Um país em transição precisa conhecer seus estudantes - PORVIR
Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Inovações em Educação

Um país em transição precisa conhecer seus estudantes

No segundo dia do Seminário Educação na Era das Transições, especialistas apontam como a juventude brasileira deve ser protagonista das mudanças que almejam uma escola mais crítica, plural e prática

por Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 6 de outubro de 2023

Filho do meio entre 11 irmãos, com pai metalúrgico e mãe trabalhadora doméstica, o professor Valter Roberto Silvério, do departamento de pós-graduação em Sociologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), coleciona títulos acadêmicos e é uma das referências dos estudos das diásporas africanas – fenômeno caracterizado pela imigração forçada de africanos durante o tráfico transatlântico de escravizados.

Editor da versão em português dos dois volumes da coleção História Geral da África, material de referência para professores organizado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), Valter participou da mesa “Educação em transições” no segundo dia do Seminário Educação na Era das Transições, do Instituto Unibanco, ocorrido na última quinta-feira, 5 de outubro. E não escondeu a emoção ao falar do papel da educação em sua vida. 

“Trouxe a foto de um menino negro vestido com uma indumentária feita com saco de farinha, usando uma camisa com botões tortos. Este menino sou eu. A escola me fez chegar aqui e estar sentado nesta mesa. Meu sonho é que todas as crianças com esse perfil tenham as possibilidades que eu tive em termos de educação.” 

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Valter dividiu a mesa com a psicóloga Cida Bento, fundadora do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), que abordou as ameaças vividas pelos jovens negros, que compõem 61% da população brasileira, e como a violência racial se conecta com a educação. “Hoje, qualquer coisa que nós quisermos fazer nos campos dos ensinos médio, superior e profissionalizante precisa levar em consideração esse sentimento de ameaça, de existir, de caminhar, que abarca a juventude negra.”

Cida se refere à onda de violência na Bahia, que registrou, apenas em setembro, três vezes mais mortes em ações policiais do que o Rio de Janeiro e Recife: 177 pessoas baleadas, 137 mortos e 40 feridos. Desse total, 46% foram atingidas durante as operações. “Quando ouvimos os motivos de os camburões estarem indo para os territórios pobres e negros, dizem que estão indo atrás de suspeitos com ligação à organizações crimiminosas. Mas e os parlamentares que estão mudando a Constituição para não devolver ao estado mais de 700 milhões na PEC [Proposta de Emenda Constitucional] da Anistia, também chamada de PEC da Vergonha? Escrevi sobre isso na minha coluna para o jornal Folha de S.Paulo. Isso precisa ser falado”, pontuou. “Precisamos pensar nesses jovens como alvos de violência do Estado. Não dá para fingir que nada está acontecendo.”

Eleita em 2015 pela revista inglesa The Economist como uma das 50 pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade, Cida ainda ressaltou uma atual janela de oportunidade com a complementação do Vaar (Valor Aluno/Ano por Resultado), que considera a equidade racial. Conforme escreveu Daniel Bento em artigo para o Porvir, o Vaar é um valor transferido pelo governo federal, junto ao Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), para as redes educacionais que promoverem melhoria de gestão e alcançarem resultados de redução de desigualdades raciais e socioeconômicas. “Sabemos que os índices de evasão e mau desempenho escolar são maiores para crianças negras, indígenas e quilombolas. A nova regra possibilita o acesso dos municípios ao recurso só se provarem que diminuíram as desigualdades econômica e de raça, isso é um ponto principal que deveria atravessar todo o financiamento”, afirmou. 

Para Cida, se a mudança não for imediata, a escalada da violência pode ser fatal. “Há um imaginário que sente a população negra como uma voz ameaçadora, isso precisa ser conversado com a sociedade. Somos um país com pouco mais de 500 anos, e quase 400 deles foram marcados pela escravidão negra. Ainda temos uma lógica de funcionamento desse tempo que não foi devidamente trabalhada, marcada nas urnas quando quase metade da população escolheu um governo homofóbico, racista, machista que não foi reeleito. Uma parte de nós ainda funciona daquela maneira. Isso precisa ser levado em conta. Não é possível que o país corra risco de fragilização das suas instituições democráticas.”

Divulgação/Instituto Unibanco Da esq. para a dir.: Ricardo Henriques (superintendente do Instituto Unibanco e mediador da mesa), Valter Silvério (professor da UFSCar), Claudia Costin (presidente do Instituto Singularidades), Cida Bento (diretora do Ceert) e Vitor de Angelo (presidente do Consed, Conselho Nacional de Secretários de Educação).


Propostas para uma nova escola

Entre as transições debatidas no evento – sociais, demográficas, tecnológicas, democráticas e ambientais –, Valter Silvério destacou como o debate sobre a crise climática mostra a necessidade de um novo modelo de escola, e não só para um novo modelo de currículo. 

“Estamos vivendo uma crise ambiental sem precedentes. Como a escola pode discutir a questão da mudança da matriz energética? Isso não é um problema da universidade ou do programa de pós-graduação, e sim um problema de formação das crianças, que entendem muito bem quanto podem gastar de água e podem ensinar, inclusive, suas famílias”, sublinhou. “Quando falamos da guerra da Ucrânia, temos pelo menos outros trinta pontos de guerra no continente africano e na Ásia, conflitos relacionados à questão energética. O modelo do uso de energia que leva à guerra não é um modelo produtivo para a gente pensar uma nova possibilidade para o planeta.”

Sobre essa nova proposta para a escola crítica, plural e prática, Valter acredita que é possível fazer o diagnóstico, mas ainda não se consegue desenvolvê-lo. “Necessariamente, haverá uma mudança no papel do professor e há uma exigência mais visível para a juventude que é considerar seu protagonismo e o papel decisório sobre como será seu futuro”.

Em referência a websérie “Nunca me sonharam”, que retrata a realidade das escolas públicas de ensino médio e discute o valor da educação na voz de jovens, educadores e especialistas, o professor Valter Silvério ressaltou como esse público precisou criar um conjunto de ações para que fosse percebido. “Muito pouca gente foi sonhada com esse modelo tradicional. Temos o grande desafio de sonhar não para as novas gerações, mas junto a elas. Isso me parece o primeiro passo de uma educação que vá não só na direção de um outro tipo de sociedade, de socialização e de sociabilidade, mas também que o pressuposto desse processo seja um outro tipo de cidadania.”

Para tanto, é preciso analisar como essa nova escola tem a ver com o território, com a participação da comunidade e com o reconhecimento das formas comunitárias que não destruíram o planeta, disse, em referência aos saberes ancestrais das comunidades tradicionais. “Contraditoriamente, aquilo que foi considerado empecilho para o desenvolvimento, inclusive pelo último período de negacionismo, grupos indígenas e quilombolas, que são portadores de saberes, talvez tenham a primeira chave de conhecimento para revermos o modelo de sustentabilidade educacional que pode projetar uma outra cidadania global.” 

➡️ Leia também: Como a educação precisa reagir em um país diante de grandes transições

Tecnologia e formação docente

Também participante do debate, Claudia Costin, presidente do Instituto Singularidades e ex-diretora de educação do Banco Mundial, trouxe à tona os impactos da inteligência artificial na educação. “Ela é, simultaneamente, uma bênção e uma maldição. Maldição porque 3 milhões de postos de trabalho vão ser extintos até 2030. E isso traz consequências para a educação”.

Claudia explicou que, ao longo da vida laboral dos alunos atualmente na escola e dos estudantes já no ensino superior, eles terão de se reinventar profissionalmente, mudando de profissão algumas vezes. “Para isso, precisamos de educação, de competências muitos mais complexas, com resolução colaborativa de problemas com criatividade e espaço para competências socioemocionais. A empatia nos leva à indústria do cuidado”, comentou.

Uma questão a ser resolvida, de acordo com a especialista, é o aumento da carga horária do ensino médio. “Como pensar em metodologias ativas e aulas mão na massa despejando conteúdo em poucas horas? Uma escola com sete ou nove horas de ensino integral traz a chance de mais interação com os alunos e a possibilidade de acabar com desigualdades. Há espaço para isso em razão da transição demográfica“, disse, em referência ao atual número de jovens e adultos que trabalham e garantem o crescimento econômico do Brasil. “Mas não é o mundo inteiro que está nessa transição demográfica. A África Subsaariana tem insuficiência de professores. Nós também temos, mas não se compara, porque lá o problema é muito mais grave.” 

Tanto a formação inicial quanto a continuada dos professores precisa ser revista, e os currículos devem contar não só com a técnica, mas com a prática, assegura Claudia. Ela trouxe um dado significativo: entre dez professores, sete são formados a distância. “Esse dado, por si só, não é necessariamente ruim, mas isso tem sido feito para baratear o custo. É uma formação precarizada.” 

Em referência ao antropólogo e educador Darcy Ribeiro (1922-1997), que costumava dizer que a formação de professores na universidade vai formar pesquisadores distantes na prática, Claudia conclui: “Não é desprezar a teoria, mas ela precisa existir em diálogo com a prática. Algo se perdeu nesse processo e é importante ser retomado.” 


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ensino médio, protagonismo jovem

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