Para MEC, desenvolvimento integral entra só na introdução da Base Curricular
Documento que vai subsidiar os debates sobre a Base Nacional Comum Curricular focará nos conteúdos disciplinares, sem aprofundar nas competências para o século 21
por Sergio Pompeu 11 de setembro de 2015
O desenvolvimento integral dos estudantes será abordado apenas no preâmbulo do documento que o Ministério da Educação lançará no dia 16 para subsidiar os debates sobre a BNC (Base Nacional Comum Curricular), texto que vai definir o que os estudantes têm direito a aprender na educação básica. Frustrando expectativas de educadores e especialistas que defendem que a BNC deve contemplar as competências para a vida no século 21, o texto não pretende articular conhecimentos, valores, atitudes e habilidades relacionadas aos processos de aprendizagem e focará na descrição de objetivos de aprendizagem apenas por conteúdos disciplinares.
Para o secretário da Educação Básica do MEC, Manuel Palácios, há um “certo exagero” na mobilização de grupos da sociedade civil e experts em educação para inserir aspectos do desenvolvimento integral no texto final da Base.
“Na abertura do documento já abordamos essa questão”, diz Palácios. “O MEC tem um mandato claro da sociedade para estabelecer o que é relevante em termos de objetivos de aprendizagem em cada etapa da vida escolar e é isso que a comissão de 116 pessoas montada pelo ministério fez.”
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O MEC já divulgou um documento intitulado “Princípios Orientadores da Definição de Objetivos de Aprendizagem nas Áreas de Conhecimento” na BNC. De fato, nele estão listados, entre outros, saberes e habilidades como comunicação e informação; autoestima e respeito mútuo; responsabilidade pela saúde, bem-estar e ambiente; vivência e formação cultural; qualificação para julgamento e ação; experiência e orientação para estudo e trabalho; elaboração de projeto de vida e sociedade; e participação social ativa.
“A escola não é a única instituição responsável por garantir esses direitos, mas tem um papel importante para que eles sejam assegurados aos estudantes”, assinala o documento já divulgado. “Para que possa cumprir este papel, ao longo da educação básica serão mobilizados recursos de todas as áreas de conhecimento e de cada um de seus componentes curriculares, de forma articulada e progressiva, pois em todas as atividades escolares aprende-se a se expressar, conviver, ocupar-se da saúde e do ambiente, localizar-se no tempo e no espaço, desenvolver visão de mundo e apreço pela cultura, associar saberes escolares ao contexto vivido, projetar a própria vida e tomar parte na condução dos destinos sociais.”
Boa parte dos defensores do movimento pelo desenvolvimento integral assinaria embaixo do texto mencionado por Palácios. A discordância reside na desconfiança desses grupos de que, se as competências que extrapolam os conhecimentos cognitivos não forem descritas em pormenores junto com os conteúdos acadêmicos, as competências necessárias para a vida no século 21 ficarão no papel, como um mero conjunto de boas intenções.
O secretário discorda: “Você acha que é preciso escrever uma norma que decomponha, por exemplo, a necessidade de preservar a autoestima? Essa preocupação sempre existiu na escola e sempre vai continuar existindo. Ninguém contesta a relevância dessa questão, tanto que existe uma literatura vastíssima a essa respeito.”
Então, o que teremos no dia 16 é um documento extenso que descreve, ano a ano, os objetivos de aprendizagem que o sistema de ensino tem o dever de proporcionar a cada estudante. Respondendo a críticas de que um texto-base longo pode desestimular o debate, Palácios argumenta que os capítulos são sintéticos, mas o documento precisa tratar desde a educação infantil ao ensino médio, com objetivos de aprendizagem discriminados ano a ano, em todas as disciplinas.
“O que vai ocorrer, naturalmente, é uma apreciação da proposta de acordo com a área de atuação da pessoa interessada”, diz o secretário. “Quem lida com educação infantil vai se ater mais a isso, quem trabalha no ensino médio vai olhar esse capítulo com mais atenção.”
Diretora geral da Associação Cidade Escola Aprendiz, Natacha Costa discorda do modelo adotado pelo MEC. Para ela, o ponto de partida não deveriam ser os conteúdos pedagógicos, mas o tipo de aluno que se quer formar. “Deveríamos pensar o que a educação precisa oferecer para o sujeito que vai construir o país que queremos no futuro”, diz.
Segundo Natacha, a compartimentalização por séries e disciplinas é o oposto do que se está discutindo no mundo. “O debate gira muito mais em torno de áreas de conhecimento e competências. Se for fatiada em compartimentos, a Base será a referência mais retrógrada e ultrapassada que poderia existir”, critica. “Quando você cria uma lista de conteúdos, a mensagem que está passando para o professor é: este é o meu trabalho, dar essa lista, e não formar indivíduos autônomos, criativos, com participação ativa na sociedade.”
Experiências internacionais
Palestrante no fim de agosto do Transformar 2015, evento co-organizado pelo Porvir/Inspirare, a canadense Jennifer Adams, já participou de inúmeras atualizações do currículo da Província de Ontário (no Canadá, cada província tem autonomia integral para gerir seu sistema de educação), onde é diretora de Educação do distrito de Ottawa-Carleston.
Em Ontário, desde 2009 a Lei 177 equipara performance e bem-estar dos estudantes (no contexto de educação não apenas pedagógica, mas para a vida) como objetivos a serem perseguidos pelo sistema educacional. Desde então, entre os resultados que o distrito de Jennifer considera ter atingido estão: atitude positiva em relação à escola: bom relacionamento com colegas, professores e funcionários; perseverança; satisfação consigo mesmo e com as experiências vividas na escola. A avaliação não se resume a aspectos mais subjetivos, ainda que amparados em pesquisas de opinião periódicas: os alunos de Ottawa-Carleston têm superado a performance dos colegas de outros distritos de Ontário em 5%, em média, por ano.
Jennifer credita parte desse sucesso à dinâmica constante de reavaliação do currículo, realizada a cada sete anos – o que não impede a revisão anual de tópicos específicos. “Fazemos consultas a associações de professores, a pais, experts e até a pessoas representativas da comunidade de negócios. Mas a palavra final cabe ao governo da província”, explica. “Até porque, dependendo da área há muitas discordâncias, o processo de debate é mais acalorado. O ensino de matemática é um exemplo típico disto.”
E como garantir que as decisões tomadas pelo Ministério da Educação de Ontário cheguem de fato às salas de aula de Ottawa? “Fazemos um levantamento constante das práticas pedagógicas e instrucionais mais bem-sucedidas e damos todo o suporte para as escolas adotarem essas experiências.”
Na apresentação que fez no Transformar 2015, a diretora (cargo equivalente ao de secretária) de Educação de Helsinque, Marjo Killonen, falou da recente reforma realizada no ensino finlandês, referência mundial de qualidade. O ponto de partida tem muito mais afinidade com o discurso de Natacha do que com o de Palácios. A Finlândia se propôs a discutir (engajando professores, alunos, pais e gestores) a seguinte questão: para que serve a escola? Desse debate saiu a ênfase em competências como criatividade, colaboração, flexibilidade, capacidade de associar conteúdos de diversas disciplinas e até “coragem”.
Em entrevista ao Porvir, Marjo disse que o processo de discussão da reforma, que levou cerca de dois anos, foi relativamente tranquilo. “Havia um entendimento mútuo de que, em lugar de memorizar informações e conteúdos isolados de diferentes disciplinas, deveríamos trabalhar competências mais holísticas com nossos estudantes”, diz. “A Finlândia também fez sua própria interpretação dos saberes necessários para o futuro. Estou convencida de que definimos competências cruciais para a sociedade e para os indivíduos, que servem ao bem-estar comum.”
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Marjo citou na entrevista os aspectos que considera mais relevantes para formar, de fato, um cidadão do século 21. “São as competências sociais e colaborativas; pensamento crítico; criatividade; e o chamado pensamento interdisciplinar. Também acho importante incluir nesse conjunto a capacidade de cuidar de si e dos outros e o empreendedorismo”, disse. Para a finlandesa, não é difícil enfatizar a importância desses saberes no cotidiano de um modo que faça sentido para a comunidade escolar. “Mas é claro que num modelo mais tradicional de ensino há pouco espaço de manobra para trabalhar essas questões. Professores e escolas precisam de ferramentas e modelos práticos para desenvolvê-las.”
Indagada se as competências para a vida no século 21 deveriam ter um papel central na BNC brasileira, Marjo respondeu enfaticamente que sim. “Eu sugeriria a vocês construir o currículo a partir de competências holísticas. E também descrever como elas devem ser trabalhadas das séries iniciais até o fim do ensino básico, como um processo contínuo”, disse. Mas ela fez duas advertências. “Não é recomendável dividir os estudantes estritamente por faixa etária, todo o trabalho precisa estar conectado ao estágio de desenvolvimento de cada aluno. E, embora seja desejável definir diretrizes gerais e concretas, é preciso dar liberdade para as escolas implementarem o projeto de acordo com seu histórico, com a sua cultura.”
Apesar de exemplos como o dos currículos da Finlândia e de Ontário, que enfatizam a necessidade de ensinar competências socioemocionais e outros saberes conectados ao século 21, o secretário Palácios rechaça a análise de que a BNC pode nascer já desatualizada. “Outras pessoas que participaram da elaboração do texto-base pesquisaram mais a fundo o trabalho desenvolvido em outros países, mas no que eu vi não encontrei grandes discrepâncias. Não estamos trabalhando no vazio, começando do zero”, diz. “Estamos dialogando com atores e elementos que já estão aí: professores que trabalham todos os dias nas escolas; pesquisadores de alto nível que, ao contrário do que muitos querem fazer parecer, têm um intercâmbio muito próximo com colegas do exterior; e um currículo que já é utilizado, independentemente de estar traduzido ou não como norma.”