Diminui antagonismo entre preparar para trabalho e para cidadania
Lançamento de anteprojeto da Base Nacional Comum Curricular abre espaço para discussão de saberes que devem ser estimulados pelas escolas
por Sergio Pompeu 17 de setembro de 2015
O Brasil precisa de jovens que cheguem ao mercado de trabalho com uma clara noção de que são protagonistas do seu destino e responsáveis pelos rumos do país. A definição mostra que a distância entre alas de educadores que pregam uma espécie de “educação cidadã” e o mundo corporativo é menor do que muita gente imagina. Pelo menos se o parâmetro for a opinião de Luiza Trajano, dona do gigante varejista Magazine Luiza. “Essa questão de combinar o líder-cidadão-profissional vai ser uma tendência muito forte neste século”, afirma a empresária.
Indagada pelo Porvir, Luiza disse que gostaria de ver as escolas estimularem nos alunos saberes que ela considera fundamentais para o cidadão do século 21, como o protagonismo. O debate sobre se isso deve ou não ser feito (e sobre como será feito) foi iniciado formalmente ontem pelo Ministério da Educação com a divulgação do anteprojeto da Base Nacional Comum Curricular – a BNC será uma espécie de currículo mínimo com força de lei, válido para todas as escolas do país.
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Luiza é razoavelmente otimista com o potencial da educação brasileira, mas teme que o país perca mais uma vez o timing na hora de executar os projetos – receio de vários educadores ouvidos pelo Porvir na série sobre a BNC. “Veja a questão do empreendedorismo. Dá para perceber claramente que lá atrás ela não foi tratada adequadamente pelas redes de ensino, tivemos de correr atrás”, diz. “E olhe que existem experiências incríveis: tem uma escola do Sebrae em Minas na qual os alunos administram tudo, da biblioteca à cantina. Já são ensinados a empreender como parte da rotina escolar.”
Do ponto de vista pedagógico, as duas características citadas por Luiza e mencionadas no início do texto são faces da mesma moeda, a de colocar o aluno no centro do processo de aprendizado, tirando-o da condição de mero espectador. “A gente vem de uma espécie de ‘era da escravidão’, em que sempre se pensava que alguém era responsável pelas nossas escolhas”, diz. “Por isso aqui no Magazine Luiza sempre trabalhamos o autodesenvolvimento, a capacidade de as pessoas montarem suas carreiras.”
Mas existem outras características desejáveis em um profissional antenado com este século que vão além do estritamente pedagógico. Luiza cita duas: ter um bom repertório digital (“desde que a pessoa entenda que tecnologia não é fim, é meio”) e a capacidade de empatia, de entender o outro. Na verdade, nessa questão a empresária vai além. “É muito importante você perceber a nobreza que existe em servir ao outro”, afirma.
Na convivência diária com funcionários mais jovens, Luiza percebe um aspecto que considera elogiável. “Esse pessoal é muito preocupado com qualidade de vida. Valorizamos muito isso aqui, tanto que estamos há mais de 18 anos no ranking das melhores empresas brasileiras para se trabalhar”, diz. “Este ano ficamos na 6ª posição.”
A contrapartida desse profissional que valoriza tanto seu próprio bem-estar é a resistência em “vestir a camisa” da empresa, engajar-se na companhia como se ela fosse uma segunda família. “O próprio mercado dita um pouco isso, se está ‘comprador’ a pessoa acaba recebendo propostas interessantes para se transferir. É difícil generalizar, mas certamente o profissional de hoje tem mais dificuldade em criar vínculos com as empresas”, diz Luiza. “Como estreitar esse vínculo? Esta é certamente uma lição de casa que todos nós, empresários, precisamos fazer.”
Na verdade, essa lição de casa começou a ser feita no fim dos anos 70, início dos 80, com a profissionalização dos processos de seleção e gestão de pessoal nas grandes empresas brasileiras. Com a autoridade de quem é CEO da Cia de Talentos, maior caça-talentos de grandes empresas do Brasil, Maira Habimorad adverte para o risco de o país perder a oportunidade de formar os jovens que o mercado, em um sentido mais amplo, demanda. “O que nos anos 80 era feito de forma desestruturada, intuitiva, migrou para um modelo comportamental. Hoje, nos processos de seleção, olhamos muito mais essa questão do que aformação técnica do candidato”, diz.
Como isso funciona na prática? Cada organização cria seu próprio modelo de competências, que tem a ver com sua cultura e estratégias. E a partir daí que ela sai em busca de candidatos cujo comportamento indica, pelo histórico acumulado na organização, maiores probabilidades de desempenho satisfatório e, principalmente, alinhado com os objetivos da empresa. “Uma companhia que define como estratégia o crescimento orgânico vai demandar um perfil diferente daquela que planeja crescer por fusões e aquisições; uma outra que aposta na internacionalização também vai admitir profissionais com um perfil distinto das demais”, diz Maira.
A CEO mergulhou nos 27 anos de experiência da empresa e na literatura especializada para criar uma espécie de “Base Nacional Comum” da Cia de Talentos. Essa BNC própria tem quatro itens:
1) Execução prototipada: É a capacidade do funcionário de observar o mundo e seu entorno mais próximo (consumidores, clientes, mercados) e criar o novo. “Mas aqui não é gastar um tempo enorme, dois, três anos, até entregar um produto pronto e acabado. Você precisa executar protótipos os mais simples possíveis, testar e aprender com o feedback dos usuários. Daí você realiza os ajustes necessários e retoma o ciclo, naquilo que chamamos de eterna versão Beta.”
2) Pense ecológico: Aqui entram conceitos já descritos antes como trabalho em equipe e respeito à diversidade. A definição da Cia de Talentos é bem mais abrangente, diz respeito a toda interação com colegas, a sociedade, os concorrentes e o ambiente. “É preciso interagir de forma positiva, criar situações de ganha-ganha”, diz Maira. “Defendemos a criação conjunta com comunidades e o respeito à diversidade não porque isso seja bacana ou politicamente correto, mas porque acreditamos que o mundo do futuro será o mundo do coletivo, dacooperação.” Nesse capítulo entra também a ética nas relações profissionais e pessoais, tema que está na ordem do dia no país. “Aética hoje tem que estar ‘acima da lei’, porque o sistema legal não tem a velocidade necessária para acompanhar as mudanças nas relações sociais e de negócios”, diz Maira. Ou seja: não é porque uma coisa não é descrita como ilegal que ela deva ser adotada como prática.
3) Flexibilidade mental: Muita gente já escreveu sobre a necessidade de formar jovens capazes de lidar com o volume alucinante de dados e informações do mundo atual. Maira, porém, retrocede um passo atrás. “Precisamos ter gente capaz de identificar os problemas antes de agir. Este é o grande gap da escola hoje em dia, porque lá o problema já está dado, não existe um trabalho de investigação. Aí o sujeito formado nesse ambiente fica numa postura passiva, esperando que alguém lhe diga qual é o problema a ser solucionado”, diz. “Precisamos de gente capaz de fazer perguntas relevantes, correlacionar cenários e experiências passadas, identificar problemas e resolvê-los. Porque é da solução de problemas que o mundo do trabalho é feito.”
4) Articulação emocional: Esse eixo da “BNC” da Cia de Talentos passa pelo autoconhecimento, pela descoberta do que faz o olho daquele jovem brilhar, qual é seu propósito na vida. “A pessoa também precisa saber lidar com as coisas quando elas dão errado, porque elas quase sempre dão errado, em maior ou menor proporção”, diz Maira. Outra preocupação da Cia de Talentos é paradoxal: passar aos jovens profissionais a noção de que o emprego das antigas, com crachá, plano de saúde, 13º salário, é um ser em extinção. “Uma boa parte do mundo do trabalho será composta por projetos, com grupos que entram e saem desses coletivos. Isso vai exigir uma autogestão cuidadosa de tempo e potencial. Será o mundo do freelancer 3.0.”
Será que tudo isso está contemplado no projeto de BNC que o MEC apresentou ontem? Será que vale a pena rever conceitos estritamente pedagógicos e incorporar parte do discurso do “mundo do trabalho”? Esse é um velho cabo-de-guerra da educação (e não só no Brasil): preparar para a cidadania ou para o mercado? Talvez um consenso a respeito nunca tenha estado tão próximo quanto neste século 21, em que robôs apertam porcas e parafusos nas fábricas e deixam para as pessoas tarefas mais complexas, como desenvolver os programas que controlam as linhas de montagem.