Manual orienta escolas para retomada e reforça potência de aulas ao ar livre
Elaborado por grupo de trabalho ligado ao Instituto de Arquitetos do Brasil, documento analisa escolas públicas para traçar protocolos que devem ser obedecidos por profissionais da educação e alunos
por Maria Victória Oliveira 28 de agosto de 2020
Inúmeras questões sobre a retomada das aulas presenciais preocupam gestores educacionais, autoridades de saúde e famílias, e uma delas é o quanto as escolas poderão, de fato, respeitar protocolos sanitários e promover uma educação de qualidade para seus alunos. Para entender a realidade de uma fatia das escolas brasileiras e propor recomendações, o um grupo de trabalho ligado ao departamento de São Paulo do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil) elaborou o “Manual Técnico para Escolas Saudáveis”.
Estudantes, pesquisadores, arquitetos-urbanistas e educadores integrantes do Grupo de Trabalho Cidade Infância e Juventude uniram esforços para analisar as instalações de escolas estaduais de ensino fundamental e médio em São Paulo. A rede reúne mais de 3,8 milhões de estudantes, 200 mil professores e 40 mil funcionários em mais de 5,6 mil escolas.
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Segundo Ursula Troncoso, arquiteta e urbanista, a iniciativa nasceu de convite feito pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP) que tinha questionamentos em relação a condição infraestrutural das escolas de atender recomendações e protocolos. “Nossa ideia foi pesquisar informações sobre se realmente é possível manter o distanciamento nas escolas, como os espaços deveriam ser configurados, como deveria ser a entrada e saída de estudantes. O manual é bastante focado nos espaços e procuramos oferecer um apoio técnico para falar sobre o retorno às aulas.”
Beatriz Goulart, também arquiteta e urbanista, ressalta que falar em ambiente escolar saudável implica ir além do currículo, dos conteúdos e da qualidade da educação e pensar no ambiente de vida.
“Uma escola saudável deve considerar biomas, culturas, a situação de cada prédio, o ano em que foi construído, o número de alunos que lá estudam, a ventilação e a iluminação independentemente da pandemia”. Até por isso, o guia se diferencia por trazer sugestões que vão além das orientações sanitárias.
A importância de ambientes acolhedores
Existem pontos em comum que podem ser observados por todas as escolas, independente de tamanho, espaço ou localização. Mesmo sem abraços e demonstrações físicas de carinho, promover espaços acolhedores, que possibilitem a participação de crianças, jovens e funcionários e permitam que eles se expressem é uma das maneiras de mediar expectativas sobre o retorno.
Dessa forma, o documento sugere, além de ambientes bem iluminados e ventilados, a produção de cartazes e murais colaborativos, intervenções nas paredes e no chão, além da sinalização humanizada, na altura das crianças, por exemplo. “Na entrada da escola, por exemplo, é possível ter um mural ou uma árvore de ideias e de trocas, onde as pessoas possam falar sobre o que estão sentindo e como foi esse período de distanciamento. São coisas fáceis de fazer, que não são custosas”, exemplifica Debora Laub, arquiteta e urbanista, pesquisadora e educadora.
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Recomendações, protocolos e orientações
O guia traz inúmeras orientações quando o assunto é respeitar diretrizes elaboradas por instâncias da saúde. A garantia de espaços amplos deve ser estendida a salas de aula, corredores, banheiros, refeitório, cozinha e salas administrativas. A entrada e saída de alunos deve ser organizada e em ambientes como banheiros e refeitórios os cuidados devem ser redobrados.
De acordo com o manual, o momento das refeições pede distanciamento de dois metros entre as pessoas devido a impossibilidade do uso de máscaras, bem como a presença de sinalização no chão e nas mesas. Encoraja-se que crianças e jovens não conversem durante esse momento e sentem-se na diagonal umas das outras. Banheiros e vestiários também devem observar protocolos rígidos. Uma vez que as torneiras são manuseadas constantemente, uma opção apontada pelo documento é a instalação de sensores para acionamento automático, assim como em saboneteiras, papeleiras e válvulas de descarga. A orientação também vale para bebedouros.
As salas de aula, ambientes onde os alunos passam a maior parte do tempo quando na escola, também devem ser reajustadas. Segundo dados da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, 47% das turmas das escolas da rede estadual têm mais de 35 alunos. Baseado no padrão de sala de 7,2 m x 7,2 m determinado pelo catálogo técnico da FDE (Fundação para o Desenvolvimento da Educação), o manual indica que é necessário diminuir para 20 a quantidade de estudantes em sala para que as distâncias recomendadas sejam respeitadas. Além disso, é aconselhável que professores mantenham pelo menos dois metros da primeira fileira de cadeiras, e que portas sejam mantidas abertas para evitar a contaminação por maçanetas.
Educação fora da escola: a importância do território
Tema caro ao grupo, os arquitetos defendem a ideia de que a escola não se trata apenas da construção em si, mas envolve todo o território onde o prédio está inserido e a compreensão de que o entorno também precisa de qualidade ambiental para que instituições de ensino sejam saudáveis. “Quando olhamos para as praças do entorno, as ruas e como se dá o caminho até a escola, o que estamos propondo em termos de ambiência saudável fica ainda mais distante”, comenta Heloísa Ribeiro, arquiteta e urbanista.
Um capítulo inteiro do manual é destinado a espaços externos e como eles podem ser usados no momento atual para comportar mais estudantes, respeitando o distanciamento social, e proporcionar mais circulação de ar e a vivência fora de espaços fechados.
Considerando que apenas 2% das escolas estaduais possuem parquinhos como parte de suas instalações e a oferta de quadras e pátios não abrange a totalidade das instituições de ensino, o guia encoraja sair dos limites físicos da escola com a realização de experiências em praças, parques e nas ruas do entorno, o que contribui para a formação social de crianças e jovens, conforme explica Debora.
“Nosso grupo acredita que, se criarmos desde cedo crianças cidadãs, participantes da cidade, que dialoguem com pessoas sentadas em bancos públicos e que entendam elas pertencem a praças e espaços públicos, teremos uma cidade muito melhor. É uma relação de ‘ganha-ganha’ e, nesse sentido, usar a cidade como sala de aula é incrível e só traz benefícios”, afirma.
Ursula Troncoso concorda ao afirmar que a questão vai além da pandemia e que a vivência de crianças em espaços verdes e abertos deve ser encarada como saúde pública. “Se estamos falando de saúde, precisamos incentivar infâncias que se movimentam livremente e que estejam ao ar livre, em contato com natureza, com seu território e com o meio ambiente.”
Entre as opções apontadas pelo manual está a exploração do bairro e uma escolha conjunta com os estudantes sobre qual local será a sala de aula, a criação de forças-tarefas para eventual limpeza dos locais, elaboração de projetos e ações, como murais, que despertem senso de pertencimento, além de se atentar para a escolha do lugar, que deve ter sombras, abrigo de chuva e espaços de descanso.
Para que tudo isso seja possível, entretanto, o grupo pontua que é primordial que as mudanças façam parte do currículo e sejam aprovadas, por exemplo, pelas famílias que participam do conselho escolar. Isso facilitaria a organização das atividades por parte da escola sem que seja necessária uma nova autorização a cada saída.
Beatriz vai além e afirma que a questão está diretamente relacionada a uma política pública intersetorial. “A escola sozinha não consegue dar conta do recado. Não adianta querer sair com os estudantes se há buracos na calçada e se não tem semáforo para atravessar a rua com segurança. Tudo isso mexe com duas concepções: educação, juventude e cidadania e políticas públicas.”
Yumy Pompeia, estudante de arquitetura, afirma que ao mesmo tempo que a pandemia acelerou a necessidade da conversa sobre aulas fora da escola, a questão é muito mais complexa do que encorajar os professores a saírem de sala de aula. “Essa sugestão precisa atravessar o Plano Político Pedagógico da escola, ou seja, estar em contato com currículo e ser conversada com os professores, para que exista um planejamento. Não dá para ser leviano e achar que os docentes vão encontrar jeitos de incorporar a cidade no seu currículo. É um trabalho que exige bastante tempo, não é algo feito de uma hora para outra.”
“Nossa ideia é propor um olhar criador e inventivo, pensando em como podemos partir dessa crise instaurada em um momento pandêmico e inaugurar uma escola que seja de fato acolhedora e democrática. Nesse retorno, o diálogo é imprescindível, e por isso, deve-se respeitar espaços como o grêmio estudantil, onde estudantes têm autonomia para se articular”, reforça Carolina Clasen, arte-educadora e pesquisadora.
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Conformidade com as regras
Para Ursula, o cenário é complexo ao considerar que 93,4% das turmas devem ser adequadas para obedecer às determinações impostas pela Covid-19. Rodrigo Mindlin, arquiteto e urbanista, complementa ao citar uma transmissão ao vivo realizada por Jorge Kayano, médico sanitarista e pesquisador do Instituto Pólis, na qual o especialista citou o número de casos semanais a cada 100 mil habitantes nos países que reabriram as escolas.
“Portugal, que reabriu as escolas em maio, contava com uma taxa de 17 casos semanais por 100 mil habitantes, a maior registrada de acordo com a pesquisa de Kayano. No final de julho, essa taxa era de 167 em São Paulo. Para que seja possível colocar em pauta o tema do retorno, precisamos ter uma perspectiva de controle pandêmico efetivo. O guia traz essa perspectiva de planejar a adaptação para quando atingirmos a redução na taxa de transmissão.”
Debora Laub reforça que existe uma percepção e compreensão de que o Brasil conta com um verdadeiro universo de escolas no Brasil, e que as realidades das condições de cada uma delas são múltiplas. Entretanto, o documento é uma forma de projetar espaços de qualidade e que garantam segurança, de forma a proporcionar uma escola efetivamente saudável. “O manual mostra o que é idealmente é necessário para uma escola ser saudável de forma geral. É um papel anterior às mudanças de fato. Então, a partir do momento que escolas precisam seguir determinados parâmetros para ser saudáveis, o ideal seria realizar um estudo de caso para entender a realidade de cada instituição”, completa Mariana Demuth, ilustradora e pesquisadora.
O desafio da infraestrutura
Heloisa Ribeiro segue o mesmo raciocínio ao afirmar que a pandemia deixou ainda mais evidente a baixa qualidade da infraestrutura da educação pública brasileira. De acordo com pesquisas realizadas pelo grupo que deram origem ao infográfico São Paulo: as escolas e a pandemia, 11% das escolas estaduais não têm pátio, 79% não têm vestiário, 13% não têm quadra, ginásio ou campo de futebol, 99% não têm enfermaria ou ambulatório, 82% não têm mais de dois sanitários para uso dos estudantes e 48% não têm sanitário acessível para pessoas com deficiência.
O fato de o Brasil ter estruturas precárias deve-se, segundo Beatriz Goulart, ao baixo investimento. Além disso, a arquiteta também afirma sobre a importância de a infraestrutura ser tratada como parte do currículo. “Suavemente estamos dizendo que a infraestrutura precisa entrar no cardápio do currículo e deve receber atenção da gestão e participação de todos em sua discussão.”
Para Rodrigo, a elaboração do documento é uma oportunidade para reforçar a questão da saúde e como isso acontece ao longo do tempo em uma escola, mas também de incentivar discussões sobre as obrigações envolvidas em infraestruturas públicas, como as escolas estaduais, e na importância de investir no orçamento de construção.
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Próximos passos
Apesar de terem pesquisado e estudado inúmeros manuais e protocolos de reabertura das escolas vindos de diversos países que já passaram por esse momento, os pesquisadores reforçam que a realidade do Brasil é única, considerando as dimensões do território e as múltiplas e complexas desigualdades que marcam o país. Dessa forma, é possível adaptar algumas diretrizes, mas a reabertura, quando acontecer, deverá considerar estudos próprios realizados a partir das experiências de cada localidade.
“De todos os manuais que lemos, conseguimos captar algumas orientações referentes às questões de higienização e distanciamento. Mas as soluções para as escolas saudáveis no Brasil vão emergir do próprio país. Temos que pensar que a proposição de um espaço escolar que realmente seja saudável vai vir de um processo muito amplo e, talvez, muito lento de conscientização territorial sobre o que é esse espaço, realizado pelo próprio corpo e comunidade escolar”, comenta Heloísa Ribeiro.
Ursula Troncoso também comenta que o período de distanciamento social e escolas fechadas pode e deve ser usado para a realização desse diagnóstico e reflexão sobre o espaço da escola. “Alguns estudos estão apontando para a possibilidade de as escolas brasileiras não abrirem mais em 2020. Então, e se aproveitássemos esse tempo para garantir essa qualidade mínima e fazer com que os direcionamentos de fato cheguem às realidades específicas de cada escola?”, pontua.
Saiba mais
O “Manual Técnico para Escolas Saudáveis” está disponível para download neste link.
Participaram da conversa com o Porvir Beatriz Goulart, arquiteta e urbanista; Carolina Clasen, arte-educadora e pesquisadora; Debora Laub, arquiteta e urbanista, pesquisadora e educadora; Gabriela Viola, estudante de arquitetura; Heloisa Ribeiro, arquiteta e urbanista; Mariana Demuth, ilustradora e pesquisadora; Rodrigo Mindlin, arquiteto e urbanista; Ursula Troncoso, arquiteta e urbanista; e Yumy Pompeia, estudante de arquitetura. Todos são membros do Grupo de Trabalho Cidade Infância e Juventude do Instituto de Arquitetos do Brasil.