Práticas já demonstram como a Base Nacional Comum de Diretores se conecta a desafios atuais
Na terceira reportagem sobre liderança, especialistas e diretores falam sobre a importância da Base Nacional de Competências do Diretor Escolar, das boas práticas de atuação e do futuro da profissão
por Ana Luísa D'Maschio 7 de fevereiro de 2022
Felipi Vidal Fraga conhece bem cada canto da Escola Estadual de Ensino Médio André Leão Puente, em Canoas (RS). E por diferentes ângulos. Formado em letras, ali ministrou aulas de língua portuguesa e literatura entre 2009 e 2018. Candidatou-se à vaga de diretor por chapa única e assumiu o cargo em 2019. Reeleito para o segundo mandato, segue na liderança até o final de 2024 e vê na comunicação com a comunidade escolar um dos segredos de sua gestão.
Para Felipi, a cultura digital é uma grande aliada para estreitar os laços, melhorar o planejamento e ampliar o diálogo entre alunos e funcionários. Antes mesmo do período de distanciamento social, a escola contava com grupos no Instagram, Facebook e no WhatsApp – moderação intensificada durante o ensino remoto por diferentes profissionais. Mesmo em meio à pandemia, uma revista anual, em PDF, com tutoriais de tecnologia e assuntos diversos da escola, chegou aos alunos.
Além da atuação nos diferentes canais, a escola ainda se orgulha de um outro título: ser uma das primeiras instituições públicas, se não a primeira do Brasil, a criar um podcast. Apresentados por Felipi, sempre com participação de professores e alunos, os episódios do AL Podcast começaram a ser gravados na biblioteca da escola há três anos. Hoje, os mais de 80 programas, que abordam desde o dia a dia escolar a debates culturais, estão disponíveis no YouTube e Spotify, e contam com o apoio de uma produtora.
“O diretor tem de entender todos os processos dentro e fora da escola. Precisa conhecer a visão da comunidade e informá-la sobre os passos da gestão escolar. Nossos canais de comunicação pretendem fazer com que a escola seja vista como uma referência da comunidade, a fim de contar aos pais, aos ex-alunos e a quem mais queira saber das coisas bacanas que acontecem aqui durante o ano letivo”, afirma Felipi. “Também queremos mostrar que é possível produzir informação e conteúdo de qualidade. Queremos que os ouvintes possam confiar naquilo que é realizado dentro da escola e, por isso, exploramos os canais digitais como recurso pedagógico e de diálogo”, complementa o diretor.
Teoria x prática
Mobilizar pessoas e recursos para um objetivo comum: melhorar a aprendizagem e fazer com que os alunos se desenvolvam plenamente, com equidade, são o foco da gestão escolar. Mas não só isso, aponta a gerente de Gestão do Conhecimento do Instituto Unibanco, Mirela Carvalho. “Cada vez mais ouvimos o termo ‘liderança escolar’ no lugar de ‘gestão escolar’. Vemos, aí, uma nuance: liderança tem a ver com o influenciar a comunidade para que se chegue a um objetivo, a uma melhora em comum. Essa liderança é muito virtuosa, geradora de transformações: quanto maior essa influência, mais a escola se aprimora, mais os alunos se desenvolvem”, afirma. Mas um verdadeiro líder nada resolve sozinho. É preciso caminhar ao lado da comunidade escolar, diz a especialista.
Felipi concorda e destaca a comunicação clara e direta como um dos pontos orientadores da recém-lançada Base Nacional Comum de Competências do Diretor Escolar (BNC Diretor Escolar). São dez competências gerais, desdobradas em 17 competências específicas, aprovadas pelo CNE (Conselho Nacional de Educação) em 2021, a serem homologadas pelo Ministério da Educação.
“É um documento norteador ao abordar as diversas dimensões de atuação de um gestor, seja político-institucional, pedagógica, administrativo-financeira, pessoal e relacional”, avalia o diretor. “Creio que o papel do gestor também está ligado à prática, com a rotina de trabalho, com a vivência no cotidiano da escola por algum tempo, colaborando com os bons projetos já existentes e incentivando novos. Não é algo técnico, apenas. Tanto que a primeira dimensão da BNC é a que fala sobre o engajamento com a comunidade, a visão sistêmica e estratégica sobre a escola. O diretor tem total responsabilidade”, reflete.
Mirela aponta que as experiências internacionais e bem-sucedidas sobre liderança apresentam marcos de gestão e, no Brasil, o pontapé inicial nesse sentido é a BNC Diretor Escolar. “Esse documento referencial é importante para a construção de políticas. Qual é o papel da liderança, quais resultados precisam ser garantidos no dia a dia do ofício do gestor? A BNC é fundamental para um ponto de partida nítido, pactuado, estratégico”, afirma a gerente do Instituto Unibanco. A organização vem se debruçando na literatura e nos estudos sobre líderes escolares, reunidos em dois volumes da Coleção Políticas Públicas em Educação: Liderança escolar para a melhoria da educação e Seleção de diretores escolares: desafios e oportunidades, webinários e podcasts.
Reconhecimento legal
Entre os estudos preparatórios, os primeiros debates com gestores escolares e o texto final da Matriz de Competências do Diretor Escolar, que baseia a BNC Diretor, foram cerca de três meses de trabalho intenso, desenvolvido pelos professores Cynthia Paes de Carvalho (da PUC-Rio), Ana Cristina Prado de Oliveira (da UNIRIO) e Ângelo Ricardo de Souza (da UFPR).
“A escola tem papel fundamental a desempenhar na sociedade, um compromisso fundamental com seus alunos. Isso supõe determinadas competências para o diretor escolar”, explica Cynthia, uma das redatoras do documento, sobre a sua construção, realizada durante a crise sanitária mundial. “A pandemia desafiou as competências dos diretores escolares e os convocou a ampliá-las um pouco mais, aumentando sua sensibilidade para tempos de mais necessidade de escuta, mais criatividade e desenvolvimento de soluções”, garante Cynthia.
Para a redatora, a BNC Diretor Escolar apoiará os profissionais e sua qualificação na medida que serve como referência para as redes de ensino e para os formadores em geral, seja na formação inicial e nas ações de formação continuada, seja na formação em serviço ou em pós-graduação. “Pensar sobre a formação ou as necessidades de formação que um diretor de escola, ou mesmo toda a equipe à frente da gestão deve ter, é uma maneira de valorizá-los, dizer que essas funções existem, são importantes e, por isso, precisam de formação”, destaca.
“Esperamos que o documento sirva como sinalização para que as redes de ensino valorizem mais o profissional que tem um acúmulo enorme de responsabilidades e, geralmente, quase nenhuma estrutura para enfrentá-las, pouco reconhecimento e poucas condições adequadas para trabalhar de maneira eficiente, mesmo que muito dedicados. São muito cobrados, exigidos e responsabilizados”, sinaliza Cynthia.
Leia também:
O que é ser diretor escolar no Brasil?
Existe formação acadêmica ideal para um gestor escolar?
Foco na aprendizagem
Diretor da Escola de Ensino Fundamental e Médio Professor João Loyola, localizada no município de Serra (Espírito Santo), Ramon Barcellos foi um dos profissionais consultados durante a redação da Matriz de Competências. Atuante na área educacional há 22 anos, Ramon é formado em história, com especialização na área de ensino, e trabalha na rede pública capixaba desde 2013. “Considero a BNC Diretor super válida. Muitas vezes, a figura do diretor fica fragilizada quando não se sabe para onde navegar. O documento norteia o trabalho que a escola se propõe a fazer”, diz. “Isso permite a profissionalização, para que deixe de ser meramente o professor que saiu da sala de aula e caiu em uma sala de direção e, a partir daquele momento, tenha de assumir responsabilidades que muitas vezes nem sabe quais são… Dentro da normativa do documento, é traçada uma formação adequada para atender melhor às expectativas relacionadas ao cargo”, complementa Ramon.
Ele percebe, também, que muitas das competências ali elencadas são voltadas aos resultados da aprendizagem dos estudantes, o que garante ser o foco da carreira de um bom diretor. “Parece uma coisa fácil quando se fala da garantia do direito à aprendizagem de todos os estudantes, mas, na esfera das escolas, não é. Muitas vezes, recebemos alunos que partem de pontos de partida muito diferentes. Alguns, por condições menos favoráveis, saem de uma posição muito desvantajosa em relação aos outros”, conta. “Se a escola não tiver um olhar de equidade, no sentido de permitir que todos avancem, um olhar de não deixar ninguém para trás, infelizmente, em vez de garantir o direito à educação, ela se transforma num ambiente de exclusão. A oportunidade deve ser oferecida a todos, sem exceção.”
A gestão de Ramon conseguiu reduzir drasticamente a evasão escolar. Hoje, a escola celebra não ter perdido estudantes graças ao apoio do conselho tutelar e da assistência social. “Quando um aluno fica quinze dias sem comparecer e não conseguimos acessar a família por telefone ou outro mecanismo de comunicação, acionamos o conselho tutelar”, afirma. “Durante a pandemia, muitos estudantes fragilizaram sua relação com a escola, correndo o risco de abandono ou evasão. Por meio da busca ativa, por mais que a gente tenha o contato, não conseguimos acessar alguns desses meninos. O CRAS [Centro de Referência da Assistência Social] consegue ir até a casa do estudante que não tem telefone, por exemplo. Eles foram muito importantes durante o período. Talvez sem esses atores os nossos resultados não seriam tão bons”, garante Ramon.
Neuzangela Pinheiro, diretora da ECIT (Escola Cidadã Integral Técnica) Alice Carneiro, em João Pessoa (PB), conseguiu traduzir a fala de seu colega de profissão em atitudes práticas. Ela também comemora não ter perdido nenhum dos 629 estudantes durante as dificuldades da pandemia, graças à comunicação direta com as famílias e, em casos específicos, com o apoio do conselho tutelar e da assistência social. Ela acredita que essa articulação é fundamental. “A escola é viva porque o aluno a movimenta. E só se conquista um aluno se ele vem estimulado de casa. O contato frequente faz com que a família se sinta pertencente à escola”, avalia.
À frente da ECIT desde 2017, Neuzangela, que é formada em pedagogia, investe em formações continuadas. Ao estudar planejamento e melhores formas de lidar com o público, entendeu que uma segunda graduação, voltada à neurociência na educação, seria bem-vinda. “Conhecer minhas emoções me faz melhor para lidar com as emoções do outro. Lidamos com perfis diferentes e é preciso ter empatia”, explica. Tamanha foi a vontade de retornar à faculdade que a diretora levou a coordenadora pedagógica, a professora da sala de alunos especiais e a psicopedagoga da escola para a mesma faculdade. “Só melhoramos nossa atuação se agimos em equipe”, pondera.
Futuro e especialização
De acordo com o Censo Escolar 2021, divulgado no começo de fevereiro pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), existem 162.796 profissionais em cargos de direção no Brasil, sendo 80,7% mulheres com formação superior (89,5%). A maioria expressiva de quem ocupa o cargo é de mulheres com formação superior. Contudo, apenas um entre dez profissionais têm especialização em gestão escolar. E apenas 13% das redes escolares selecionam seus profissionais por meio de processos seletivos.
Mirela Carvalho ressalta que a nova lei do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) prevê o repasse de verba a estados e municípios a partir do cumprimento de algumas metas, entre elas a seleção mais detalhada de diretores. “Uma das complementações feitas pelo Fundeb, o VAAR [Valor Anual por Aluno], que é de 2,5% da cesta do Fundo, vai ser destinado para estados e municípios que cumprirem algumas condicionalidades, entre elas a seleção técnica de diretores. A fórmula exata de cálculo ainda será regulamentada, mas vemos um movimento super importante da União mirando o início de tudo, que é o processo seletivo”, analisa a gerente de gestão do conhecimento do Instituto Unibanco.
Para que existam bons processos seletivos, são necessárias formação e políticas que garantam candidatos aptos a se diferenciar, reforça Mirela. “Segundo a literatura internacional, a mentoria é fundamental para que a gente consiga fazer um bom desenvolvimento desses profissionais”, diz, ressaltando a importância de um documento de referência como a BNC Diretor nesse cenário.
Por meio da BNC Diretor Escolar, será possível organizar os processos de seleção, a formação inicial e em serviço, bem como o desenho da carreira, avalia Mirela. “Os estados podem utilizar esse referencial e customizá-lo para seus contextos. O Brasil trabalha na direção da maior profissionalização do trabalho do diretor e devemos perceber mudanças nítidas em uma década”, pontua a especialista.
Assim como na América Latina, o Brasil tem em sua história a marca do autoritarismo, dos regimes ditatoriais, que fizeram com que o trabalho na escola fosse, por décadas, orientado de fora para dentro, com a intervenção do Estado. “O processo de profissionalização chegou recentemente ao Brasil; no mundo, ele já é comum há várias décadas. A democratização nos trouxe o modelo de gestão democrática baseado na ampla participação da comunidade escolar. As escolas também ganharam autonomia pedagógica. Falta unir a elas, portanto, o desenvolvimento de competências específicas”, finaliza Mirela.