O Futuro se Equilibra #003 – O racismo que vai contra a fé
por Redação 8 de dezembro de 2021
O racismo faz parte da estrutura social brasileira. Ele passa por diferentes esferas sociais, entre elas a esfera religiosa. Muitas pessoas, principalmente as que professam uma fé em religiões de matriz africana, sofrem preconceito, perseguição e intolerância religiosa, que é crime.
No terceiro episódio de O Futuro se Equilibra nós trouxemos para discussão como o racismo religioso pode afetar a vida escolar de muitas pessoas. Ouvimos a história da Thiffany Odara, que hoje é pedagoga e mestranda em educação, mas que precisou sair da escola durante seu processo de iniciação ao candomblé devido ao racismo religioso. Participa deste episódio também a vereadora Macaé Evaristo, que também é professora.
O Futuro se Equilibra é uma produção do Porvir com o apoio do Instituto Unibanco
Apresentação: Tatiana Klix
Produção: Gabriela Cunha e Larissa Werneck
Edição e captação de som: Gabriel Reis
Roteiro: Ruam Oliveira e Tatiana Klix
Concepção: Ruam Oliveira, Tatiana Klix e Vinícius de Oliveira
Apoio estratégico: Vinícius de Oliveira e José Jacinto Amaral
Música: Djansa, Asher Fulero, pATCHES, Kevin Macleod, True Cuckoo e Cheel.
[início]
[Macaé Evaristo]
A gente pode dizer que a intolerância ela se caracteriza como um conjunto de atitudes ofensivas, ações ofensivas a diferentes crenças e religiões. Em alguns casos extremos, essa intolerância, ela pode se traduzir em perfeição em ataques. Mas quando a gente está falando de racismo religioso, nós estamos querendo sair um pouco dos fatos, em si, e chamar a atenção para um sistema opressor.
[música de fundo]
Intolerância religiosa ou racismo religioso mata. O racismo mata. É assunto urgente e que deve ser tratado como tal. O Futuro se Equilibra de hoje vai em busca de uma reflexão sobre os impactos do racismo religioso na educação e como ele dificulta o caminho para a Equidade.
Eu sou a Tatiana Klix, seja bem vindo, seja bem vinda.
[música de fundo]
Thiffany Odara é uma mulher negra, trans, que mora em Lauro de Freitas, município próximo de Salvador na Bahia. Ela carrega consigo os marcadores de raça e gênero. Se você ouviu o nosso último episódio, vai lembrar o que eles podem significar na vida de uma pessoa.
Se ainda não ouviu o episódio sobre interseccionalidade, é só procurá-lo no feed do podcast.
[música de fundo]
Falar sobre equidade passa por entender o que são esses marcadores e como eles interagem nas vidas das pessoas. A Thiffany precisou sair da escola por conta da intolerância religiosa. Voltou algum tempo depois e se tornou pedagoga. Vamos ouvir um pouco mais sobre a história dela. Quem interpreta é a Anna Paula Black:
[música de fundo]
Eu sempre fui uma criança de terreiro. Tenho tias e outros familiares ialorixás, iniciados no candomblé.
Mas o que mais me fazia ficar no terreiro era a minha avó, a saudosa Judete Ardolo da Silva, que fundou o terreiro Oiá Matamba, do qual hoje eu sou responsável aqui em Lauro de Freitas, na Bahia.
[música de fundo]
No ambiente educacional que eu cresci não tinha abraço ou comunicação. Tinha violência. E eu respondia também da mesma forma.
[música de fundo]
A iniciação é um processo muito particular. É por meio dela que me conecto com minha ancestralidade. E foi a minha iniciação que me levou a ser quem eu sou hoje, a me descobrir no meu verdadeiro eu, mas não foi fácil, não.
Na época, minha mãe chegou a conversar com a direção da escola que eu estudava, mas não tive apoio nenhum. Quando precisei faltar às aulas por cerca de um mês, só a professora de história entendeu.
O que eu sofri nesse período, nada mais foi do que racismo religioso. E outras violências também. Era tudo tão grande, e foi aumentando cada vez mais, que não encontrei outro jeito se não sair da escola.
[música de fundo]
Aí fui cuidar da minha avó – de quem eu cuidei até o fim de sua vida, aos 98 anos.
Acabei ficando três anos longe da escola regular. Durante esse tempo, encontrei professoras e professores que me incentivavam a retornar. Nas minhas aulas de contação de histórias, uma professora, a Eliana, fez uma intervenção sobre a importância da educação e eu fui convencida de que era hora de voltar para a escola.
[música de fundo]
Como era de se esperar, eu continuei tendo embates, mesmo que em outra escola, em outra cidade…
Meu turbante branco incomodava os outros. Mas, apesar desses trancos, eu consegui concluir o ensino médio. E de lá para cá eu botei na cabeça que precisava ser educadora. É o que eu persigo desde então. Mesmo sendo rejeitada pela escola, tive e tenho paixão pela educação.
Na universidade também sofri violência, preconceito e racismo religioso.
As minhas indumentárias, meu turbante, meu fio de contas incomodava os outros. Até mesmo uma professora chegou a dizer, com cara de nojo, que pessoas como eu não deveriam estar na faculdade.
Deveriam estar onde, então?
[música de fundo]
Eu acredito na educação. Essa minha postura vem também do apoio que recebi pelo caminho. Nem tudo foi extremamente ruim.
Minhas amigas trans, que morreram, que estão presas, que estão fora do Brasil me dizem que eu serei o orgulho delas. Uma delas me disse que se via em mim…
No mesmo espaço onde ouvi de uma professora que não deveria estar ali, encontrei a Simaria, mulher negra e do candomblé, que me dizia o quão importante era reafirmar minha identidade. Teve a professora Cláudia, que segurou a minha mão quando tive depressão.
Nem tudo foi desamparo, no fim.
[música de fundo]
Eu ainda encontro dificuldades para encontrar um emprego. As escolas particulares não querem me contratar. Eu espalhei meu currículo e quando chego para a entrevista as pessoas se espantam. Isso é doloroso.
Meu título acadêmico não me blinda da violência, racismo e dos preconceitos nem me dá passaporte para nada.
[música de fundo]
Hoje eu sou mãe de uma criança de 7 anos, que também é uma criança de terreiro. Aos 5 anos, ele sofreu os mesmos preconceitos que eu. Mas quando precisou falar sobre suas crenças na escola, a professora me convidou para explicar algumas coisas a ela, pois ela precisava rever sua trajetória como educadora.
A barbárie e a truculência desse espaço chamado escola atravessaram meu corpo. Eu não quero que minha história seja anônima. Quero que as pessoas possam buscar meu nome e saber que eu existo, que tenho marcas de superação no corpo.
Hoje eu me vejo como um corpo de possibilidades…
[música de fundo]
[Tatiana Klix]
A história da Thiffany não é a única no Brasil. Muitas crianças sofrem preconceitos em suas escolas por causa de sua religião.
A lei de número 9.459, de 1997, tipifica como crime qualquer tipo de discriminação:
[filtro na voz]
“Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
[Tatiana Klix]
Então, é crime. É crime, mas infelizmente ainda acontece.
E essa conversa se propõe a entender melhor essa realidade e trazer caminhos para combater o racismo religioso. Mas antes vamos fazer uma pausa para ouvir um recado.
[pausa]
[recado do Ruam Oliveira]
O pessoal, Ruam Oliveira por aqui, vamos fazer uma pausa nesse episódio só para um rápido recado. A família de podcasts do Porvir está crescendo. Mais cedo este ano eu e a jornalista Marta Avancini apresentamos o De 0 a 5, um podcast para falar sobre os impactos da pandemia na primeira infância. Essa primeira temporada tem cinco episódios e, assim como o O Futuro se Equilibra, você pode ouvi-lo nos principais tocadores de podcasts. Ouve lá e depois comenta nas redes sociais do Porvir o que você achou!
[música de fundo]
[Tatiana Klix]
Obrigada, Ruam
Lá no comecinho desse episódio você ouviu a Macaé Evaristo, vereadora em Belo Horizonte, ex-secretária municipal e estadual de educação. Ela foi titular da extinta Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação (Secadi).
Com ela nós conversamos para entender um pouquinho mais sobre como a intolerância religiosa impacta na vida escolar das pessoas.
[Macaé Evaristo]
O que a gente percebe é que o racismo também está presente dentro da instituição escolar e, portanto, esse racismo ele vai atingir, muitas vezes, crianças e jovens estudantes, em função das suas crenças, e da sua forma como escolher um plano de relacionar com o sagrado.
[música de fundo]
[Macaé Evaristo]
Então, o processo de preconceito e discriminação contra as religiões de matriz africana, ele tem levado a tensões e conflitos no ambiente escolar. Tem levado a tensões e conflitos, porque a gente vive no Brasil ainda um racismo religioso, estrutural, que quer apagar a história e cultura africana dos afro brasileiros nos currículos escolares. E isso muitas vezes é aprofundado por segmentos da sociedade brasileira que eu considero segmentos fascistas, que incitam o ódio, que incitam a intolerância e que atentam contra as vidas das pessoas que professam religião de matriz africana.
[Tatiana Klix]
A educação brasileira já possui um instrumento de combate ao racismo que, por consequência, pode colaborar com a diminuição do racismo religioso. Trata-se da lei 10.639, promulgada em 2003. É ela quem institui além do dia 20 de Novembro como Dia da Consciência Negra nos calendários escolares, e que também estipula o ensino da cultura e história africana e afro – brasileira nas escolas. É um conteúdo que serve para todos, desde estudantes até professores e professoras. Depois, em 2008, a lei 11.645 ainda ampliou a discussão incluindo a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena. Um passo a mais no combate ao racismo.
[música de fundo]
[Macaé Evaristo]
A gente enfrenta dificuldades que vão do âmbito da gestão pública, de gestores que são racistas, que não se comprometem efetivamente com a implementação da lei, no sentido de fazer a devida formação dos professores e garantir a bibliodiversidade nos materiais pedagógicos. Efetivamente levar para dentro da escola a história e cultura dos africanos e dos afro brasileiros nos currículos escolares, como a gente enfrenta ainda muitas vezes o racismo que vem por meio de trabalhadores em educação.
[Tatiana Klix]
Outra legislação que pode apoiar o combate à intolerância religiosa nas escolas é a Lei de Diretrizes e Bases, que traz um trecho relacionado ao ensino religioso, no qual fica garantido o respeito à diversidade cultural e religiosa no Brasil. O ensino religioso deve ser oferecido nas escolas públicas de ensino fundamental, mas a matrícula é facultativa.
[Macaé Evaristo]
A gente não tem que silenciar sobre as nossas relações com o sagrado, mas nós precisamos garantir a laicidade e para a mim, a garantia da laicidade – Eu tenho questões em relação à que está lá na LDB – que diz que a gente tem que na escola ofertar um ensino religioso, porque eu acho que essa é uma opção bastante particular. Mas se está dito lá, eu acho que esse espaço tem que ser um espaço primeiro para o estudo da história, um pouco mais da história e da formação das diferentes religiões.
Mas mais que isso, pode também ter um ambiente de escuta, de promoção do respeito às diferentes religiões, de respeito às diferentes religiosidades e também inclusive no respeito àquelas pessoas que são agnósticas, que não tem religião e nem querem ter.
[música de fundo]
[Macaé Evaristo]
Eu acho que essa possibilidade da escuta, porque muitas vezes é comum, você chama um padre para ir na escola, você chama um pastor para ir até a escola. Mas dificilmente a gente chama uma mãe de santo para a escola, um pai de santo, uma pessoa, um sacerdote espírita, para ir a uma escola. E eu acho que a gente tinha que usar a mesma, a mesma medida, a mesma medida e talvez também olhar muito para as nossas crianças e para os nossos estudantes. Ouvir um pouco o que eles têm a dizer sobre isso. Um pouco como é essa vivência, essa experiência de relação com o sagrado na vida de cada um deles.
[Tatiana Klix]
Lutar contra a intolerância religiosa é defender a democracia. Conhecer a história de outras religiões é um jeito de impedir que ataques aconteçam e também uma forma de criar consciência nas pessoas. E tudo isso tem a ver com educação.
[música de fundo]
[Tatiana Klix]
A Macaé, que é professora, nem sempre teve clareza sobre os preconceitos relacionados à religiões de matriz africana e quanto isso, também, é uma face do racismo.
[Macaé Evaristo]
Eu sou uma mulher negra. Nasci no interior de Minas, numa cidade de minoria negra, em que as religiões de matriz africana eram muito oprimidas. Eu lembro na minha infância, tenho até hoje a memória de uma mulher negra muito elegante.
Ela estava sempre de branco e eu me lembro da narrativa na cidade, sobre essa senhora que era uma pessoa da qual a gente não deveria se aproximar, ou com a qual a gente não deveria conversar. Eu demorei muitos anos da minha vida para entender o significado. Eu fui criada no catolicismo pela minha família e só muito tempo depois, a partir da educação e de sair dessas cidades do interior, e aí conhecer as religiões de matriz africana é que eu começo a olhar para essa minha trajetória e perceber como que essas construções elas vão se dando.
[música de fundo]
[Tatiana Klix]
O Futuro se Equilibra é uma iniciativa do Porvir, a principal plataforma sobre inovações em educação no Brasil e conta com o apoio do Instituto Unibanco, que atua na melhoria da educação no nosso país.
Eu sou Tatiana Klix e roteirizei esse episódio junto com o Ruam Oliveira, que também atuou na produção junto com Larissa Werneck e Gabriela Cunha, da Podmix. A edição de som é do Gabriel Reis.
Um agradecimento especial à Thiffany Odara por ter compartilhado conosco a sua história de vida. A gente espera que você continue inspirando muita gente à sua volta.
Obrigado também à Anna Paula Black pela interpretação.
Voltamos daqui a quinze dias com um novo episódio de O Futuro se Equilibra para pensarmos e refletirmos sobre equidade na educação. Não deixe de compartilhar esse episódio com outras pessoas, isso é importante para nós e nos ajuda a crescer.
Muito obrigada pela escuta!
[fim do roteiro]
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