Como transformar a escola em um ambiente seguro para estudantes trans?
Professores compartilham estratégias e recursos para promover a inclusão e o respeito à diversidade de gênero em sala de aula
por Beatriz Cavallin / Ana Luísa D'Maschio 29 de janeiro de 2025
Pensar a existência de crianças e adolescentes trans no ambiente educacional, bem como integrantes do corpo docente, é uma tarefa que precisa ser realizada diariamente. Isso se torna ainda mais urgente em um país que, ano após ano, registra números altos de violência contra pessoas trans.
De acordo com dados recém-divulgados pelo “Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2024”, organizado pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) em 2024 foram assassinadas 122 pessoas trans e travestis no Brasil.
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Quando consideramos a faixa etária dessas vítimas – jovens trans entre 15 e 29 anos têm sido os alvos mais recorrentes neste cenário – a notícia se torna ainda mais assustadora. As chances de uma pessoa trans de até 29 anos ser assassinada, em média, chega a ser cinco vezes maior do que em outras faixas etárias.
Os registros de assassinatos de pessoas trans menores de 18 anos ao longo dos últimos anos também revelam uma tendência alarmante. Entre 2017 e 2024, a idade da vítima mais nova variou entre 13 e 18 anos.
A violência contra jovens trans em plena idade escolar torna cada vez mais necessária a criação de uma escola segura e acolhedora, o que hoje, infelizmente, ainda não acontece.
No webinário “Questão de Genero é Questão de Escola”, realizado pelo Porvir em 2023, a pedagoga Paula Beatriz, mulher transsexual, ressaltou justamente esse ponto: “É importante lembrar que a escola precisa ser a promotora fundamental desse processo de formação, orientação e cuidado dessas pessoas porque, afinal, somos humanas.”
Bullying e outra ameaças na escola contra estudantes trans
O cenário não é novo. A pesquisa “Vivências Reais de Crianças e Adolescentes Transgêneros dentro do Sistema Educacional Brasileiro”, realizada em 2021 pelo Grupo Dignidade com o apoio de outras organizações e coletivos que estudam gênero, já alertava para dados preocupantes sobre a realidade dessas crianças e adolescentes nas escolas.
O estudo contou com a participação de 120 famílias de 62 cidades, entre capitais e municípios do interior, abrangendo 17 estados de todas as regiões do Brasil.
Das famílias entrevistadas, 93 relataram que sua criança ou adolescente trans já foi vítima de bullying na escola. Entre os principais tipos de violência sofridos, destacam-se:
- Agressão emocional: descaso com a presença do estudante, ausência de interação, exclusão de eventos sociais, olhares e cochichos.
- Agressões verbais: insultos e apelidos transfóbicos.
- Agressões físico-verbais: ameaças e intimidação.
- Ciberbullying: assédio nas redes sociais.
Ao considerar apenas os adultos identificados como agentes de bullying, é possível observar que a maior parte (65%), corresponde a profissionais das instituições educacionais, enquanto 35% são familiares de outros estudantes.
“Pense na dor emocional que esse aluno carrega. Em primeiro lugar de se entender enquanto pessoa trans, porque ainda hoje somos vistos como não pertencentes, ainda somos tratados como anormais, ainda há toda uma sociedade atacando, condenando e fazendo piadas chulas a respeito da nossa existência”, lamenta Paula Beatriz.
Caminhos para o acolhimento de estudantes trans
A identidade de gênero é protegida pelas leis dos direitos humanos e sua discriminação é proibida. O tema, portanto, assim como as demais causas humanitárias, deve ser trabalhado desde a educação infantil, sugere a pedagoga. “É preciso deixar as crianças serem crianças, incentivar a liberdade para escolher como querem interagir entre elas, quais brincadeiras querem fazer e como querem se colocar para a sociedade”, comenta.
Sara Wagner York compartilha o mesmo pensamento de Paula Beatriz. Professora do ensino básico e da da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), Sara costuma se apresentar como “pessoa com deficiência visual, avó e travesti da/na educação”. Especialista em gênero e sexualidade e ativista pelos direitos da população LGBTQIAPN+, ela foi a primeira aluna trans a obter o título de mestre em educação na UERJ.
No Brasil, pelo menos 9 mil estudantes trans estão matriculados em escolas públicas das redes estaduais de ensino, informa o “Registro Nacional de Mortes de Pessoas Trans no Brasil em 2024: da Expectativa de Morte a um Olhar para a Presença Viva de Estudantes Trans na Educação Básica Brasileira”, da Rede Trans Brasil.
Sara ressalta tanto os desafios quanto a importância da educação para as pessoas trans matriculadas e para quem ainda está fora das salas de aula. “A construção de um ambiente inclusivo nas escolas é um passo importante para garantir que todos os alunos se sintam respeitados e valorizados, independentemente de sua identidade de gênero.”
Estratégias para promover a inclusão de estudantes trans na escola
Sara sugere estratégias fundamentais para abordar a diversidade de gênero de forma educativa e empática dentro da escola:
- Educação e sensibilização: comece a aula com uma introdução sobre a diversidade de gênero, explicando o que significa ser trans e a importância do respeito às identidades de gênero. Isso ajuda a quebrar tabus e ampliar o entendimento dos alunos sobre a questão.
- Uso de linguagem inclusiva: é essencial usar uma linguagem que respeite as identidades de gênero dos alunos. Perguntar como os alunos preferem ser chamados e incentivar a turma a fazer o mesmo contribui para um ambiente mais acolhedor.
- Discussão de direitos: explique os direitos básicos garantidos a todas as pessoas , incluindo o direito de ser quem são. Use exemplos de figuras públicas trans que contribuíram positivamente para a sociedade, ajudando a mostrar a importância de respeitar as identidades de gênero.
- Atividades interativas: incentive a empatia por meio de debates, rodas de conversa ou projetos em grupo, permitindo que os alunos explorem diferentes perspectivas sobre identidade de gênero. Essas atividades ajudam a desenvolver um olhar mais inclusivo e compreensivo.
- Recursos e apoio: disponibilize materiais de leitura e outros recursos educativos que abordem a diversidade de gênero. Criar um ambiente seguro para que os alunos façam perguntas e compartilhem experiências também é importante para fortalecer a inclusão.
A eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos reacendeu preocupações sobre o impacto das políticas conservadoras na educação em direitos humanos, como o Porvir noticiou recentemente. O ex-presidente norte-americano já declarou ser contra políticas de diversidade e defende a visão binária de gênero, limitando-o a “masculino” e “feminino”.
Sobre esse contexto, Sara pede cautela. “Figuras como Trump, Milei e Bolsonaro, quando estão no poder, muitas vezes buscam espalhar o pânico moral. Mas, ao contrário, é fundamental manter-se atento aos seus direitos e não entrar em pânico.”
“Viver é um ato de resistência, e a luta pode ser cheia de alegrias e orgulhos. A construção de um ambiente inclusivo nas escolas é um passo importante para garantir que todos os alunos se sintam respeitados e valorizados, independentemente de sua identidade de gênero”, conclui.
Referências para a sala de aula
Para educadores que nunca tiveram contato com a temática da diversidade de gênero, começar a estudar pode ser um desafio, mas é um processo necessário e acessível.
“Comece a seguir os grupos e coletivos LGBTQIAPN+, passe a consumir as pesquisas, manifestos e o que estão produzindo na luta. Aproxime-se da arte e cultura LGBTQIAPN+, dos filmes, livros e músicas que permeiam essa temática. É uma forma de começar a ter esse deslocamento para as questões de gênero”, aconselha Lucas Dantas, ativista LGBTQIAPN+, professore de Gênero e Sexualidade no Instituto Singularidades e pesquisadore do movimento LGBTQIAPN+ latino-americano, gênero e sexualidade na educação, não binariedade e transcestralidades.
A pedido do Porvir, Lucas montou uma lista de referências trans para pensar a educação, complementada pelas indicações de Sara York e da equipe do Porvir. Confira!
Pesquisas e artigos acadêmicos
- Mapeamento educacional das transmasculinidades no Brasil (IBRAT): estudo sobre a vivência de pessoas transmasculinas no sistema educacional brasileiro. Aborda os obstáculos enfrentados desde o ensino básico até o superior, incluindo transfobia, apagamento das identidades e barreiras de acesso e permanência. (Indicado por Lucas Dantas)
- “Educação (tr)ancestral e contra-colonial – um diálogo entre dois corpos trans docentes”, de Lucas Dantas e Mari Costa de Chirico: reflexões sobre a experiência de dois corpos trans que ocupam que ocupam lugares distintos nos sistemas educacionais da cidade de São Paulo, entre a perspectiva de quem ensina na educação básica e de quem ensina no ensino superior.(Indicado por Lucas Dantas)
- “Intersexo: entre a educação e o direito de ser”: análise sobre a intersexualidade e a forma como o sistema educacional pode reforçar ou desconstruir padrões binários. (Indicado por Sara York)
- “Tia, você é homem? Trans da/na educação: des(a)fiando e ocupando os ‘cistemas’ de pós-graduação”: dissertação que discute o impacto da presença de pessoas trans nos programas de pós-graduação e a importância das cotas trans/travestis. (Indicado por Sara York)
Livros infantis
- “Leca”, de Letícia Nascimento: história de uma criança identificada como menino, mas que desafia convenções de gênero ao preferir usar vestidos, trazendo reflexões sobre identidade e aceitação. (Indicado por Lucas Dantas)
- “O sol que virou lua”, de Juno Cebola: no planeta de sóis e luas, nem todos eram felizes com a forma que tinham. É o caso de Sol, um ser que descobre sua verdadeira identidade ao perceber que o universo é diverso. (Indicado por Lucas Dantas)
- “Julian é uma sereia”, de Jessica Love (traduzido por Bruna Beber): delicada história sobre um menino negro que se inspira em sereias e encontra apoio na avó para se expressar livremente. O livro ganhou uma série de prêmios, entre eles a categoria “Opera Prima” (Obra de Estreia) da Feira Internacional do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha. (Indicado por Ana Luísa D’Maschio, subeditora do Porvir)
- “Monstro Rosa”, de Olga de Dios: Monstro rosa é uma criatura que nasceu em um lugar onde tudo é preto e branco, diferente dele. Ao decidir partir em busca de um novo lar, faz novos amigos e descobertas que ensinam ao leitor o significado de pertencimento. (Indicado por Beatriz Cavallin, coordenadora de comunidades do Porvir)
Filmes
- “Valentina”, de Cássio Pereira dos Santos (disponível na Netflix): história de uma adolescente trans de 17 anos que enfrenta desafios ao tentar se matricular em uma escola com seu nome social. (Indicado por Lucas Dantas)
Livros e mídias
- “Pedagogias das Travestilidades”, de Maria Clara Araújo: livro que documenta a luta do movimento de travestis e mulheres transexuais para garantir direitos sociais e políticos. (Indicado por Lucas Dantas e Frank Ferreira, designer da Agência Soluções Porvir)
- Transfeminismo, de Letícia Ribeiro: A autora aborda os conceitos de gênero, transgeneridade, mulheridade, feminilidade e feminismo, ressaltando as diversas existências que não necessariamente se encaixam na organização binária e cisgênera do mundo. (Indicado por Frank Ferreira, da Agência de Soluções Porvir)
- Entrevista com Paula Beatriz: pedagoga trans com vasta experiência na educação pública, responsável por iniciativas de inclusão de alunos trans nas escolas. (Indicado por Lucas Dantas)
- Coletivo Transgente: grupo formado por adolescentes trans que lutam por infâncias e juventudes trans. (Indicado por Lucas Dantas)
- Programa “Travesti” (Brasil 247): conduzido por Sara York, o programa aborda temas políticos e sociais relacionados à comunidade LGBTQIAPN+. (Indicado por Sara York)
- Artigo “Linguagem inclusiva e linguagem neutra: entenda a diferença” (Politize!): explicação sobre a distinção entre linguagem inclusiva e linguagem neutra e seu impacto na comunicação. (Indicado por Ana Luísa D’Maschio, subeditora do Porvir)