Uma base comum para garantir aprendizado a todos
Debate sobre elaboração de documento que defina o que estudantes devem aprender em cada ciclo escolar avança no Brasil
por Carolina Lenoir 14 de agosto de 2014
Um país que espera ter cidadãos capazes de realizar seus projetos de vida e contribuir para o progresso nacional deve garantir que um conjunto de conhecimentos e habilidades essenciais seja aprendido nas diversas etapas da escolarização básica. Mas o que objetivamente os estudantes devem aprender em cada ciclo? No Brasil, apesar de a Constituição Federal e a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) determinarem a criação de uma Base Nacional Comum da Educação, não existe um documento que defina o que deve ser ensinado.
Com apenas algumas sugestões vagas e não obrigatórias, que podem ou não ser adotadas pelas escolas, não há garantia de que todos os alunos irão desenvolver as competências necessárias para o aprimoramento pessoal e profissional. Na prática, o que tem norteado os professores são as matrizes de avaliações externas, como a Prova Brasil e o Enem, e o mercado editorial, por meio dos livros didáticos.
O recém sancionado PNE (Plano Nacional de Educação), que define metas para as políticas de educação na próxima década, criou um ambiente favorável para o avanço desse debate. Para ajudar a fomentar as discussões, a partir de hoje, o Porvir irá publicar uma série de reportagens sobre a BNCE (Base Nacional Comum da Educação), com o objetivo de apresentar os principais pontos que devem nortear a elaboração do documento, abordar os diferentes entendimentos acerca do tema e discutir as experiências de países que passaram por esse processo e que podem servir de parâmetro para o Brasil.
A BCNE está prevista tanto no artigo 210 da Constituição, que determina que “serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e o respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”, quanto no artigo 26 da LDB, que diz que “os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar.”
Segundo Paula Louzano, doutora em política educacional pela Universidade de Harvard e pós-doutoranda no Centro de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas em Educação da Faculdade de Educação da USP, até agora foram estabelecidas apenas as disciplinas que devem ser contempladas no currículo escolar. “No geral, a elaboração dos documentos nos países que já passaram pelo processo começou a partir dessa definição, para que, em seguida, fossem determinados os conteúdos de cada fase escolar. O Brasil, porém, não avançou nessa parte.”
Paula integra um grupo de 40 especialistas que busca inserir o tema na agenda da educação brasileira, mobilizar atores importantes em torno da causa e produzir estudos e pesquisas para subsidiar o debate. De acordo com esse movimento, o objetivo da BNCE é estabelecer expectativas claras e exigentes de aprendizagem nas áreas do conhecimento em cada etapa da escolarização, permitindo que a comunidade escolar se organize para promover esse aprendizado.
Segundo documento divulgado pelo grupo intitulado “Necessidade e construção de uma Base Nacional Comum da Educação”, as definições sobre o que os alunos devem aprender irão contribuir para diminuir as desigualdades educacionais, fomentar a formação inicial e continuada dos professores, evitar que os estudantes sofram rupturas de aprendizagem quando mudarem de escola ou de rede e, por fim, ajudar os pais a entenderem e acompanharem melhor a educação de seus filhos.
Mas a implantação da base nacional comum não é uma unanimidade. Entre os especialistas que têm resistências à elaboração de um documento, uma das principais críticas refere-se ao risco de se restringir a liberdade e a autonomia das redes, escolas e professores. Na proposta debatida pelo grupo favorável à BNCE, a base não será a totalidade dos currículos das escolas, mas parte deles. Isso significa que os conhecimentos e habilidades priorizados devem ser contemplados em todas instituições de ensino, mas elas poderão complementar com conteúdos específicos que atendam às diversidades regionais e às necessidades específicas originadas pelos perfis dos alunos ou pelas opções pedagógicas adotadas. Além disso, a Base Nacional não determinaria como os professores devem ensinar.
Apoio apartidário
A elaboração da Base Nacional Comum da Educação, a partir de um debate que inclua a sociedade em geral, tem encontrado respaldo em representantes de diferentes pontos do espectro político-partidário. Especialistas com atuação no cenário educacional brasileiro e que participam atualmente da elaboração dos planos de governo de alguns candidatos à presidência e aos governos estaduais se mostram otimistas em relação ao avanço do debate.
Para Maria Helena Guimarães de Castro, diretora executiva da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) de São Paulo e coordenadora do programa de educação do candidato à presidência Aécio Neves (PSDB), a ausência de uma Base Nacional é responsável por uma série de desencontros no processo educativo brasileiro. “O mais sério é relacionado à existência de professores em séries subsequentes oferecendo uma mesma disciplina com conteúdos não coordenados entre si. Isso é muito comum, por exemplo, quando crianças passam do quinto ano cursado em uma escola municipal para o sexto ano, realizado numa escola estadual. E milhões de crianças fazem isso no Brasil todo ano.”
Segundo Maria Helena, não se pode esquecer que já existe no Brasil uma experiência importante de implantação de uma base curricular em vários estados e municípios. “Várias iniciativas estaduais, como as de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Ceará, Pernambuco, Espírito Santo, Tocantins e Goiás, entre outras, devem ser consideradas no processo de construção da base nacional. O Brasil não está partindo do zero e as experiências nacionais são muito relevantes para iluminar o processo”, afirma.
Maria Alice Setúbal, presidente do Conselho de Administração do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e coordenadora do programa do PSB à presidência da república*, alerta que a ausência de uma base com especificações permite uma inversão completa do processo de definição das políticas educacionais. “Não temos uma base curricular, mas temos avaliações externas que acabam pautando o conteúdo a ser ensinado nas escolas. As avaliações deveriam, na verdade, verificar se os alunos aprenderam o que deveriam em cada etapa do percurso escolar.”
Para Maria Alice, não será uma tarefa simples criar uma base curricular nacional, mas ajuda o fato de ter havido um processo muito importante para se chegar ao PNE, que amadureceu a sociedade. “Por isso, ela tem que participar dos debates sobre a base. Acredito mais nesse processo participativo, que inclui diversos grupos, do que em uma criação restrita à meia dúzia de especialistas, porque dessa participação vai resultar a conscientização da importância da qualidade da educação. Só assim mudaremos o patamar atual.”
Lucia Couto, ex-coordenadora geral de Ensino Fundamental do Ministério da Educação (MEC) e coordenadora do Grupo de Trabalho de Educação do programa do candidato ao governo do Estado de São Paulo, Alexandre Padilha (PT), concorda que o debate sobre a base curricular entrou na agenda da educação nacional. “Estamos nos dando conta de que o mundo já acordou para essa questão há muito tempo. É difícil haver um consenso, e uma parte da academia teme que as especificações possam engessar a escola e tirar sua liberdade, mas, entre diretores, professores e secretários de Educação que lidam diretamente com os desafios de não se haver uma base comum, a proposta é bem vista.”
De acordo com Lucia, além da questão das avaliações como a Prova Brasil e o Enem definirem atualmente o conteúdo ensinado, também preocupa o fato de os livros didáticos serem, na maior parte dos casos, as principais ferramentas que norteiam a elaboração dos planos de aula nas escolas. “Vemos que o controle atual é do mercado editorial, o que é ruim tanto para alunos e pais, que não sabem de que forma podem acompanhar se o conteúdo é de fato o que deveria ser aprendido, como também para professores, que precisam de um respaldo maior.”
Maria Helena, Maria Alice e Lucia concordam que existem experiências sólidas já desenvolvidas em outros países que podem servir de ensinamentos ao Brasil, principalmente em relação à forma como a sociedade foi envolvida e aos estilos e métodos de desenvolvimento escolhidos. Entre os países que passaram pelo processo de definição de base curricular comum para todo o sistema educacional estão Austrália, África do Sul, Cuba, Chile, Portugal e Coreia do Sul.
Dois estudos recentes – Análise Internacional Comparada de Políticas Curriculares, de Paula Louzano e Pesquisa Benchmark Internacional, de Maximiliano Moder, especialista em educação pela Universidade de Bristol, na Inglaterra – avaliaram os processos realizados por diversos países que definiram, de alguma maneira, o que os alunos precisam aprender. Na próxima matéria dessa série, serão apresentados mais detalhes dos desenhos curriculares desses países e as conclusões dos pesquisadores depois de se debruçarem sobre os documentos de cada sistema educacional.
Para Paula Louzano, fica claro o atraso do Brasil em relação ao que já foi ou está sendo feito internacionalmente. “Ainda que alguns estados e municípios tenham investido nesta especificação por meio de orientações curriculares, estas não se baseiam em um documento nacional claro, como é o caso dos países analisados. Além disso, a diferença na capacidade destes entes federados em produzir estas orientações tem gerado desigualdade no sistema.”
* Maria Alice Setúbal conversou com a reportagem no dia 7 de agosto, antes da morte do candidato Eduardo Campos à presidência da República. Um novo postulante deve ser indicado pelo PSB até o dia 23 de agosto.