‘A escola tem muita coisa bonita para ensinar à criança’ - PORVIR
Crédito: kali9/iStock

Inovações em Educação

‘A escola tem muita coisa bonita para ensinar à criança’

Em entrevista ao Porvir, o especialista em primeira infância Vital Didonet faz um balanço dos do impacto da pandemia na educação infantil e fala do papel fundamental da escola e da família nessa fase da vida

por Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 25 de agosto de 2022

Brincar e interagir são os dois principais eixos da educação infantil. Quem traz a definição é o professor Vital Didonet, especialista em primeira infância, com um extenso currículo ligado ao tema. E vem dele uma proposta: precisamos tirar lições da dolorosa experiência trazida pela pandemia, e uma delas é valorizar ainda mais a escola como espaço de aprendizagem.

O ensino remoto evidenciou o papel educacional e pedagógico das escolas, muito além do cuidar e do proteger. Encontrar as unidades fechadas acentuou o sentimento de pertencimento das crianças ao espaço. “A pandemia abriu no imaginário social uma atitude de admiração e de respeito à escola e maior compreensão de quanto ela é imprescindível, como agência social e educacional”, reflete o pesquisador em recente artigo.

Nesta entrevista concedida ao Porvir na semana em que se comemora o Dia Nacional da Educação Infantil (25 de agosto), Vital comenta sobre os esforços que devem ser feitos neste retorno às aulas, como a busca ativa pelas crianças, sugere como professores e alunos devem ser apoiados em suas questões socioemocionais e o apoio aos professores e aos alunos nas questões socioemocionais, além da relação fundamental entre família e escola para o desenvolvimento da primeira infância. Confira: 

Arquivo pessoal Vital Didonet/Divulgação

Porvir – Em 2019, havia 9 milhões de crianças de 0 a 5 anos matriculadas. Em 2021, eram 8,3 milhões. Como avalia o período da pandemia para as aulas de educação infantil?

Vital Didonet – Isso aconteceu em geral em toda América Latina. Na Europa também, mas na América Latina a defasagem nas matrículas foi muito forte, inclusive pós-pandemia. É um fenômeno que se explica por algumas razões. Uma delas é que os pais acabaram se acostumando com as crianças em casa, esqueceram da escola e não tiveram um convite mais formal, mais explícito [para voltar]. Agora, é preciso fazer um esforço muito forte, consistente e extenso no sistema de ensino, por meio dos professores, por meio da direção da escola, por meio de outros órgãos, como a Secretaria de Educação, para chegar nessas famílias, fazer uma visita, telefonar, mandar uma mensagem. Assim como procuraram manter contato durante a pandemia, ele deve continuar, mostrando para os pais como é importante a criança voltar para a escola. Obrigatoriamente, ela deve estar na escola a partir dos 4 anos e os pais podem ser acionados legalmente se não cumprirem este dever. Não se trata de penalizar, mas sim usufruir de uma experiência pedagógica que vai desenvolver a criança, que vai dar a oportunidade a ela de aprender, que vai colocá-la em contato e interações com os colegas. Sabemos que as crianças ficaram isoladas nos apartamentos, nos barracos, em suas casas. Os problemas de saúde mental das crianças pequenas que vemos hoje são consequência, em grande parte, da experiência negativa da vida em casa. 

Porvir – E quais os impactos desse isolamento?

Vital Didonet – Seja não comemorar o aniversário, não encontrar ninguém, não ver a professora, não poder fazer um passeio ou ganhar o abraço do vovô e da vovó, ter de fazer trabalhinhos remotos. Ou ainda sofrer violência, com os pais cansados. São experiências muito negativas. Claro, o lado positivo existiu: os pais deram mais de seu tempo para as crianças, leram histórias, levaram para a cama na hora de dormir, algo que talvez não acontecesse antes. A escola não substitui a família, ela acrescenta, complementa – é assim que a LDB (Lei de Diretrizes e Bases) a define. Mas a família precisa valorizar o tempo junto, isso deve continuar. A escola tem muita coisa bonita para ensinar à criança: tem o brincar, a música, o canto, a dramatização, o pátio, as historinhas… Tudo isso traz felicidade para ela. É preciso investir na busca ativa dessas crianças. 

Porvir – Como essa busca ativa deve ser feita, em sua opinião?

Vital Didonet – Se a secretaria de educação não tem pessoal para fazer isso, que faça um acordo com a secretaria de saúde, que já conta com visitadores [nas residências]. O projeto Criança Feliz [da Secretaria Nacional de Atenção à Primeira Infância] conta com profissionais que visitam famílias de baixa renda – geralmente, são essas que não estão voltando para a escola. E são exatamente as que mais precisam dessa aprendizagem para dar a volta por cima.

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Porvir – Outra coisa que se observa nesse retorno às aulas são os casos de indisciplina e violência nas escolas. Esses casos seriam ligados ao período muito longo em casa? Refletem a violência doméstica?

Vital Didonet – Ambas [as afirmações] podem ser verdadeiras. A convivência durante a pandemia não podia ser agradável o tempo todo. Foi muito cansativo. Todos esperávamos que a pandemia durasse dois, três meses no máximo. O estresse chegou na casa das pessoas. A criança cobra atenção dos pais, que não queriam que ela ficasse na televisão ou no celular o tempo todo, mas eles também começaram a trabalhar em home office ou tinham de sair para trabalhar e não podiam dar tanta atenção como o professor faz. Há pais que perderam a paciência. Outras questões também devem ser consideradas: há os responsáveis que, infelizmente, já eram violentos antes da pandemia. Ou outro exemplo: o pai pode beber, estar desempregado, estressado por não conseguir dinheiro para trazer comida para casa e acaba despejando seu sofrimento em cima da criança, erradamente. Durante a pandemia, isso se agravou. A violência doméstica é algo terrível. A timidez ou a revolta deixam marcas profundas que às vezes podem se perpetuar pela vida toda. Por isso, penso que a escola deve investir no trabalho de saúde mental.

Porvir – Muitas crianças que sofrem violência doméstica acabam levando esse comportamento para escola. Voltam para a escola com mais raiva, às vezes não conseguindo expressar as emoções… Nesse sentido, como apoiar os alunos e os professores?

Vital Didonet – Creio que a secretaria de educação precisa criar uma equipe rotativa e multidisciplinar nas escolas. Um psicólogo, um médico pediatra, que identifiquem sinais de violência psíquica… Uma enfermeira que identifique sinais de violência no corpo da criança. E o professor, que pode trabalhar técnicas didáticas de contexto, como contação de histórias, roda de conversa, dramatizações nos brinquedos. Assim, a criança vai revelar, indiretamente, a violência que tenha sofrido. Ela não vai contar que o pai bate. Isso tem de ser descoberto por sinais indiretos. O professor não deve ficar sozinho porque ele não dá conta de muitas crianças e não é especialista em certas áreas. O ideal é contar com uma sala reservada para essa troca de ideias e de convivência entre os profissionais, para que, em conjunto, possam ajudar melhor as crianças a manifestar algum sinal de violência sofrida. A criança que sofre violência não vai aprender porque não consegue se concentrar, pois pensa mais no medo dos pais do que na beleza do ensino da escola, no papel da professora. 

Porvir – Você acredita que isso também se reflete na questão de porque tem sido tão difícil para as crianças, e para os adultos, reconhecer o espaço do outro? 

Vital Didonet – Ah, não. Isso é normal. No desenvolvimento humano, a gente nasce como indivíduo e vai constituindo a identidade pelo outro, mas o outro sempre é opositor. Os filósofos explicam que de certa forma o outro ocupa um espaço onde eu gostaria de estar. Temos essa reação em relação ao outro desde pequenos. Você vê, por exemplo, quando nasce um bebê em casa. Os irmãozinhos ficam com ciúmes, a não ser que sejam crianças amorosíssimas. Mas na medida que percebem como a mãe e o pai estão dando atenção exclusiva pro bebê, e que ele esse pequenininho vai ficar muito excluído, o menino de 2, 3 anos sofre. É preciso dar atenção a ele também. 

Porvir – Como isso acontece na escola?

Vital Didonet – Na escola isso também vai acontecer. O outro está lá, ocupando um espaço no qual eu gostaria de estar. Ele pegou meu brinquedo, e eu queria justamente esse brinquedo. Esse confronto é natural das relações humanas, o que tem que acontecer é aprender a conviver. A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) traz como um dos campos de experiência o aprender a conviver como direito de aprendizagem. A gente não nasce convivendo. É preciso brincar junto, trabalhar em equipe. Na educação infantil, os professores criam técnicas de interações e de trocas de valorização, uma experiência que precisa ser muito exercitada na escola.

Porvir – Durante a pandemia, sofremos uma intoxicação pelo excesso de telas. Como enxerga essa questão?

Vital Didonet – De fato, isso foi agravado. Agora vamos ter de considerar que isso aconteceu e preencher mais o tempo da criança com atividades tão fascinantes na escola, na creche e na pré-escola para que ela não sinta tanta necessidade do celular. Ainda mais nessa primeira fase da vida, quando a estrutura cerebral está sendo formada. Para a criança pequena, a tela é plana e o mundo desenhado, sem profundidade, artificial. 

Porvir – Como sugerir aos pais e cuidadores que tenham essa prioridade, que vejam no brincar e no interagir uma potência de aprendizado? 

Vital Didonet – Por causa da pandemia, vimos um aumento da conexão entre as famílias e as escolas. Isso deveria continuar, com conversas mensais sobre pedagogia, as questões comportamentais, mostrar para os pais como brincar, e os pais mostrarem como é a experiência doméstica. O brincar é uma oportunidade de experimentar a solução de um problema, é uma provocação para a criança testar a sua capacidade de resistência, de paciência, ter mais estabilidade. Montando um quebra-cabeças, ela trabalha a capacidade de raciocínio: vê peças que não se encaixam, conversa com o colega sobre o formato diferente. O brincar é uma coisa divertida, desenvolve a capacidade de observação e raciocínio, criatividade. É algo muito rico. 

Porvir – Estamos em ano eleitoral. Como os candidatos devem olhar para a primeira infância? 

Vital Didonet – Na RNPI (Rede Nacional de Primeira Infância), nós fazemos uma campanha de abordagem aos candidatos para que eles assinem um compromisso: se eleitos, colocarem em suas agendas a prioridade para pensar na primeira infância. Quando eleitos, voltamos aos que assinaram para oferecer subsídios para colocar as propostas em prática. Este ano, a Rede Nacional passou a integrar, com mais de 20 organizações da área da educação, saúde, assistência e cultura, a Agenda 227. O nome do projeto se refere ao artigo da Constituição, no qual se afirma que a família, a sociedade e o estado devem garantir, com absoluta prioridade. Essa agenda é enviada aos candidatos para que, ao formularem o plano do seu governo, tenham isso em mente. No âmbito estadual, pela RNPI, lançamos, na semana passada, o projeto “Criança é prioridade”.

Porvir – Qual seria um projeto obrigatório para qualquer plano de governo para apoiar e valorizar a educação infantil?

Vital Didonet – É fundamental cumprir a meta 1 do PNE (Plano Nacional de Educação), que aponta 100% das crianças de 4 e 5 anos na escola e, no mínimo, 50% das crianças de 0 a 3 anos em creches. Coloca-se essa porcentagem mínima, mas no caso de São Paulo, por exemplo, a demanda é muito maior. Sabemos das filas imensas de espera por vaga na creche… Outro ponto é dar uma atenção qualificada para as crianças com deficiência, colocando-as em escolas inclusivas, com profissionais qualificados. Também precisamos diminuir a diferença de frequência das crianças de classe mais alta e das famílias mais pobres.

Porvir – Como isso pode ser feito?

Vital Didonet – Essa também é uma estratégia que está no PNE. Se você olha o gráfico ou os números de matrícula na pré-escola, por classe e renda, o grupo de 20% das famílias mais pobres, apenas 27% dos seus filhos estão na creche. Se você seleciona os 20% das famílias mais ricas, o número de matrículas é de 67%. A creche amplia as experiências e as oportunidades de aprendizagem, movimento, interações e a linguagem da criança, e está ajudando as famílias das classes mais altas e não ajudando tanto as classes mais pobres. Estamos agravando a desigualdade no Brasil. Na primeira infância é que se forma a estrutura do desenvolvimento ao longo da vida. É quando o cérebro está se estruturando, o psiquismo se forma, a personalidade da criança está se constituindo. Se nesse período mais sensível, mais maleável do cérebro, o que se chama de janela de oportunidade está aberto apenas para crianças de renda mais alta, porque elas estão indo para essas oportunidades educacionais, elas vão dar um salto em relação às outras. O Estado tem de garantir a igualdade de oportunidades, priorizando a expansão das creches nos territórios onde moram as famílias mais pobres. 

Crédito: Arquivo Agência Brasil Crédito: Arquivo/Agência Brasil

Porvir – A educação infantil é fundamental para a formação do ser humano, mas a modalidade ainda sofre algumas críticas. Qual sua opinião a respeito?

Vital Didonet – Olha, a gente não vê resistência. O discurso sobre a importância da primeira infância e os estímulos adequados estão presentes no âmbito da pedagogia, da psicologia e até da economia. Hoje se usa muito o argumento da taxa de retorno. O James Heckman, prêmio Nobel de Economia, tem uma tese sobre quanto o que se gasta na educação infantil tem benefícios ao longo da vida, com um retorno econômico tão alto que compensa dez vezes mais do que cuidar dos adultos que não tiveram educação infantil. A importância do cuidado integral, da saúde, assistência, cultura, meio ambiente, está muito presente nos âmbitos dos serviços públicos essenciais para a criança. Outra coisa é partir desse discurso para a prática. 

Porvir – Isso tem sido realizado?

Vital Didonet – Na hora de criar orçamentos e colocar recursos para a educação infantil, o MEC (Ministério da Educação) pensa que R$ 200 milhões é muito dinheiro, mas não pensa que R$ 5 bilhões para a campanha eleitoral não são suficientes. Ano passado, o MEC destinou R$ 120 milhões para a educação infantil; neste ano, foram R$ 240 milhões. O que é esse valor para 5.560 municípios e 20 milhões de crianças na faixa de 0 a 6 anos? Essas decisões mostram como a mente do gestor é obtusa, como é a mente dos que decidem orçamento ou que têm uma compreensão do significado da primeira infância. Trata-se de uma questão de a criança ter direito à educação de qualidade desde o nascimento, que enriqueça suas experiências de vida, independentemente de dar taxa de retorno ou não. 

Porvir – Sem contar a falta de recursos para a formação dos professores e para estrutura escolar…

Vital Didonet – Exatamente. Já está definido desde o Congresso de Salamanca, por exemplo, que a melhor educação para a criança com deficiência é na escola inclusiva. Nesse atual governo, o ministro da educação começou a estimular as escolas especiais, separadas, para que as crianças com deficiência fiquem juntas, e não misturadas com as outras, onde têm muito mais possibilidade de brincar e de aprender com a interação. Veja o retrocesso conceitual por desconhecimento da pedagogia mundial, de 40 anos já. Uma coisa é o discurso da escola inclusiva, e outra coisa é na hora da prática, valorizar isso. Mesmo quando se fala em colocar a criança na escola comum, não se investe na formação de professores. Os pais dizem: “Como é que vou colocar meu filho autista aqui, se não há ninguém que sabe envolvê-lo nas atividades?”. Ele se fecha em um canto e o professor não sabe o que fazer, ou ele é agressivo, então o professor o isola, enquanto existem técnicas de interação que o especialista sabe trabalhar bem. Ou não colocam psicólogo na equipe da secretaria de educação para orientar os professores nessa convivência com as crianças. Uma coisa é a concepção e a outra é a coerência prática, que está faltando. Mas esperamos que as coisas possam mudar. Seguiremos lutando por isso. 


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educação infantil, socioemocionais

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