O que está no currículo é mais importante do que como se ensina
Em entrevista ao Porvir, Charles Fadel, professor visitante de Harvard e especialista em inovações em educação, discute como atualizar o currículo escolar
por Vinícius de Oliveira 30 de novembro de 2016
Os desafios do mundo demandam que estudantes olhem para o mundo de uma nova maneira e façam conexões que envolvam competências, o lado socioemocional, e o cognitivo. Ao mesmo tempo, existe o dilema de que tudo o que é mais fácil de ensinar também corre maior risco de ser digitalizado, automatizado ou terceirizado. Charles Fadel, especialista em inovações para educação, fundador do Center for Curriculum Redesign e professor visitante de Harvard, propõe em seu novo livro “Educação em quatro dimensões: as competências que os alunos devem ter para atingir o sucesso” (PDF grátis) que devemos nos atentar não apenas para o como, mas para o que é ensinado para aumentar o nível de engajamento.
Em uma era em que se debate o poder e a influência dos algoritmos de sites de busca e redes sociais, será que devemos continuar deixando esse tópico de lado nas escolas em favor da matemática tradicional? Na entrevista que você lê abaixo, o especialista que visita o Brasil para participar de evento promovido pelos institutos Península e Ayrton Senna analisa como é possível atualizar o currículo sem aumentar o fosso entre alunos de diferentes realidades sociais e econômicas, bem como a importância da interdisciplinaridade para uma escola que faça sentido ao aluno.
Porvir – Analisando o cenário atual, quais são as questões que demandam uma resposta urgente de educadores e formuladores de políticas públicas?
Charles Fadel – Acho que todos compartilhamos um grande problema que é o aquecimento global, que no pior cenário pode levar à extinção da raça humana e em muitas outras análises pode ser muito danoso a ecossistemas em geral e ao padrão de vida de todos. Para piorar, temos questões econômicas que merecem atenção porque aqueles que não se sentem seguros em seus empregos e não atingiram boa qualidade de vida não terão tempo e tendem a não levar em consideração temas mais gerais, que afetam o mundo todo, como é o caso do aquecimento global. Em síntese, precisamos lidar simultaneamente com o curto e o longo prazo, mas não estamos prontos para fazer isso ao analisarmos a maneira como evoluímos, de olho apenas em problemas imediatos.
Porvir – No seu novo livro, o senhor fala sobre a corrida entre tecnologia e educação, além de pesquisas que mostram a insatisfação de estudantes e empregadores. Como sistemas educativos podem encarar os avanços tecnológicos?
Fadel – Penso que a educação nos últimos tempos tem ficado para trás, mas também foi assim durante a Revolução Industrial e fomos capazes de nos adaptar. O desafio atual é que a tecnologia está evoluindo muito mais rápido do que no passado porque ela acontece em diversas frentes. Temos que considerar também que durante a Revolução Industrial além das máquinas que surgiram, evoluímos de não ter telefone e ter telefonia fixa, não ter eletricidade para ter eletricidade, não ter meios para gravar voz ou imagens até que conseguimos alcançá-los. Esses fatos representaram rompimentos. O que temos hoje é uma aceleração que não é tão descontínua, mas temos que nos adaptar. Para isso, precisamos ser mais inteligentes sobre como gastamos nosso tempo aprendendo e repensarmos completamente o que aprendemos. Em uma era de buscadores e inteligência artificial, o que precisamos aprender é muito diferente do que era necessário há um século.
Porvir – E como é possível oferecer oportunidades a todos em um cenário como esse?
Fadel – Acho que as coisas vão ficar piores no curto prazo até que melhorem. Todos os países, incluindo o Brasil, têm uma grande disparidade de ações. De um lado, temos o analfabetismo e o analfabetismo funcional e, do outro, pessoas que trabalham em empresas de tecnologia de ponta como a Embraer. É muito difícil tentar educar a todos da mesma maneira e como acontece no marketing, em que segmentos da população possuem necessidades variadas, teremos que aceitar que, pelo menos no curto prazo, ofereceremos educação diferente aos que não são alfabetizados e aos que estão avançando para a nova economia. Com o passar do tempo, teremos maiores chances de diminuir as disparidades.
Porvir – Se o senhor fosse escolher uma escola para seus filhos hoje, que tipo de abordagem buscaria?
Fadel – É importante distinguir o que ensinamos da maneira como ensinamos. O que ensinamos é determinado por governos, que criam testes para entrada no ensino superior, que por sua vez ditam o que é ensinado. O livro é uma reflexão sobre o que é ensinado. Em termos de como, tem sido demonstrado que cada um aprende do seu jeito. Também posso dizer por experiência pessoal que projetos ajudam o aluno a reter mais informações do que aulas expositivas. O nosso papel é entender quais áreas merecem projetos aprofundados e quais são necessárias para contextualização, para então aplicarmos diferentes métodos e atenção em cada uma delas.
Porvir – Quando o senhor fala sobre currículo e de como novos assuntos como algoritmos são tão importantes como a matemática tradicional, também menciona a reação de meios acadêmicos. Por que isso acontece?
Fadel – Bem, cada um defende o que sabe. A psicologia chama isso de viés de confirmação. Cada especialista vê sua área de conhecimento como a mais importante e deixa de ter uma visão estratégica. Uma analogia que posso fazer é que eles se preocupam demais com a casca da árvore e não enxergam a planta inteira, mesmo em suas próprias disciplinas. E também não entendem como essa árvore interage com a floresta e como funcionam os ecossistemas animal e vegetal.
Faça o download do livro “Educação em quatro dimensões”, de Charles Fadel.
Porvir – Outras áreas do conhecimento também podem sofrer mudanças desse tipo?
Fadel – Todas as áreas podem ser transformadas se pensarmos o que é mais importante em cada disciplina. Demos o exemplo da matemática no livro, mas pode acontecer o mesmo em disciplinas como história. Você pode desejar um aprofundamento, e não apenas datas e fatos sobre as guerras. Por exemplo, quando se ensina história da Grécia e o que acontece em Atenas e Esparta, pode-se desejar entender por que essas cidades criaram sistemas democráticos e autocráticos, por que prosperaram tanto e entraram em colapso. É olhando para os conceitos e metaconceitos que se ganha ao aprender essas disciplinas e não apenas números.
Porvir – Por que um currículo para atender as necessidades do século 21 precisa estar em constante atualização? Como preparar educadores e líderes educacionais para esse cenário?
Fadel – É uma mudança de mentalidade. Todo mundo cresce com a ideia de que as coisas são fixas e que elas devem se parecer com o que aprendemos quando éramos crianças. Mas os padrões mudam ao longo do tempo. Não ensinamos latim e grego como fazíamos e também não fazemos isso em áreas como a matemática. As pessoas não percebem que as coisas devem mudar mais rápido e com mais vigor com o passar do tempo. E não entendem que mudar significa trazer novas áreas e disciplinas para o centro. Por que continuamos tão relutantes em ensinar empreendedorismo, bem-estar, robótica e outros temas que atualmente são mais importantes que as disciplinas tradicionais? O que há de errado nisso? Não há razão para acreditar que elas não possam ter espaço no currículo. Como ele está tão cheio, temos que tirar o que é mais antigo com cuidado, e isso é muito difícil de ser feito porque cada especialista vai querer defender sua área de atuação.
Porvir – Qual a importância de integrar atividades mão na massa para o redesenho curricular com a intenção de atender às demandas do século 21?
Fadel – Elas permitem a interdisciplinaridade e a integração do maior número possível de áreas. Entretanto, demandam uma enorme quantidade de tempo se tudo for baseado em descobertas ou projetos. É preciso analisar com cuidado e perceber quais áreas necessitam mais de uma abordagem por projetos. Voltando ao exemplo da história grega, se eu quiser explicar aos alunos a importância da autocracia e da democracia ou como alguém como Alexandre, o Grande liderou aos 19 anos uma tropa de milhares de homens, é possível deixar o restante em segundo plano para ser ensinado mais rapidamente do jeito tradicional.
Porvir – Como escolas devem se preparar para desenvolver e avaliar alunos considerando as quatro dimensões trazidas no livro?
Fadel – Em primeiro lugar, não foi investido dinheiro o suficiente para avaliar essas dimensões e parte do que meu centro trabalha atualmente é na criação de um consórcio para pesquisas em conjunto. Em segundo lugar, é preciso pensar como cada um é avaliado no trabalho todos os dias. Ao invés de uma prova, seu chefe e colegas dizem que você se comunica melhor hoje do que no ano passado, que progrediu desta ou daquela maneira e que trabalhou em determinadas questões que ainda não foram resolvidas. É subjetivo e qualitativo, mas é assim que o mundo funciona. Ficamos muito ligados a testes objetivos, mas essa é só uma parte. Temos que aceitar as avaliações formativas, que seriam aplicadas por professores bem formados e pelos próprios estudantes.