Pai cria software para filha e ajuda 2.000 pessoas
Pernambucano desenvolveu programa de comunicação assistiva em tablets para pacientes com vários tipos de distúrbios
por Patrícia Gomes 4 de setembro de 2013
Para Clarinha, hoje com cinco anos, pedir um iogurte nem sempre foi fácil. Seu problema não era entender o que queria, mas conseguir comunicar a sua vontade. Durante seu nascimento, um erro médico fez com que lhe faltasse oxigenação no cérebro. Com isso, a menina perdeu boa parte dos neurônios responsáveis por sua coordenação motora, o que afeta seus movimentos e sua fala. Mas, mesmo com a paralisia cerebral, sua inteligência ficou intacta. É como se o corpo não obedecesse às ordens que o cérebro dá. Seu pai, o analista de sistemas Carlos Pereira, resolveu que poderia criar um método para conversar com ela. Nascia assim a ideia do Livox, ou Liberdade em Voz Alta, um sisteminha que já foi premiado pela ONU e hoje ajuda mais de 2.000 pessoas de todo o Brasil com disfunções na fala, deficiência visual, motora ou cognitiva.
“Eu queria entender o que se passava na cabeça dela”, conta Carlos, que primeiro tentou ajudar Clarinha de forma analógica mesmo. Ele pegava imagens de objetos, sensações ou qualquer coisa que a filha pudesse querer falar, imprimia, plastificava e colocava em um fichário. Quando ela tentava contar o que queria, Carlos mostrava as imagens para a menina apontar. “Como não tinha no Brasil, fui buscar sistemas de comunicação alternativa fora. Falei com as empresas, mas elas não tinham interesse de fazer um produto para o mercado brasileiro. Decidi que eu mesmo ia fazer”, lembra Carlos.
Não era a primeira vez que o analista de sistemas resolvia ir buscar longe algo que pudesse melhorar a vida da filha. Quando a menina tinha pouco mais de um ano, Carlos e a mulher descobriram que um tratamento com células-tronco poderia ajudar Clara a recuperar parte dos movimentos. Fizeram uma campanha pela internet para arredar fundos, na época chamada “Um Real por um Sonho”, juntaram US$ 40 mil e foram para a China, onde a menina foi submetida, durante um mês, a procedimentos médicos ainda proibidos no Brasil.
Com o tratamento, a menina apresentou melhoras significativas, mas ainda não podia falar ou andar sozinha. Foi aí que o método do fichário aos poucos foi dando lugar a um software adequado para as necessidades dela. “O sistema ficou muito bom”, afirma Carlos, que queria mais. Reuniu uma equipe com fonoaudiólogos, pedagogos e terapeutas ocupacionais para melhorar o produto que, quem sabe, poderia ajudar outras pessoas.
Não deu outra. Dois anos e meio depois da primeira versão, Carlos comemora já ter percorrido 80 mil km – ou duas voltas inteiras na Terra, como gosta de brincar –para contar sua história e ensinar aos mais de 2.000 usuários do sistema a usá-lo. O Brasil hoje tem 15 milhões de pessoas que não falam, seja por paralisia cerebral ou por autismo ou outras disfunções que afetam essa habilidade. “São pessoas invisíveis à sociedade porque elas não conseguem se comunicar”, afirma ele.
O software funciona a partir do toque em tablets. Ele começa com um banco com 14 mil imagens. “Tudo funciona com uma lógica muito simples, pelo toque, o que facilita a interação de uma pessoa com inteligência”, diz ele. Assim, os usuários podem apontar e ouvir a pronúncia de palavras como “sim” e “não”, do desenho ou da fotografia daquilo que desejam – como água, chocolate e maçã – ou de ilustrações daquilo que estão sentindo – como fome, frio ou dor. Os usuários podem inserir conteúdo no programa, como fotos de pessoas da família, para adequar às necessidades de cada um.
“O sistema começou ajudando na comunicação de pessoas que não podiam falar. Mas hoje é muito mais que isso”, orgulha-se o pai-empreendedor. Atualmente, o Livox vem sendo usado para estimular não só quem sofre com paralisia cerebral, mas também pessoas diagnosticadas com autismo, esclerose múltipla ou que lutam contra sequelas de um AVC, além de deficiências visuais.
Com as novas funcionalidades, o software passou a ser usado em escolas, para ensinar a ler, escrever e contar. “Para a minha filha foi ótimo. Tem coisa que eu só consigo fazer por causa do Livox”, diz. Carlos conta que, ao levar Clarinha para a escola, contou para a professora que ela já sabia ler. “A professora desconfiou por causa da paralisia. Mas eu peguei o tablet e ela formou palavras apontando as letras. Ficou fácil de ver que o fato de ela não conseguir pegar no lápis não significa que ela não esteja alfabetizada”, afirmou. E o mesmo aconteceu com a soma. “Ontem mesmo eu percebi que ela já está somando ao usar o programa com ela”, comemora o pai.
Como boa parte dos usuários do Livox tem alguma dificuldade motora, uma preocupação de Carlos foi desenvolver um algoritmo inteligente que entendesse o toque de uma pessoa com dificuldades motoras. “Muitas vezes eles tocam em mais de um lugar, arrastam o dedo na tela em vez de tocar. O sistema não respondia como eles esperavam e aí eles se frustravam. Isso acontecia no Livox e em qualquer programa de comunicação alternativa”, conta o analista. Agora, o sistema consegue entender o toque e corrigi-lo. Veja demonstração.
O Livox é vendido a R$ 1.350 com direito a licença vitalícia e a atualizações. “É caro para os padrões brasileiros, mas os internacionais chegam a custar R$ 38 mil ou R$ 3 mil por mês em aluguel”, conta Carlos, que é procurado por muitas famílias que não têm recursos. Para levar a tecnologia a quem não pode pagar, ele recebe doações em dinheiro ou em tablet pelo seu site. É possível ainda “adotar um paciente”. Veja mais informações sobre como ajudar.
A iniciativa de Carlos foi considerada pela ONU como a melhor tecnologia assistiva brasileira de inclusão e empoderamento da pessoa com deficiência. Em outubro, ele vai representar o Brasil na final do WSA (World Summit Award), que ocorre no Sri Lanka. Carlos agora está levantando fundos para a viagem e para produzir um vídeo em inglês para que seu produto seja avaliado pelos jurados.