Português como língua de acolhimento garante o direito à educação - PORVIR
Crédito: Divulgação/Secretaria da Educação do Estado de São Paulo/Diogo Moreira/A2img

Inovações em Educação

Português como língua de acolhimento garante o direito à educação

Além de acolher migrantes e refugiados, ensiná-los a usar o idioma para além do uso gramatical é uma prática que atua no combate ao racismo e à xenofobia

por Ruam Oliveira ilustração relógio 20 de junho de 2023

Muitos são os motivos que levam um indivíduo a migrar. Desde a busca por melhores condições de trabalho e moradia, até a fuga de conflitos armados e outras situações de violência, o que os coloca em situação de refúgio.

Ao chegar a um país, uma das principais barreiras que o estrangeiro enfrenta é o idioma. Mais do que saber traduzir palavras, compreender os significados demanda muito esforço e apoio, inclusive da escola. 

Em uma busca para suprir essa demanda e propor uma abordagem mais ampla do ensino de língua portuguesa para estrangeiros, surgiu o Português como Língua de Acolhimento, que atende pela sigla PLAC, reconhecido no Brasil há mais de uma década. 

A proposta considera o trabalho conjunto entre professores, professoras e estudantes e busca atender necessidades de pessoas não falantes da língua portuguesa para além do uso gramatical do idioma, capacitando-as para usá-lo em diferentes áreas da vida. 

“Trata-se de uma língua que acolhe o migrante, ensina e pensa o idioma como uma ferramenta de inserção social”, afirma Ana Katy, coordenadora do CELP (Centro de Estudos de Línguas Paulistano) da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. 

Acessar o idioma possibilita que migrantes garantam direitos como educação, saúde e moradia, entre outros. “Quando falo em português como língua de acolhimento, estou pensando muito no processo migratório. E isso implica em pensar no aprendiz que vivenciou isso de maneira forçada e que está em outro contexto, outra cultura e que tem o direito de ser acolhido”, explica Ana. Por isso, a abordagem é diferente de como ensinar um diplomata ou a alguém que veio estudar ou está a passeio. 

Estudante aponta para caderno com imagens de mulheres importantes da história
Crédito: Marcos Santos/USP Imagens Estudante do Cieja Perus aponta para a capa de um caderno caderno com imagens de mulheres importantes da história

Diferentes povos, uma abordagem

É preciso preparação e formação adequadas para ensinar português aos migrantes internacionais. Em São Paulo, uma referência pública no assunto é o Cieja (Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos) de Perus, que fica na zona noroeste da capital. 

Cristiane Maria Coutinho Fialho, professora de português no Cieja Perus, contextualiza que o público da EJA é formado por estudantes-trabalhadores. E destaca: para além da proposta de acolhimento, essa abordagem visa ensinar o idioma para a vida, em um sentido também muito prático.

“Quando chegamos naquele território, já havia uma comunidade muito grande de migrantes internacionais, majoritariamente haitianos, que não falavam a língua portuguesa. Muitos estavam procurando aprender português não só para saber falar, mas também para escrever ou conseguir ler um contrato de trabalho”, relembra.

Devido à alta procura, a escola precisou fazer uma readequação curricular pensando nas diferentes culturas que se apresentavam ali. Além de haitianos, o Cieja também recebe estudantes afegãos, bolivianos e até mesmo migrantes indígenas guaranis que procuram pelo ensino de português. 

Segundo dados do NEER (Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais) da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, a DRE (Diretoria Regional de Educação) da Penha possui 2098 estudantes de outros países, o maior número entre as DRE do município. A DRE de Jaçanã / Tremembé (1553) e Pirituba / Jaraguá (1076) são as outras duas que apresentam maior população migrante entre os estudantes. 

Grande parte deste número, ainda segundo dados do NEER, está matriculada em escolas de ensino fundamental e ensino infantil. Apesar disso, quando se observa o número de migrantes por unidade educacional, o Cieja Perus concentra o maior contingente (782 matrículas). 

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Formação dos professores

Renata Ramos Rodrigues, coordenadora do Programa de Ensino de Português no Instituto Adus, afirma que, com o aumento dos fluxos imigratórios no Brasil, uma política pública dedicada ao PLAC seria muito útil e bem-vinda. A organização é voltada à reintegração de refugiados em diferentes áreas, como atendimento jurídico, mercado de trabalho e ensino de idiomas.

“O Brasil é um país de destino para muitas pessoas, inclusive porque tem uma legislação migratória considerada muito moderna. Mas a gente tem que falar da questão efetivamente da integração e inserção dessas pessoas no dia a dia. Quando olhamos para uma política linguística no país, ela é quase inexistente”, ressalta.

Ainda não há ações unificadas no país que possam olhar, por exemplo, para o ensino em instituições governamentais ou mesmo editais que possam atrair professores que queiram se dedicar a esta área. 

Estudante do 5º ano da Escola Municipal Doutor Pedrosa, Genesis Andrelina Reyes, refugiada da Venezuela, escreve em um caderno. A foto é de 2019
Crédito: Valdecir Galor/SMCS/Prefeitura de Curitiba Estudante venezuelana Genesis Andrelina Reyes, refugiada da Venezuela

Em São Paulo, porém, há uma iniciativa que se debruça sobre essa questão, chamada “Portas Abertas – Português para Imigrantes”, uma formação promovida pelo NEER para professores da rede pública municipal. O projeto é realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. Professores e professoras que participam podem, posteriormente, organizar uma turma de 15 a 20 estudantes para o ensino de português, com aulas que geralmente ocorrem no contraturno. 

Apesar das nuances nessa temática, os cursos de licenciaturas deveriam olhar com mais atenção para o PLAC, sugere Renata. “Uma forma de encaixar um início de conversa seria uma disciplina para tratar dessas dimensões de ensino, que são diversas. Dentro desse grande guarda-chuva, explorar as diferentes abordagens.” 

A questão é recente no âmbito acadêmico, principalmente no Brasil, e que talvez por isso as licenciaturas ainda não tenham tido tanta abertura para o tema, comenta Renata. “É preciso olhar para o assunto, a fim de apresentá-lo para mais pessoas e conseguir mais atuação no segmento.”

Contraponto ao termo “acolhimento”
O termo “Português como Língua de Acolhimento” (PLAC) tem origem em Portugal, no início dos anos 2000. Foi apresentado pela professora Maria Helena Ançã e voltado para estudantes migrantes de escolas portuguesas. Ana Katy faz algumas ponderações quanto ao termo, e indica que ele chegou ao Brasil sem as adaptações necessárias. 

Cristiane também apresenta um contraponto. Para a docente, o termo “acolhimento”não compreende a totalidade da abordagem e pode cair em um significado de prepotência sobre os migrantes internacionais que chegam ao Brasil. 

“Sei que este foi o termo cunhado e que está em uso na literatura, mas entendo que ele também traz um viés colonizador”, argumenta. Como exemplo, ela aponta que muitos estudantes haitianos têm o português como uma terceira ou quarta língua, tendo chegado ao país sabendo falar criolo haitiano, francês e às vezes até espanhol. 

Ambas as professoras compreendem que apesar de não ser o melhor termo, a prática é relevante e necessária.

Ações interculturais 

Ana Katy ressalta que essa é uma ação intercultural. Ela cita que em São Paulo, por exemplo, é comum ouvir diversos idiomas pelas ruas. E esse tipo de vivência multicultural exige que se aprenda a conviver com o outro, como uma espécie de competência cultural.

Doutoranda em Educação, Linguagem e Psicologia pela USP (Universidade de São Paulo), Ana atualmente dedica seus estudos à necessidade de olhar para crianças e adolescentes que experimentam processos migratórios internacionais por vezes muito difíceis. 

“A criança precisa ter uma competência cultural para que possa viver bem, para evitar xenofobia, discriminação e todos os outros tipos de preconceito que acontecem”, afirma Ana. A abordagem, portanto, também influencia diretamente em outros aspectos, contribuindo na perspectiva de uma educação de fato inclusiva e antirracista. 

“Se eu não forneço, por exemplo, o ensino de língua para uma criança que não fala um determinado idioma, ela não vai acompanhar os outros. Então, vai acontecer o que muitas vezes ocorre com crianças com deficiência ou dificuldades na fala, às vezes taxadas de tímidas ou que não sabem se colocar”, exemplifica. 

Atividade com retalhos e bilhetes no Cieja Perus
Crédito: Marcos Santos/USP Imagens Atividade com retalhos e bilhetes no Cieja Perus

Migração e políticas públicas

Deste ponto de vista, essa abordagem também representa a garantia do direito à educação. Carolinne Mendes da Silva, professora de história, atualmente à frente do NEER (Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais) da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, acredita que há um impacto direto na vida e na trajetória das pessoas ter um olhar específico e dedicado às questões dos povos migrantes. 

Ela aponta que, diferentemente de outros temas abordados no núcleo que faz parte, há ainda a necessidade de uma ação mais específica em termos de políticas públicas para migrantes. 

Carolinne cita como exemplo as leis 10.639/03 e a 11.645/08, que instituem a obrigatoriedade do ensino de história e cultura dos povos africanos, afro-brasileiros e indígenas nos currículos escolares. 

“Em relação à população imigrante, nós temos a lei municipal 16.478, que fala da garantia do acesso, permanência e terminalidade na educação, mas que é uma legislação mais ampla no que se refere aos serviços públicos da cidade de São Paulo e que não específica tanto sobre a educação”, diz. 

A lei 16.478 foi promulgada em 2016, conhecida como “Política Municipal para a População Migrante”, traz em seus artigos a garantia de acesso a serviços públicos, direitos sociais, fomento à participação social e igualdade de direitos e oportunidades, por exemplo.

O artigo 7º da lei fala sobre garantia de acesso à assistência social, mercado de trabalho, saúde e educação. O inciso IV pontua que é dado a “todas as crianças, adolescentes, jovens e pessoas adultas imigrantes o direito à educação na rede de ensino público municipal, por meio do seu acesso, permanência e terminalidade”. É a única vez que o termo educação é citado.

O CNE (Conselho Nacional de Educação) aprovou em 2020 uma medida que garante a crianças e adolescentes migrantes, refugiadas, apátridas e solicitantes de refúgio o direito de se matricularem nas redes públicas de ensino. A portaria prevê, inclusive, que não há a necessidade de apresentação de documentação que comprove escolaridade anterior.

Mais recentemente, o Projeto de Lei 1117/22, ainda em tramitação, regulamenta esse direito. “O Conselho Nacional da Educação, em 2020, garantiu o direito à educação dos estudantes estrangeiros. Entretanto, o caráter mais frágil de normas regulamentares justifica que sejam explicitadas algumas garantias em lei”, afirma a deputada Dorinha Seabra Rezende (União-TO), relatora da proposta

Mulher venezuelana segura documento de identificação
Crédito: Marcelo Casal Jr./Agência Brasil

Instrumento de combate ao racismo 

No curso Portas Abertas, Carolinne destaca que geralmente quem faz a formação são educadores interessados pela causa e que desejam abrir turmas com essa abordagem. Ter esse tipo de formação é também uma maneira de fazer com que a legislação vigente seja cumprida e acompanhada mais de perto, comenta. Afinal, questões que envolvem a população migrante internacional costumam ser entendidas, por exemplo, como bullying, explica.

“Às vezes perguntamos às equipes que estão nas escolas se já teve algum caso de xenofobia, ou racismo contra os imigrantes, e muitas vezes as pessoas falam que não, só algumas brincadeiras”, conta. Por isso o olhar mais aprofundado para esse tipo de relato pode evidenciar situações que estão na esfera do racismo e em contexto xenofóbico. 

“As populações que vão sofrer maior discriminação dificilmente serão as dos imigrantes brancos de origem europeia, que estão em quantidade muito menor na rede. Vão ser em sua maioria imigrantes negros de países africanos ou do Haiti, que é uma das nacionalidades mais presentes. Vão ser pessoas que trazem no seu fenótipo características indígenas porque vem de países latino-americanos”, comenta a coordenadora do NEER. 

Reconhecer quando isso acontece e pensar em estratégias que sejam transformadoras são passos importantes, que fomentam o combate à discriminação entre os próprios estudantes e em toda a comunidade escolar.

Materiais de apoio para os professores
– Recentemente, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo lançou o “Currículo da Cidade: Povos Migrantes: orientações pedagógicas”, que traz um direcionamento sobre como desenvolver atividades e pensar a aula de acordo com o acolhimento aos estudantes migrantes.

– Além disso, o portal do NEER traz dados e ferramentas como fichas de matrículas traduzidas, placas indicativas e outras propostas de formação com um olhar para a educação inclusiva e antirracista.

– Também estão disponíveis para download os cadernos do projeto Portas Abertas, destinado ao ensino público e gratuito de português para imigrantes.
Portas Abertas – Português para Imigrantes – Caderno Básico

Portas Abertas – Português para Imigrantes – Caderno Intermediário

Portas Abertas – Português para Imigrantes – Caderno Avançado

– Na tese “Deslocamentos e fronteiras: um estudo etnomatemático com haitianos em uma escola pública de São Paulo”, da Faculdade de Educação da USP, a educadora Marilia Prado, que atua como professora de matemática em instituições privadas, analisa o contexto do ensino de português para haitianos no Cieja Perus. As fotos que ilustram este artigo, da USP imagens, foram publicadas no texto do Jornal da USP que apresenta a pesquisa.


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ensino fundamental, ensino médio, socioemocionais

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