fundamental para crianças pequenas. Por mais que pais, mães e responsáveis tenham trabalhado no estabelecimento de novos rituais com os filhos a partir do fechamento das escolas, o processo de adaptação leva tempo. Assim como médicos não conheciam a Covid-19 no começo da pandemia e tatearam em busca de um tratamento, as famílias também precisaram equilibrar vários pratos ao mesmo tempo, como o cuidado dos filhos, da casa e o trabalho em home office.
Apesar de não existir um segredo ou fórmula pronta para alcançar um cenário favorável em meio a uma pandemia mundial, Beatriz reforça o papel da rotina para os menores, seja em momentos de aula totalmente remota ou com a possível adoção do ensino híbrido, com alguns dias em casa e outros na escola.
“A rotina dá para os pequenos um senso de segurança e previsibilidade do que vai acontecer. É importante ter momentos para trabalhar as questões da escola, de forma que os pais possam acompanhar essas atividades, para ficar em família ou para a criança brincar sozinha. Os horários precisam ser regulares pois estão relacionados diretamente com o bem estar físico das crianças. O melhor que os pais podem fazer nesse momento é construir essa rotina junto com os filhos, por menor que ela seja. Assim, eles entendem o que vem antes, o que vem depois, qual a hora de brincar e assim por diante”, explica Beatriz.
Papel dos professores na retomada das aulas presenciais
De acordo com Diana, professores devem ter em mente que a retomada das aulas presenciais deverá ser feita com paciência, uma vez que existe a possibilidade de crianças apresentarem novamente questões que já deveriam estar superadas no contexto de seu desenvolvimento.
Para ela, a opção mais acertada é investir em um diagnóstico atencioso, que possa determinar o que as crianças já sabem para, a partir disso, traçar novos planejamentos. “Acredito que teremos que rever algumas expectativas para o retorno. As crianças vão trazer alguns aprendizados dessa experiência de ter ficado tanto tempo em casa. Entretanto, como todo ensino deve partir de uma sondagem, precisamos entender o que elas já sabem para construir novas estratégias.”
Uma opção para que docentes possam lidar com esse cenário de desafios, como comenta Diana, é apostar na troca entre si. Ou seja, se um professor do grupo mais a frente na educação infantil sente que seus alunos estão com dificuldades, pode perguntar e trocar ideias com o professor da turma anterior. “Isso pode ser muito potente e acredito que nessa troca entre pares podem ser desenvolvidas estratégias mais fortes.”
Beatriz segue a mesma linha ao afirmar que o processo de retorno deve ser feito com muito cuidado e empatia, e reforça a importância da escuta familiar. Para a especialista, enquanto a escola precisa ouvir as famílias e entender como foi esse período de distanciamento social e como que está a criança, o professor precisa observar e conversar com os alunos. Essa observação deve ser feita de forma sistematizada e, assim como mencionou Diana, irá possibilitar um melhor planejamento de atividades de recepção das crianças, considerando o surgimento de debates com temas diversos.
“Será necessário prover um acolhimento emocional e um espaço para que elas possam falar dessa situação. Pode ser necessário conversar sobre a máscara, sobre o vírus e até sobre as perdas. Muitas famílias brasileiras perderam pessoas queridas nesse período. É natural que crianças levem esses traumas para escola e o professor não pode ignorar isso”, reforça Beatriz, sem deixar de mencionar que o corpo docente e a equipe pedagógica também precisam de cuidados na volta à escola.
De acordo com o artigo do Child Trends, existem algumas dicas para apoiar e proteger o bem-estar emocional das crianças durante a pandemia, tais como: compreender que as reações à pandemia podem variar, garantir a presença de um cuidador sensível e responsivo, fornecer informações apropriadas à idade, criar um ambiente físico e emocional seguro, enfatizar pontos fortes, esperança e positividade.
Aprendendo Sempre: Ferramentas e orientações para suas aulas remotas