“É preciso ‘desescolarizar’ dispositivos móveis” - PORVIR

Inovações em Educação

“É preciso ‘desescolarizar’ dispositivos móveis”

Cientista fala sobre lições que aprendeu na África e no Brasil e avalia caminhos para uso da tecnologia na educação no país

por Giulliana Bianconi ilustração relógio 19 de junho de 2013

As escolas públicas brasileiras têm de lidar com tecnologias em sala de aula e a bola da vez é a entrega de tablets a professores. A previsão, segundo o MEC, é que a maior parte dos aparelhos produzidos após a licitação, cerca de 650 mil, seja direcionada a professores ainda neste ano. Somente no fim do mês passado, foram entregues aos educadores do Paraná 32 mil aparelhos; no Distrito Federal foram distribuídas três mil unidades. Com mais esta tecnologia no contexto da escola, que chega depois dos laptops do programa UCA (Um Computador por Aluno), uma das perguntas que se faz é: o que a escola, os alunos e a sociedade podem ganhar com isso?

Há os otimistas e os nem tanto. O cientista Juliano Bittencourt faz parte do primeiro grupo. Não se apega aos tablets apenas, mas à tecnologia num conceito amplo e a sua experiência em projetos educacionais no Brasil e no exterior para dizer que “é possível construir um modelo de uso das tecnologias que tenha grande impacto na educação do Brasil”.

crédito ecco / Fotolia.com

Ele, que acreditava que as pesquisas sobre Inteligência Artificial seriam o seu futuro quando ingressou no curso de Ciência da Computação na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), desviou da formação maciçamente técnica e emendou, após a graduação, um mestrado em educação. Filho de professores, já tinha portanto familiaridade com o universo que decidira investigar no início desta década. Em 2007 já estava em Ruanda, na África, formando professores para o trabalho com laptops em salas de aula pelo programa OLPC (One Laptop per Child).

Em conversa ao Porvir, Bittencourt, que hoje mora em Porto Alegre, e atua como consultor para projetos educacionais que exigem conhecimento técnico e teórico e como pesquisador sazonal na UFRGS, fala sobre conceitos e lições que aprendeu na África e no Brasil, e avalia criticamente caminhos para o uso dos dispositivos móveis.

Há algum aspecto comum desses dois momentos – em Ruanda depois no projeto piloto do programa Um Computador por Aluno, em POA – que você destaque como bastante relevante para o trabalho com dispositivos móveis na educação?
Tanto em Porto Alegre quanto em Ruanda, o laptop que usamos era o XO, que é uma máquina portátil, leve para as crianças, e isso foi estrategicamente pensado. Era uma máquina para cada criança e cada uma era portadora do seu. Levava e trazia para casa, usava onde queria, e não apenas na escola. Isso “desescolariza” a ferramenta, amplia as possibilidades de uso. Como “proprietária” daquele dispositivo, a criança também se torna imune às exigências do currículo. Isso é bastante importante, inclusive porque temos que lembrar que por mais que tenhamos muitos bons professores, também temos os professores ruins, como em toda a profissão, e a criança pode ir além do que esse professor estabelece. Se ela adora dinossauros, ela vai pesquisá-los, vai se interessar, mesmo que o professor não fale sobre isso em sala, não estimule a curiosidade.

Esse aprendizado, digamos, estendido pela própria criança, foi observado por vocês pesquisadores em algum dos casos?
Com certeza. Na escola estadual Luciana de Abreu, onde o trabalho foi coordenado pelo Laboratório de Estudos Cognitivos/UFRGS, observamos que uma mudança de cultura é possível, e que o principal caminho para isso são as crianças, sempre muito mais abertas que os professores a novidades, a usar a tecnologia de forma aberta. É comum a gente querer colocar nos professores a balança do sucesso e do fracasso dos projetos que contemplam as tecnologias digitais, mas precisamos ser muito mais inteligentes no tipo de demanda que se coloca sobre os professores e na forma como os suportamos nessa formação. Em Ruanda, por exemplo, em algum momento percebemos que seria mais eficaz se a formação dos professores fosse feita já com a presença de alunos, e assim fizemos. Os professores passaram a interagir muito melhor com a proposta da formação.

Você tem alguma opinião sobre caminhos possíveis?
O trabalho a ser feito é muito mais sobre cultura de aprendizagem e muito menos de entrega da tecnologia. Muitas vezes se entende projetos de tecnologia na educação como incremento, mas estamos, na verdade, num momento de ruptura. A formação dos professores exige a recompreensão do que se está querendo atingir. Um projeto para o Brasil nunca vai ser realizado em um ano por tudo isso: pelas proporções, pela falta de infraestrutura em alguns lugares. Vai demorar 10 anos? Mas qual experiência terá sido concretizada após esses 10 anos? Esse é o desafio maior da formação. Até porque a formação não é uma questão que se esgota. Ela é necessária hoje e será necessária sempre.

E você avalia que essa discussão sobre a qualidade da formação está em evolução no Brasil?
Sim, a discussão existe e a necessidade de uma escola diferente, com professores bem formados para a cultura digital é um consenso que está amadurecendo. Não somente no Brasil, mas no mundo. O exemplo do Uruguai é muito bem sucedido. Com o Plano Ceibal, eles entregaram um laptop para cada aluno e para cada professor do ensino fundamental do país, investiram em formação levando em conta ideias alinhadas ao que também defendemos no trabalho realizado na escola Luciana de Abreu, que posicionam o computador como uma “ferramenta para pensar com”, como diz o pesquisador Seymour Papert ou a própria coordenadora do LEC, a Léa Fagundes. Ela tem um termo próprio para isso que é a “prótese cognitiva”.

Por falar em Plano Ceibal, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul está implementando o província de São Pedro em municípios que fazem fronteira com o Uruguai, projeto que tem a proposta de repetir em nível estadual o sucesso do Ceibal…
Sim, e temos trocado experiência. Eu e parte da equipe do LEC/UFRGS estivemos com os gestores do projeto e falamos sobre conceitos e práticas que consideramos importantes para que um projeto com essa pretensão. São sugestões, mas não sabemos ainda o que eles vão adotar.

É aquela mesma questão da desescolarização. A escola mantém o seu espaço de primazia, mas a diversificação dos espaços educativos é necessária.

O que, por exemplo, vocês sugeriram?
Se tu vais saturar cidades inteiras, entregando laptops para todos os alunos e professores, esse não pode ser um projeto da escola. É aquela mesma questão da desescolarização. A escola mantém o seu espaço de primazia, mas a diversificação dos espaços educativos é necessária. No próprio Uruguai há museus com exposições montadas para se usar o XO, e uma rede de apoio ao Ceibal, que promove eventos nas praças. Você está lidando com um sistema complexo e não é entregando laptops ou tablets que você vai promover mudanças na cultura da aprendizagem. Se você não pensa de forma sistêmica, você não muda nada, pois aquela ação isolada vai se adaptar à realidade já existente. Tem um pensamento que eu gosto bastante que é: “como a gente faz uma reforma que reforma a escola e não uma reforma que a escola reforma”. A nossa experiência com o projeto piloto UCA (Um Computador por Aluno) nos mostra que é por aí também, e que dessa forma é possível construir um modelo de uso das tecnologias que tenha grande impacto na educação do Brasil.

Mas você está de acordo com essa saturação de regiões inteiras? Mesmo num país continental com o Brasil?
No projeto OLPC, em Ruanda, a saturação também era colocada como um dos princípios, mesmo com os desafios de infraestrutura imensos. Havia escolas com uma única tomada e cuja energia era obtida somente por painel solar. O David Cavallo [pesquisador do MIT Media Lab e coordenador do OLPC para América Latina e Caribe] defende cinco princípios, aliás: o 1:1 (um computador para cada criança), o início do trabalho com crianças de idades baixas, a conectividade, o uso do software livre e a própria saturação. Mesmo que, utopicamente, pensemos numa saturação em todo o Brasil, não podemos confundir isso com uniformização. Não vai ser igual o desenvolvimento em todas as regiões e nem devemos nos preocupar com isso, pois cada região tem suas demandas. Aliás, a computação estimula não a uniformização, mas a customização.

Customização, nesse caso, significa liberdade para criar, e não somente seguirem modelos engessados, reproduzir padrões?
Também, e isso passa bastante pela Aprendizagem Baseada em Projetos, pela modelagem. As crianças têm curiosidades, interesses, dúvidas. Isso precisa ser levado em conta. O que considero fundamental nesse contexto, e aí sim temos um desafio no Brasil, é compartilhar o que é produzido, conectar diferentes regiões e o conhecimento produzido nessas diferentes regiões para poder se pensar em hackeamentos que façam sentido em uma cada uma delas. Paulo Freire, no contexto da época em que ele viveu, já dizia que seria ótimo se cada professor tivesse um telefone na sua mesa. É essa mesma lógica: trocar, compartilhar. E além disso, acrescento o hackear. O trabalho de doutorado do David Cavallo trazia experiências, por exemplo, sobre hackeamento de motores de moto na Tailândia. As pessoas usavam o conhecimento sobre aquele motor e criavam outros usos possíveis. Isso é pensamento complexo, alinhado a um mundo que precisa de soluções, como o que vivemos hoje.


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