Uma rede de cordéis para conectar professores durante aulas remotas
Três professores: uma de Assis, no interior de São Paulo, outra de Mogi das Cruzes, na Grande SP e um professor que leciona na periferia de Fortaleza. Em comum, a paixão pela literatura de cordel
por Ruam Oliveira 28 de abril de 2021
O professor Gilson Franco, da Escola Municipal de Tempo Integral Professor Ademar Nunes Batista, em Fortaleza (CE), carregava para onde ia uma grande mala vermelha. Dentro dela, muitos livros. Em algumas ocasiões estendia um tapete em um campinho de futebol e colocava à disposição das crianças livros para que escolhessem. Uma tática para fazer com que elas se interessassem pela leitura. E pela literatura de cordel.
De fala ritmada, o professor pegou pelo regionalismo uma via para ensinar escrita, poesia, gêneros literários e até mesmo empatia e compreensão de mundo por meio da literatura de cordel. O estilo é tradicional da cultura popular brasileira e tem maior presença no nordeste do país.
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Esse fato regional fez com que fosse um pouco mais difícil para a professora Andrea Cavina, que dá aulas na EMEIF Professora Angélica Amorim Pereira, em Assis (SP), para alunos da turma do 5º ano. Com uma passagem pelo México, a professora reparou como naquele país havia uma valorização da cultura local e sentiu que quando estivesse de volta ao Brasil deveria fazer algo semelhante. Foi aí que encontrou o professor Gilson e seus cordéis e decidiu que trabalhar com o mesmo gênero literário poderia vir de encontro a esse sentimento de valorização cultural.
Ambos os professores fazem parte da Rede Conectando Saberes, que reúne mais de 900 educadores em todo o país. Essa vida em rede é uma forma de quebrar com a solidão pedagógica que muitos sentem, como destaca a professora Mônica Felismino, professora da Escola Municipal Dr. Isidoro Boucault, em Mogi das Cruzes (SP). Ela também se junta ao professor Gilson e à professora Andrea para trabalhar a literatura de cordel em sala de aula.
O desafio cultural encontrado pela professora Andrea se faz diferente porque, em comparação com os estudantes do professor Gilson que já estão mais habituados aos nomes e gênero, mesmo que não profundamente, no caso dela foi necessário trabalhar contextualização e regionalismos, por exemplo, antes de ingressar de vez no que seria o cordel.
“Eu percebi que tinha uma turma que não estava mais querendo ler, que é uma geração muito focada no celular e que encontra tudo pronto”, afirmou a professora Andrea.”Comecei apresentando os autores, fui apresentando regionalismos e a questão dos sotaques e o final deste trabalho foi a xilogravura”, conta.
Os cordelistas que os professores mais usaram foram Patativa do Assaré e Ariano Suassuna. Eles apontam que esse tipo de projeto também os transforma de alguma maneira.
Quem reforça isso é a professora Mônica, de Mogi das Cruzes. “Foi um desafio para mim também e eu aprendi com o projeto. Eu também me coloquei na posição de aluno, não é tão simples para mim, é preciso ficar pensando no que vai escrever, se fez sentido. Então era uma dificuldade que eu ia construir com as crianças, vivenciar o processo”, conta a professora.
Ela destaca que essa escolha de algo que não domina tanto pode ser uma oportunidade de se envolver ainda mais com os projetos. Uma das ações feitas pela professora foi que as primeiras atividades de cordel não valiam nota, ela sempre devolvia com versos que rimassem com os nomes dos estudantes. “Como a gente tem dificuldade de engajar as crianças, eu queria mostrar que também preciso de um esforço para o projeto”, conta.
O trio de professores está sempre conectado para troca de informações e para dividir boas práticas. O professor Gilson Franco, por exemplo, já participou de uma conversa com os alunos da professora Andrea para falar um pouco sobre o assunto. Eles são, nas palavras da professora Mônica, um “cordel de conexões”.
“Quando elas me chamam, é quase como uma convocação. É bom perceber que algum professor lá em Assis, longe de nós, está trabalhando o cordel, um gênero nordestino, socializando, fazendo permanecer a tradição do cordel é muito bom. Cada vez que eu vejo um menino declamando um cordel é uma emoção grande”, aponta o professor Gilson. Para ele, especificamente, trata-se de valorizar tradições e linguagem local, além de reforçar relações de pertencimento que são bastante significativas.
Para trabalhar questões socioemocionais
Um outro ponto abordado no texto diz respeito às questões socioemocionais que os projetos conseguem tocar. “O cordel dá essa margem de falar sobre si, sobre o que se pensa e os lugares onde vivem”, aponta a professora Mônica. Ela destaca que percebia nos alunos a dificuldade de nomear sentimentos e resolver trabalhar essa linguagem por meio do gênero literário.
A gentileza, gratidão, empatia e a educação também foram temas apresentados em sala de aula pelo trio. Neste contexto de pandemia, o professor Gilson ressalta que houve chances de trabalhar inclusive a importância do autocuidado. Ele redescobriu seus ares de cordelista e escreveu um texto específico para professores, que diz: “Tem uma íntima ligação com o que o professor sente / com o momento que vivemos, pois é tudo diferente / Em tempos de pandemia, que abalam nossa alegria, tudo ocorreu de repente / Com o socioemocional quase sempre revirado / o valente educador tem ficado atribulado / tem feito de tudo um pouco / tem vivido no sufoco / e muitas vezes calado”.
É importante, avalia o professor, estar atento para quem cuida dos professores. “É fundamental que sejamos incríveis, mas que estejamos bem emocionalmente e fisicamente. Um professor bem é capaz de coisas incríveis”.
Os temas abordados em cada um dos projetos implementados nas diferentes escolas – seja em Mogi das Cruzes, seja em Fortaleza, são aqueles encontrados no ambiente escolar. “Estamos num momento em que a empatia faz grande diferença. Precisamos trabalhar essas virtudes que estão sendo deixadas de lado”, destaca a professora Andrea Cavina. Ela avalia que não é apenas papel das famílias discutir e ensinar sobre gentileza, sobre cuidado ou saber comportar-se diante dos adultos, por exemplo. É papel conjunto, que pode ser introduzido por meio da literatura de cordel, como fazem os três.